RESUMO: Este trabalho tem por objetivo apresentar a família homoafetiva sob uma ótica jurídica, narrando uma breve trajetória histórica das famílias, demonstrando através da comparação com os diversos modos de instituição familiar e da análise principiológica do Direito das Famílias que esta também é digna de tutela estatal, posto que em sua essência possui a afetividade, requisito indispensável para ser família. Desta forma, a presente produção científica pretende romper paradigmas do Direito das Famílias, altamente conservadores, propondo o estudo de uma realidade existente há muito em nossa sociedade, fortalecendo a ideia de que toda a manifestação de amor com caráter familiar carece de respeito e proteção, em respeito à dignidade da pessoa humana.
Palavras Chave: Família Homoafetiva; Direito das Famílias; Afetividade; Dignidade da Pessoa Humana.
1. Introdução
A Família é o ponto comum de ligação entre a humanidade. Seus laços permeiam a história desde a criação do homem até a atualidade.
Sociologicamente, a família é, com razão, considerada como a base do Estado, fonte primária dos ensinamentos e experiências para se conviver em conjunto, carente de proteção estatal por ser instituição necessária, posto que o homem, assim como os demais seres vivos, tem a tendência de viver em grupo, para perpetuação da espécie ou mesmo como forma de fugir da solidão.
Para a religião a família é tida com sagrada, merecendo destaque em todos os credos como alvo da benção divina, principalmente, referindo-se ao Cristianismo, aquela formada entre um homem e uma mulher decorrente do casamento.
Para o Direito, talvez seja o instituto mais humano de todos abrangidos pela ciência jurídica, posto que sua existência decorre da própria vida e que todo o indivíduo provém dela e habita em seu seio, seja qual for o seu modo de constituição ou organização.
O estudo do Direito das Famílias surgiu com o propósito de disciplinar as relações entre pessoas unidas pelo matrimônio, união estável ou parentesco, bem como os institutos da tutela e curatela, pois estes têm intima relação com esse ramo de estudo do Direito.
Os princípios, no Direito das Famílias, assim como nos outros ramos da ciência jurídica, são os responsáveis pelas mudanças mais significativas, nos últimos tempos, dos institutos inerentes às formas de família existentes em nossa sociedade.
A dignidade da pessoa humana e a afetividade são os princípios de maior destaque no que tange a essas mudanças, pois são esses que justificam o maior sentido das famílias na atualidade: felicidade e amor familiar.
Em linhas gerais, como fruto do reconhecimento dessa necessidade primordial da família, o lar matrimonializado deu lugar a maneiras mais informais e, em sentido mais simples, práticas de se constituir família, baseadas exclusivamente nos laços de afeto. Seja matrimonial, informal, monoparental, anaparental, eudemonista, extensa ou homoafetiva, a família hoje é tida como entidade que merece proteção e respeito estatal e social.
Este trabalho versará sobre a família homoafetiva, quem vem vivendo um momento de discussão muito ampla, embora já bastante pacificada, quanto ao seu reconhecimento e os direitos decorrentes de sua formação. É fato que a mesma existe há muito, não só no Brasil, como em todo mundo. Todavia, ainda é tratada de maneira imprópria pelo ordenamento jurídico, que estabelece, assim como para a união estável entre homem e mulher, uma série de dificuldades quando da obtenção de direitos.
Pretende-se demonstrar, com o presente trabalho, que não há fundamento para esse tratamento diferenciado à entidade homoafetiva, posto que seus laços derivam do afeto, respeito e cuidado familiar, o que por si só já lhe confere autenticidade e direito à tutela estatal.
2. Evolução histórica das famílias
O termo “família”, se assim pode ser chamado, foi se moldando ao longo da linha do tempo. Não há, em qualquer das fases da História Antiga, Idade Média, Moderna ou Contemporânea, uma sociedade organizada sem que a família seja uma espécie de alicerce. Sua origem se deu há aproximadamente 4.600 anos atrás e até hoje muitas mudanças permeiam sua base.
A família brasileira deriva do modelo romano, que, por sua vez, buscou inspiração nas entidades familiares gregas.
Roma foi a responsável pela formação de um padrão sólido de união familiar, super valorizadora da figura masculina, fazendo-a uma sociedade extremamente patriarcal. O pátrio poder era exercido de maneira unitária, sujeitando todos os demais membros da família à figura de seu chefe, o pai. Esse personagem social, numa Roma altamente classista e machista, onde o rol de poderes patriarcais eram extensos, tinha direitos inclusive sobre a vida e morte de seus familiares.
