O impasse da garantia de direitos dos adolescentes em situação de ato infracional no âmbito da assistência social

03/03/2016 às 11:20
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Dentre as demandas destinadas à Política de Assistência Social está o acompanhamento de medida socioeducativa em meio aberto. Mas, garantir os direitos dos adolescentes em situação de ato infracional não é uma tarefa fácil, são muitos os obstáculos .

  1. INTRODUÇÃO

A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) compõe o tripé da seguridade social juntamente com a saúde e a previdência. Garantida na Constituição de 1988, a Assistência se configura como uma política não contributiva, de acesso a todos que dela necessitar. Conforme se encontra na PNAS, a assistência social é dividida em proteção social básica e proteção social especial, porem, a esfera que nos interessa para a presente reflexão é a segunda. Na proteção especial encontra-se o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), encarregado de promover atendimento e acompanhamento de casos em que o vínculo familiar e comunitário já foi ou ainda está sendo rompido, seja por algum tipo de violência[1] ou por cometimento de ato infracional de adolescentes.

Com relação aos adolescentes em situação de ato infracional, é competência do CREAS  acompanhar a realização da medida socioeducativa em meio aberto[2] através de atendimento individual e coletivo, bem como promover atividades que despertem nos adolescentes a consciência do ato cometido e a oportunidade de ser reinserido em sua família, em sua comunidade e no mercado de trabalho (SINASE, 2006). Uma das funções do CREAS é orientar o adolescente e sua família acerca de seus direitos para que fiquem cientes de que o adolescente os possui, apesar de se encontrar, momentaneamente, na situação de autor de ato infracional.

O ECA garante aos adolescentes o direito de não ser transportado no compartimento fechado do carro da polícia, de ter acesso ao nome do policial responsável por sua apreensão; de informar à família, ou responsável, o fato ocorrido, imediatamente após o seu acontecimento; de ter direito ao contraditório[3], de ter acesso a acompanhamento psicossocial, no âmbito da assistência social, se a medida socioeducativa requisitada for de Liberdade Assistida ou Prestação de Serviço à Comunidade; de ter acesso a atividades de esporte, lazer, educação e profissionalização durante o cumprimento da medida.

Contudo, ao analisar a realidade cotidiana de muitos municípios é possível notar que existe uma deficiência na realização do trabalho em rede, como é preconizado pelo SINASE, para que os direitos dos adolescentes sejam garantidos. Além desse fator, outros elementos surgem como indicativos de inviabilidade desta garantia de direitos. São a fragilidade do vínculo empregatício, a rotatividade e a falta de capacitação dos profissionais da assistência social; e o assistencialismo ainda presente na política de assistência, o que inviabiliza o reconhecimento desta como direito do cidadão

  1. Desenvolvimento

A Assistência Social brasileira foi construída, em seu início, com um viés benevolente, caritativo, assumindo seu caráter de política pública apenas a partir da Constituição de 1988 (SPOSATI, 2003). Embora apresente avanços no que tange à legislação, com a criação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS/93) e da PNAS (2004), é possível notar que a estruturação da política de Assistência é posta de uma forma que não permite aos usuários a plena garantia de direitos, preconizada na legislação, colocando, assim, a assistência social a serviço de interesses não republicanos.

De acordo com Couto (2010), a política de assistência social brasileira se caracteriza por sua fraca efetividade e pela subordinação a interesses econômicos dominantes, o que revela a sua incapacidade de interferir na realidade de desigualdade e pobreza presente no país. O fato de seu nascimento ter sido ligado ao clientelismo, praticado por presidentes como Vargas, fez com que essa situação se enraizasse na sociedade brasileira, que hoje entende a política de assistência como favor, renegando-a, tornando-a marginal diante de outras políticas públicas.

Logo após a criação da PNAS, em 2004, os CREAS começaram a surgir em todo o território nacional. Como é parte de uma política recente, possui limites a serem superados para sua efetiva aplicação. Contudo, no que tange ao acompanhamento de medida socioeducativa em meio aberto, é possível perceber que os obstáculos se apresentam muito maiores. O SINASE indica a criação de um sistema de garantia de direitos, uma rede em que as mais variadas políticas estejam interligadas para concretizar os direitos dos adolescentes em situação de ato infracional.

O sistema deve integrar os âmbitos da educação, saúde, assistência social, justiça e segurança pública. No entanto, isto não tem ocorrido de forma satisfatória, pois a população e parte dos profissionais, em particular os da assistência social, têm resistido à plena efetivação da garantia de direitos desses adolescentes por considerarem que os direitos não devem ser aplicados para aqueles que agiram de forma incorreta perante a sociedade (SILVA, 2011).

