Com o novo CPC entrando em vigor, muitos questionamentos surgiram, com todo tipo de dúvida e algumas críticas. Também surgiram discussões sobre a validade da jurisprudência que se formou em torno do CPC antigo. Da nossa parte, a par de toda dúvida que o novo estatuto de rito trouxe, de uma coisa ousamos ter certeza: a súmula 195 do STJ deixa de ter validade em face do novo CPC.
Este pequeno ensaio se propõe a demonstrar, de maneira simples e direta, que temos razão.
1 - A súmula 195 do STJ.
O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento, consolidado na súmula 195, de que em embargos de terceiro não se anula ato jurídico por fraude contra credores.
O imbróglio que deu origem à súmula era que, recaindo a penhora sobre bem alienado pelo devedor, o adquirente manejava os embargos de terceiro para se ver livre da constrição e o embargado, ao ser citado, apresentava defesa alegando fraude a execução. Após muita discussão jurídica, o STJ acabou por acolher a tese de que não se pode anular o ato de alienação por fraude contra credores em sede de embargos de terceiro.
2 - O fundamento da súmula e os seus precedentes.
O ponto central da súmula em comento reside na fraude contra credores, que está prevista no Código Civil, arts. 158, 159 e 171, II:
Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.
§ 1o Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.
§ 2o Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles.
Art. 159. Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante.
Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio jurídico:
[...]
II - por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.
A fraude contra credores é um vicio do negócio jurídico que conduz à sua anulação. Como explica MELO (2014.a: 202), “é o ato praticado pelo devedor insolvente ou prestes a tornar-se insolvente, que dilapida seu patrimônio com o claro objetivo de reduzir as garantias de recebimento dos créditos de seus credores, vencidos ou a vencer”. Ela difere da fraude à execução, porque nesta já existe ação em andamento, sendo a fraude, pois, uma situação objetiva. Naquela não existe a ação judicial, mas apenas o crédito, daí que a fraude é uma questão subjetiva e depende de prova da intenção (consilium fraudis).
O reconhecimento da fraude contra credores deve se dar por sentença judicial, eis que o negócio jurídico anulável somente deixa de produzir efeitos depois de anulado por sentença, proferida em ação própria, a chamada “ação pauliana”. Nessa ação, o credor prejudicado pela fraude será o legitimado ativo, sendo legitimados passivos, em litisconsórcio necessário, os participantes do negócio jurídico que se pretende anular.
Daí a razão da edição dessa súmula, na égide do CPC/1973, entendendo-se não ser possível se reconhecer a fraude contra credores em sede de embargos de terceiro. A alegação do embargado, em defesa, acerca da fraude não pode ser conhecida pelo juiz, porque para isso faz-se necessário deduzir pedido próprio, o que só poderia ocorrer em reconvenção, que não era admitida nos embargos de terceiro, por incompatibilidade de rito.
Tal situação ficou bem assentada no voto do Min. Moreira Alves (ERE 90.934-RJ).
Por outro lado, em face do sistema acolhido pelo nosso Código Civil (arts. 106 a 113), a fraude contra credores é defeito que acarreta a anulação do negócio jurídico. E, como se sabe, em virtude do art 147 desse mesmo Código, o negócio jurídico anulável só deixa de produzir efeitos depois de anulado por sentença judicial, não podendo a anulação ser pronunciada de ofício. Para decretá-la, é mister a utilização da ação pauliana, em que é autor o credor prejudicado pela fraude, e réus, em litisconsórcio passivo necessário, os participantes do negócio jurídico a ser desconstituído (em regra, o devedor insolvente e o terceiro beneficiado), se a ação for julgada procedente. Que há litisconsórcio passivo necessário é indubitável em face do atual direito processual civil brasileiro, uma vez que, como é evidente, não se pode desconstituir um negócio jurídico bilateral, sem a participação de todos aqueles que o celebraram.
E finaliza, concluindo:
Daí, não ter eu dúvida de que a alegação de fraude contra credores exige reconvenção. E, em embargos de terceiro, não é admissível, dada a diversidade de ritos, reconvenção. Por isso tenho como corretas essas observações de Hamilton de Moraes e Barros (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. IX, 2ª ed., nº 190, págs. 376/377).
