A (in)constitucionalidade do mandado de condução coercitiva

05/03/2016 às 03:54
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Se o acusado não quer ir por vontade própria, estará, por dedução lógica, exercendo seu sagrado direito ao silêncio, e levá-lo coercitivamente é perca de tempo e uso prescindível e vão do aparato estatal.

Assistimos, na manhã de sexta-feira (4/2/2016), as notícias do mandado de condução coercitiva do ex-presidente Lula para “prestar esclarecimentos” à Polícia Federal. Um dia frenético no cenário político, com todo o bramido público que se pode esperar numa situação dessas. Tratava-se da 24ª fase da operação Lava Jato, cuja oportunidade foram expedidos 44 mandados judiciais, sendo 33 de busca e apreensão e 11 de condução coercitiva nos estados Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. A tônica ficou no fato da condução coercitiva do ex-presidente Lula. Era uma medida necessária, conveniente, apropriada, e, sobretudo, legal? É o que trataremos a seguir.

É notório que nenhum investigado/acusado pode ser levado coercitivamente à autoridade para prestar depoimento -- se o acusado não quer ir por vontade própria, estará, por dedução lógica, exercendo seu sagrado direito ao silêncio, e levá-lo coercitivamente é perca de tempo e uso prescindível e vão do aparato estatal. O direito ao silêncio (ou não autoincriminação) está celebrizado na Constituição, cujo princípio deriva do aforismo “ninguém está obrigado a produzir provas contra si mesmo (nemo tenetur se detegere) ”. Em suma, a ninguém é exigido participar de forma ativa na persecução penal, caso a atividade exercida pelo investigado/acusado forneça meios de prova que o incrimine.

A discussão, portanto, está justamente em torno do mandado de condução coercitiva ferir o direito de não autoincriminação -- se o fato acontecido com o ex-presidente Lula feriu o direito ao silêncio.

Vamos à análise.

A previsão legal do mandado de condução coercitiva encontra-se no art. 260, do CPP:

“Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.

Parágrafo único.  O mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no art. 352, no que Ihe for aplicável. ”

Assim, regra o nosso Código de Processo Penal que, não atendida a intimação do acusado (ou investigado) para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que não possa ser realizado sem ele, a autoridade mandará, por meio do mandado de condução coercitiva, conduzi-lo à sua presença. Significa que o acusado será privado de sua liberdade de locomoção pelo tempo que for necessário para ser levado à presença da Polícia Judiciária ou na Promotoria Criminal e participar de ato de investigação. Trata-se de medida cautelar de coação pessoal. Não será preso (não tem natureza de prisão cautelar), mas somente privado de sua liberdade pelo lapso temporal necessário à sua atuação na investigação. Quanto à autoridade competente, por força da cláusula de reserva jurisdicional, somente a autoridade judiciária poderá expedir o mandado de condução coercitiva (HC 94.173/BA, Rel. Min Celso de Melo). Ou seja, Lula só poderia ser levado coercitivamente por ordem legal do juiz competente, nunca por ordem do delegado ou promotor de justiça à frente das investigações. Nesse ponto, sabe-se que os mandados foram expedidos pelo Juiz da 13ª Vara Criminal, onde se processa a famigerada operação Lava Jato.

Dito isso, pode um mandado de condução coercitiva servir para interrogar um investigado/acusado? 

Como já visto, a Constituição proporciona ao indivíduo o direito ao silêncio e ao direito de não autoincriminar... (vide art. 5º, inciso LXIII, CF/88). Tal direito fundamental perpassa os limites territoriais da Constituição nacional, a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), em seu art. 8º., informa que:

“Garantias judiciais (...)

2. Toda pessoa acusada de um delito que tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...)

g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada”.

O Código de Processo Penal vigente foi decretado na década de 1941, devemos, portanto, examiná-lo sob a égide da CF 1988; e como norma infraconstitucional, deverá acatamento e junção material à Constituição para ser recepcionado. 

Destarte, a interpretação do art. 260, CPP à luz da Constituição deve ser a seguinte: NÃO pode o investigado ou acusado ser INTERROGADO por meio de mandado de condução coercitiva; assim como também não pode, v.g., comparecer a uma audiência de instrução, participar de acareação, prestar declarações, fazer exame pericial, participar da reconstituição, ou qualquer outra ordem que demande comportamento ativo.

Pode, contudo, ser levado coercitivamente a atuar na persecução criminal por “qualquer outro ato” (caput, art. 260, CPP), desde que esse outro ato não esteja protegido pelo ‘nemo tenetur se detegere’.  

Então qual o sentido do mandado de condução coercitiva efetuado hoje contra o ex-presidente da república, já que não poderia ele prestar depoimento por este meio de mandado? Tem sido comum a expedição de mandados desse tipo, sobremaneira, quando há a deflagração de grandes operações policiais. Isso porque, quando vários mandados de busca e apreensão são expedidos, habitualmente se expede também outros tantos de condução coercitiva aos sujeitos relacionados na operação, a fim de que o investigado em liberdade não atue destruindo provas [1]. A finalidade se encaixa, assim, por “qualquer outro ato”, qual seja, o de não sonegar as provas colhidas nos mandados de busca e apreensão. É uma privação de liberdade que não tem natureza de prisão cautelar (preventiva ou temporária), com o fim de manter o investigado longe da operação principal. Este parece ser o entendimento do Juiz Sérgio Moro, além do STF, como já visto no HC supracitado.

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Com a devida vênia, entendo o art. 260, CPP como revogado do ordenamento jurídico pela não recepção material da norma, pois, incompatível com a Constituição Federal de 1988, no que tange especialmente aos comportamentos exigidos que criem provas contra o acusado. A parte materialmente revogada possui destoante mitigação do direito a não autoincriminação. Contudo, ainda que o STF venha a reconhecer a recepção da norma pela Constituição, temos que a perquirição da polícia judiciária, do parquet, ou do juízo não pode simplesmente alastrar o art. 260, CPP por uma interpretação extensiva para alcançar um "fim maior"; o legislador não disse menos do que queria dizer (minus scripsit quam voluit), disse expressamente: aquele (acusado/investigado) que não atender a intimação. Ponto. Logo, ainda que o mandado seja “por outro motivo”, esse outro motivo deverá obedecer à pretérita intimação do inquirido, e este tenha se recusado a comparecer. É o que diz a lei (dura lex, sed lex). Ou estaríamos criando nova norma capaz de restringir a liberdade de investigados/acusados que não tenham pretérita recusa de comparecimento por intimação, para proteger as provas produzidas na busca e apreensão. A norma do 260 nem de longe prevê uma analogia como essa. 

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[1] cf. Renato Brasileiro: https://youtu.be/yXal8HW5wOE

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