Além de possuir outras perspectivas, a  lei 8.069 foi criada com o intuito de respaldar os profissionais que lidam com os adolescentes em situação de ato infracional para que conheçam os direitos destes e os façam valer na prática (BUGNON & DUPREZ, 2010). Todavia, é possível perceber que alguns obstáculos presentes na área da assistência social prejudicam o bom desempenho da política e, consequentemente, o acompanhamento dos adolescentes em questão.

A fragilidade do vínculo empregatício dos trabalhadores da assistência se configura como um dos principais empecilhos para o andamento correto das atividades. Muitos dos profissionais são contratados, ou seja, não são efetivos do município, e isso implica numa intensa rotatividade de profissionais, pois quando termina o contrato, dificilmente ele é retomado, outra pessoa é posta no lugar. Ocorre que, agindo dessa forma, o trabalho é interrompido, prejudicando assim, o serviço prestado e o próprio profissional que se vê dispensado de seu exercício por não atender aos interesses políticos do momento (MOTA, 2009).

A presença de ações assistencialistas, no âmbito da assistência social, revela que, ainda que esta não se configure mais como favor, e sim como política pública, a mente da população ainda está permeada por uma visão equivocada acerca da política e de sua proposta de garantia de direitos (COUTO, 2010). Infelizmente, esta visão ainda não foi superada por completo e ainda se apresenta como um obstáculo a ser derrubado.

Todavia, é possível encontrar profissionais engajados e comprometidos com o verdadeiro sentido da PNAS e da garantia de direitos dos adolescentes em situação de ato infracional, mas, diante de uma instituição sem estrutura material e de recursos humanos o trabalho muitas vezes não consegue ser realizado em sua plenitude. Há ainda aqueles profissionais sem compromisso ético e social com o cargo em que ocupa e o despreparo da Secretaria de Assistência, órgão gestor da política de assistência em âmbito municipal.

A área da assistência social tem se configurado como meio de barganha de votos e de interesses prioritariamente políticos (MOTA, 2009) e isso tem comprometido seriamente a garantia de direitos da população, em particular dos adolescentes em situação de ato infracional. Estes sujeitos, não são devidamente acompanhados pelo CREAS, pois este serviço é diretamente afetado pelo despreparo dos profissionais, os quais, em algumas situações, possuem até boa vontade para realizar as atividades, mas não contam com capacitação e orientação adequada para desempenhar tal função ou atendimento (SOUZA, 2012).

A visão equivocada e cheia de preconceitos, por parte da população e dos próprios servidores municipais, sejam eles efetivos ou temporários, é outro elemento que merece ser pensado. Sales (2007) borda a temática revelando a imagem que é construída desses adolescentes pela indústria midiática. Esta, tem o poder de adentrar às casas dos brasileiros e incutir em suas mentes o que é de seu interesse, gerando uma imagem perversa desses adolescentes e contribuindo para gerar medo entre a população, inclusive entre os próprios profissionais que lidam direta ou indiretamente com esses sujeitos.

Diante da realidade posta é possível constatar que, sem uma constante capacitação e uma equipe fixa, os profissionais da assistência social, em particular do CREAS, não conseguirão garantir os direitos dos adolescentes em situação de ato infracional. A adoção de uma intepretação crítica da realidade, bem como a realização de um trabalho em rede com outras instituições, para viabilização desses direitos, deve ser uma constante.

Mas, isso só será possível se os profissionais da assistência, principalmente os gestores, despertarem para a necessidade de fazer valer os direitos desses sujeitos. É necessário perceber que, como afirma Souza (2012) esses adolescentes se encontram na mesma situação de peculiar desenvolvimento que qualquer outro adolescente, portanto, possui os mesmos direitos e eles devem ser cumpridos mediante um trabalho em rede liderado pela assistência social

  1. Conclusão

A política de assistência social brasileira é recente. Contudo, algumas práticas clientelistas ainda persistem neste âmbito, apesar de toda legislação e esforço em mudar este paradigma. Apesar de reconhecer este status jovem da PNAS, as críticas devem ser feitas, na tentativa de promover melhorias na aplicação de suas atividades, sobretudo no que tange os adolescentes em situação de ato infracional. Estes sujeitos, na maioria das vezes já desamparados pela família, pela escola, pela sociedade e pelo próprio Estado, têm a chance de corrigir seu erro ao iniciar o cumprimento de uma medida em meio aberto (SILVA, 2011).