Carlos Roberto Gonçalves entende que esse momento histórico de poder machista: “Podia, desse modo, vendê-los, impor-lhes castigos e penas corporais e até mesmo tirar-lhes a vida. A mulher era totalmente subordinada à autoridade marital e podia ser repudiada por ato unilateral do marido”. (GONÇALVES, 2014, p. 23).
Fato é que a família romana foi quem influenciou o Direito Brasileiro em elementos básicos com relação à família, em sua estrutura como unidade jurídica, econômica e religiosa, centrada na figura de um chefe, modelo tal que perdura até hoje.
O Direito Canônico, por volta do Século V, ao avistar uma crescente onda de descrença no casamento religioso, que causou o desaparecimento de uma ordem social estável durante séculos, transferiu o poder de Roma para as mãos do Chefe da Igreja Católica Romana.
Expressa Carlos Roberto Gonçalves que “com o Imperador Constantino, a partir do século IV, instala-se no direito romano a concepção cristã da família, na qual predominam as preocupações de ordem moral”. (GONÇALVES, 2014, p. 24).
No Brasil, entre os Códigos Civis de 1916 e 2002, além da evolução de costumes que possibilitou o fim da indissolubilidade matrimonial e extensão do poder familiar à mulher, houve o surgimento da magnífica carta de 1988, constituída sob uma efervescência de direitos humanos, elevando os Direitos das Famílias a um novo patamar de estudo no Direito Brasileiro.
O competente legislador constitucional tentou, claramente, superar as diferenças, preconceitos e desigualdades que a família brasileira possuía (ou ainda possui), bem como firmar as conquistas alavancadas, admitindo a união estável no corpo da Constituição, reduzindo de cinco para dois anos o tempo necessário para o divórcio direto, impedindo também qualquer discriminação que verse sobre a origem dos filhos, além de outros temas que antes só eram tratados pelas leis ordinárias, ganhando agora atenção de direito público, por meio da norma constitucional, conforme pode se observar em seu artigo 226, in verbis:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em 29 de Fevereiro de 2016.).
O Código Civil de 2002, vigente na atualidade, todavia, ainda prevê maneira limitada de convivência, que chega a ser alheia à realidade do mundo contemporâneo, talvez pelo projeto que lhe deu origem, datado de 1975, anterior à Constituição Federal de 1988, ou mesmo pela relutância dos diversos segmentos da sociedade em admitir uma nova realidade familiar na atualidade.
Os núcleos monoparentais, porém, chegam a ser aceitos como existentes por esse Código, o que manifesta uma mínima evolução.
Atualmente, o Direito das Famílias no Brasil vive um momento de transformações consideráveis.
A Família passa agora a ser encarada como um lugar que possibilite o exercício da personalidade humana com dignidade e respeito das diferenças existentes entre seus membros, e não mais a instituição engessada pelo matrimônio, como visto anteriormente. Hoje, a felicidade e os laços de afeto entre as pessoas substituíram os rito clássicos, que muitas vezes eram meros fundamentalismos, sem qualquer efeito prático em relação ao amor, elemento puro, que não tem forma e deve ser vivido pela família da nova era.
3. Princípios constitucionais inerentes ao reconhecimento de uma entidade familiar
Quando se fala em princípios logo se tem a ideia de seu conteúdo, que versa sobre início, origem, ponto de partida de algo. Pois este, realmente é o sentido de princípios no Direito, em seus diversos ramos de atuação. Eles são tidos na ciência jurídica como fonte de estudo e regra de caráter fundamental na tomada de decisões em conflitos de interesses.
Na realidade, nem sempre esses princípios estão descritos na lei de maneira expressa, mas sempre são base na elaboração dessas e suprem suas deficiências em casos concretos. Estes tem sempre alto grau de generalidade e devem ter conteúdo de validade universal. Por isso, em muitos casos prevalecem sobre as regras do Direito Positivado. “Um princípio, para ser reconhecido como tal, deve ser subordinante, e não subordinado a regras”. (DIAS, 2015, p. 37), assim expressa Maria Berenice Dias sobre esse assunto.
O texto Constitucional prevê uma gama de princípios a serem observados por toda a ordem jurídica nacional, seja a penal, civil, tributária ou qualquer outra especialidade na qual possa se subdividir o Direito. Essa grande expressão de princípios constitucionais se deu pela evolução do Legislador constituinte no tratamento de temas voltados para os indivíduos, tratados de maneira individual e coletiva no contexto social.