A doutrina citada pelo Min. Moreira Alves no voto acima transcrito, de Hamilton Moraes e Barros, bem explicava a situação conflituosa:
A fraude contra credores gera apenas a anulabilidade do ato fraudulento, o qual somente se desfaz por força da sentença procedente da ação destinada a desconstituí-lo. Enquanto não postulada e obtida a anulação, o ato em fraude a credores é válido. A fraude à execução, ao contrário, não impede, por força do disposto no art. 592, V, do CPC, que os atos de execução se pratiquem sobre os bens alienados ou gravados com ônus real, tudo em fraude à execução. Em tema de fraude à execução, tudo se passa como se alienação ou o ônus não existissem. É que lhes nega eficácia a ordem jurídica. Não, assim, a fraude contra credores, já dissemos que ela é de desfazer-se pelo êxito da ação pauliana, de procedimento ordinário. Já vimos, no número 188 destes comentários, que os embargos de terceiro não comportam reconvenção. Também não tem forma de reconvenção a defesa que possa oferecer o embargo. Quando o legislador quer que a contestação tenha valor reconvencional, ele é intencionalmente expresso, como ocorreu por exemplo, quanto à defesa na ação revocatória. Por isso, ao defender-se na ação de embargos de terceiro, não pode o embargado postular a anulação do ato jurídico, arguindo que foi praticado em fraude a credores.
As decisões acerca dessa questão tornaram-se reiteradas no âmbito do STJ, como mostram os precedentes da súmula:
Fraude contra credores. Não há discutir fraude contra credores em embargos de terceiros. Recurso especial atendido. Maioria (REsp 20.166-8-RJ - 4ª T - Relator Ministro Fontes de Alencar – DJ 29.11.93)
Civil. Processual Civil. Fraude contra credores. Embargos de terceiros. Ação pauliana. O meio processual adequado para se obter a anulação de ato jurídico por fraude a credores não é a resposta a embargos de terceiro, mas a ação pauliana. Abono da melhor doutrina e precedente do STJ (REsp 27.903-7-RJ - 3ª T - Relator Ministro Cláudio Santos – DJ 22.03.93).
Embargos de terceiro – Fraude contra credores. Consoante a doutrina tradicional, fundada na letra do Código Civil, a hipótese é de anulabilidade, sendo inviável concluir pela invalidade em embargos de terceiro, de objeto limitado, destinando-se apenas a afastar a constrição judicial sobre bem de terceiro. De qualquer sorte, admitindo-se a hipótese como de ineficácia, essa, ao contrário do que sucede com a fraude de execução, não é originária, demandando ação constitutiva que lhe retire a eficácia (REsp 13.322-0-RJ - 3ª T - Relator Ministro Eduardo Ribeiro – DJ 13.10.92).
Civil. Processual Civil. Fraude contra credores. Embargos de terceiros. Ação pauliana. O meio processual adequado para se obter a anulação de ato jurídico por fraude a credores não é a resposta a embargos de terceiro, mas a ação pauliana. Abono da melhor doutrina e precedente do STJ (REsp 24.311-0-RJ - 3ª T - Relator Ministro Cláudio Santos - DJ 22.03.93).
Assim, a questão foi sumulada pelo STJ, no sentido de que, em embargos de terceiro, não se anula ato jurídico viciado por fraude contra credores.
3 - A situação da súmula após o novo CPC de 2015.
Entendemos, data vênia, e vamos tentar demonstrar aqui, que a súmula 195 do STJ perdeu sua validade após a vigência do novo CPC.
O grande problema que levou a edição da súmula, na verdade, dizia respeito à impossibilidade de oferecer reconvenção em embargos de terceiro, por incompatibilidade de procedimento.
Ocorre que, no novo CPC, tivemos uma grande e profunda alteração procedimental, que vai influir definitivamente na sorte da súmula em destaque. É que a “resposta do réu” passa a ser feita em peça única, denominada apenas de contestação. E a reconvenção deixa de ser uma manifestação independente, passando a fazer parte da contestação, conforme art. 343: Na contestação, é lícito ao réu propor reconvenção para manifestar pretensão própria, conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa.
Ao tratar dos embargos de terceiro, o novo CPC prevê, no art. 679, que “os embargos poderão ser contestados no prazo de 15 (quinze) dias, findo o qual se seguirá o procedimento comum”. Tal contestação, por óbvio, possibilita a reconvenção, como permite o citado art. 343 (que não estabelece nenhuma restrição). Por conta disso, não há mais que se falar em diferença de rito, até porque, com a apresentação da contestação, o processo segue o procedimento comum. E, por meio da reconvenção, é possível se pleitear a declaração da nulidade do ato jurídico vício por fraude contra credores, como assentado na própria jurisprudência que se consolidou sobre o tema, como vimos acima.
Conclusão.
Uma vez que o novo CPC passa a admitir a reconvenção no procedimento especial dos embargos de terceiro, fica possível – desde que alegada e provada – o reconhecimento da fraude contra credores.
Por essa razão que, a nosso ver, a súmula em comento torna-se inválida em face do novo CPC.
Bibliografia.
MELO. Nehemias Domingos. Lições de direito civil – vol. 1. São Paulo: Atlas, 2014.
SALES, Fernando Augusto De Vita Borges de Sales. Estudo comparativo do CPC de 1973 com o CPC de 2015. São Paulo: Rideel, 2015.
2015. Novo CPC comentado. São Paulo: Rideel. No prelo.