Porem, se, ao chegar no CREAS o sujeito não tiver um subsídio adequado para garantir os seus direitos, sua vida pouco mudará e, provavelmente, ele retomará as mesmas atividades que o levaram a cometer o ato infracional. Diante dessa realidade, a atenção requisitada para essa demanda da assistência social se configura como uma questão que merece maior atenção por parte da gestão municipal.

A construção e efetivação da rede de atendimento, para promoção do sistema de garantia de direitos, é fator primordial para excelência no atendimento prestado aos adolescentes, bem como a constante capacitação e a duração dos profissionais na instituição. Os profissionais da assistência social precisam ter em mente que a legislação existe para ser cumprida e que o trabalho da equipe multiprofissional, que acompanha os casos deve surtir efeitos positivos na vida desses adolescentes através da garantia de seus direitos.

É fato que são muitos os obstáculos a serem superados para que a política de assistência corresponda, na prática, ao que já está no papel. Porem, é necessário um monitoramento da política, como está preconizado na própria PNAS. A política deve ser avaliada e seus obstáculos devem ser reconhecidos e superados, pois, somente assim os adolescentes em situação de ato infracional poderão ser vistos com outros olhos pelos profissionais, sem preconceito, com preparo teórico e crítico para lidar com esses sujeitos e construir uma efetiva rede de atendimento que garanta os direitos preconizados no ECA.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Centro de Referência Especializado de Assistência Social: Guia de Orientação. Brasília, 2008.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 8.069, de 13 de Julho de 1990.

BRASIL. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. Brasília, Dezembro de 2006.

BRASIL. Política Nacional de Assistência Social. Resolução nº 145, de 15 de outubro de 2004. Brasilia: MDS, 2005.

BRASIL. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Brasília, Junho de 2006.

BUGNON, Géraldine; DUPREZ, Dominique. Olhares cruzados sobre o atendimento institucional aos adolescentes infratores no Brasil. Dilemas, Rio de Janeiro, n.7, p. 143-179, Janeiro de 2010. Disponível em                  <http://revistadil.dominiotemporario.com/doc/Dilemas7Art6.pdf> Acesso em 18 de novembro de 2011.

COUTO, B. R. [et al] O Sistema Único de Assistência Social no Brasil: uma realidade em movimento. SP: Cortez, 2010.

FREITAS, M. V. (Org.). Juventude e adolescência no Brasil: referências conceituais. SP: Ação Educativa.

MOTA, A. E. (Org.). O mito da assistência social: ensaios sobre Estado, Política e Sociedade. SP: Cortez, 2009.

PRATES, F. C. Adolescente Infrator: a prestação de serviço à comunidade. Curitiba: Juruá, 2010.

SANTOS, L. O estatuto da criança e do adolescente e a prática social com jovens autores de atos infracionais. Revista Ágora: Políticas Públicas e Serviço Social. n. 4, Jul. 2006. Disponível em: http://www.assistentesocial.com.br/agora4/SANTOS.doc Acesso em 15 de Agosto de 2012.

SALES, M. A. Invisibilidade Perversa: Adolescentes infratores como metáfora da violência. SP: Cortez, 2007.

SILVA, M. L. O. Entre proteção e punição: o controle sociopenal dos adolescentes. SP: Unifesp, 2011.

SPOSATI, Aldaíza. A menina Loas: um processo de construção da Assistência Social. São Paulo: Cortez, 2003.

SOUZA, T. J. O ECA na perspectiva do adolescente autor de ato infracional de Santo Antonio de Jesus: a compreensão dos jovens acerca dos seus direitos.Trabalho de Conclusão de Curso, UFRB, 2012.

SOUZA, A. F. Integração SUAS/SINASE: o sistema socioeducativo e a Lei 12.594/2012.


[1] São considerados aqui casos de violência física e psicológica, além de qualquer forma de coerção que prejudique o sujeito e os seus direitos (PNAS, 2004).

[2] A medida socioeducativa em meio aberto pode ser aplicada de duas formas. Uma é a Prestação de Serviço à Comunidade e a outra é a Liberdade Assistida, o critério para utilização das duas fica sob a responsabilidade do juiz/promotor. Para maiores informações sobre as medidas socioeducativas consultar a lei 8.069/90.

[3] De acordo com o ECA, o direito ao contraditório significa o direito de o adolescente ser ouvido, de poder falar a sua versão do fato ocorrido.

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Sobre a autora
Tainara de Jesus Souza

Mestra em Ciências Sociais (UFRB), Especialista em Educação em Gênero e Direitos Humanos (UFBA), Assistente Social (UFRB), Acadêmica de Direito (FACEMP).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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