Maria Berenice Dias expressa essa mudança no tratamento dos princípios proposto com a edição da Constituição Federal de 1988, que a mesma denomina “Carta de Princípios”, nos seguintes dizeres:
Tornaram-se imprescindíveis para a aproximação do ideal de justiça, não dispondo exclusivamente de força supletiva. Adquiriram eficácia imediata e aderiram ao sistema positivo, compondo nova base axiológica e abandonando o estado ele virtualidade a que sempre foram relegados. (DIAS, 2015, p.36).
O Direito Civil foi constitucionalizado e a dignidade da pessoa humana supervalorizada em nosso ordenamento jurídico, por esse motivo a lei positivada tornou-se insuficiente para tratar de assuntos tão particulares como o Direito das Famílias, que exigem uma análise pormenorizada de cada situação em particular. Assim, a Constituição Federal passou a informar todo o sistema normativo nacional, garantindo a observância dessa dignidade humana e de outras necessidades especificas dos indivíduos, que não estão previstas muitas vezes na lei.
Feita essa análise introdutória do tema que será estudado no presente tópico, passemos a verificar os princípios constitucionais específicos do Direito das Famílias que versem sobre a Família Homoafetiva, tema central desse estudo científico, em especial a Dignidade da Pessoa Humana e a Afetividade, que elevam um grupo de pessoas reunidas a serem consideradas como entidade familiar.
3.1. Dignidade da Pessoa Humana
A Constituição Federal de 1988 o traz como comissão de frente em seu artigo primeiro[1] e por isso é considerado como princípio maior. É o núcleo da ordem da ordem social voltada para a promoção dos direitos humanos e da justiça social, fundante do estado democrático de direitos.
Torna-se um tanto quanto difícil exprimir em termos seu sentido, mas este se aplica a uma gama infinita de situações. Maria Berenice Dias diz que “talvez possa ser identificado como sendo o princípio de manifestação primeira dos valores constitucionais, carregado de sentimentos e emoções”. (DIAS, 2015, p. 41).
A dignidade da pessoa humana é um macroprincípio, do qual surgem todos os outros. É deste princípio que se tem uma ideia de cooperação, direito, uma perspectiva de melhora em meio a tantas dificuldades.
Com a elevação da dignidade da pessoa humana na ordem constitucional houve uma preocupação com a realização das pessoas em todos os institutos, provocando assim uma despatrimonialização, colocando o ser humano no centro das atenções do direito. Tal princípio funciona como norte na atuação do Estado, impondo muito mais do que limitações, mas provocando uma conduta ativa no sentido de proteger o indivíduo.
Para o Direito das Famílias, essa dignidade é fundamental, pois confere igualdade a todas as formas de instituição familiar, sendo indigno conferir tratamento diferenciado a esta ou àquela pela maneira como foi formada.
O afeto, solidariedade, respeito, amor e comunhão de vida são valorizados sob um olhar digno e humano, garantindo reconhecimento social para as entidades que prezam pelo crescimento de seus indivíduos, que exercem seus direitos de maneira individual e coletiva.
Dada essa análise da dignidade da pessoa humana como princípio da família, nota-se que sua doutrina é totalmente comum à família homoafetiva, que, portanto, merece proteção e reconhecimento sob essa visão humanitária.
Analisemos a afetividade, outro princípio que embasa a instituição familiar homoafetiva.
3.2. Afetividade
A Afetividade tem sido encarada nas atuais composições familiares como precedente fundamental para caracterização de um grupo como Família. Ela precede laços patrimoniais e biológicos e têm justificado uma série de mudanças quando de decisões acerca de famílias não tradicionais, como a homoafetiva, tratada nessa produção científica como tema central.
Esse afeto também tem influenciado na formação de uma globalização familiar, onde se observa uma maior interação entre as famílias de todo mundo causando assim um processo de humanização social.
O Estado tem posto como obrigação na Constituição Federal o dever de afeto por todos os cidadãos, o que deriva do direito de todos à felicidade. Essa obrigação do Estado reside muito mais do que em uma conduta negativa, de não interferência na vida das pessoas, mas na criação de projetos que promovam a realização dos indivíduos dentro e fora do seio familiar, formando uma comunidade consciente e feliz.
A maior manifestação de consideração do afeto no texto constitucional, mesmo que essa palavra não esteja expressa propriamente na Carta Magna, é o reconhecimento da união estável como entidade familiar, originada sem o selo do matrimônio e digna da tutela estatal, um avanço para a inúmera quantidade de famílias nessa situação jurídica.
Com isso, verifica-se uma nova ordem no direito de família, onde os sentimentos e emoções de seus membros são considerados, valorizando a função afetiva das entidades familiares.