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A Lei 9.613/98 e a necessidade ou não da condenação pretérita para a sua aplicação

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A lavagem de dinheiro é um apurado processo, dinâmico e detalhado, em que o agente, por meio de uma aparelhagem, busca dar aspecto lícito ao dinheiro sujo e advindo de fatos típicos pretéritos.

RESUMO: O coevo trabalho tem como desígnio analisar o crime de lavagem de capitais, tipificado na Lei 9.613/98. A lavagem de dinheiro é um apurado processo, dinâmico e detalhado, em que o agente, por meio de uma aparelhagem, busca dar aspecto lícito ao dinheiro sujo e advindo de fatos típicos pretéritos. Encobrindo, de tal modo, a natureza, localização ou propriedade de domínios, direitos e ou importâncias de origem delituosa. A expressão lavagem de capitais acaba por corresponder a um número indeterminado de condutas que buscam reintegrar no sistema financeiro um apontado valor que se origina por meio ilegal, objetivando dar uma suposta aparência lícita ao bastardo. Deste modo, a lavagem é de fato uma avançada engrenagem delituosa e composta por um conjunto de operações que tem como finalidade principal, reinserir com aspecto lícito, o objeto lucrativo da empreitada criminosa, alimentando assim, um círculo delituoso, trazendo inúmeras possibilidades na movimentação de tais recursos para o financiamento de outras atividades também consideradas como criminosas. Para que ocorra a materialização do crime de lavagem de capitais, crime este, acessório ou parasitário, primeiramente outro delito que afira lucro espúrio deverá ocorrer, sendo este denominado de crime antecedente. Diante desta afirmação, o presente trabalho acadêmico irá analisar o tema da lavagem de capitais e a questão dos crimes precedentes, assim como a não necessidade da condenação do crime pretérito para a aplicação da legislação antilavagem.

PALAVRAS-CHAVE: Crimes; Lavagem; Branqueamento; Antecedente; Capital

SUMÁRIO:INTRODUÇÃO.CAPÍTULO I - AS MUDANÇAS DE PARADIGMA QUE OCORRERAM NA CRIMINOLOGIA E O PROCESSO SELETIVO DE CRIMINALIZAÇÃO QUE OCORRE NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO.  1.1 A criminologia crítica e o processo de seleção criminalizante no sistema penal brasileiro. CAPÍTULO II - LAVAGEM DE CAPITAIS..2.1 A Expressão “Lavagem de Capitais”. 2.2 Conceito. 2.3 O Processo de lavagem de capitais e suas possíveis fases.2.4 A Lavagem de Capitais no Direito Internacional.  CAPÍTULO III - JUSTA CAUSA PROCESSUAL: A QUESTÃO DA DUPLICIDADE E A FIGURA DOS CRIMES ANTECEDENTES.3.1 Crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes ou drogas afins. 3.2 Crime de terrorismo. 3.3 Crime de Contrabando ou Tráfico de Armas. 3.4 Crime de Extorsão Mediante Sequestro. 3.5 Crime contra a Administração Pública. 3.6 Crime Contra o Sistema Financeiro do Brasil. CAPÍTULO IV - DA NECESSIDADE: MEDIDAS DE COMBATE A LAVAGEM DE CAPITAIS. 4.1 Medidas Assecuratórias. 4.2 As Pessoas Físicas e a Questão das Atividades Contra o Combate à Lavagem de Dinheiro  4.3 A quebra de sigilo. CONCLUSÃO.REFERÊNCIAS.                                            


INTRODUÇÃO

As atividades ilegais são consideradas uma constante preocupação, e tema central das discussões em todo o globo. Assim, determinados crimes que anteriormente eram restritos a algumas regiões, ultrapassaram fronteiras e hodiernamente são cometidos pelo mundo a fora, ganhando características transnacionais, bem como, consequentes prejuízos que de igual forma, suplantam tais barreiras.

Neste sentido, o crime de Lavagem de Capitais é considerado como um crime de proporções mundiais, e, que além do mais, necessita de outro para se caracterizar. Portanto, o crime de lavagem de dinheiro decorre de atividades criminosas com proveito financeiro.

Diante disto, a sua repressão acaba por depender de vários fatores, bem como, um consequente esforço conjunto entre os países e instituições financeiras, para que haja a implementação de ações que combatam o presente delito.

Assim, as leis vigentes nos vários países, com a inclusão do Brasil, apresentam como desígnio, inibir e ou impedir o uso de determinados setores da economia em benefício do crime antecedente, para que o proveito financeiro do mesmo não ocorra pela lavagem de capitais.

Neste sentido, a Lei n. 12.683, de 9 de julho de 2012 acabou por alterar a Lei n. 9.613, de 3 de março de 1998, tornando de forma mais eficiente a questão da persecução penal dos crimes de lavagem de capitais. Tendo em vista que uma de suas maiores e mais benéficas atualizações, refere-se à extinção do rol taxativo de crimes pretéritos e ensejadores da persecução penal e objeto da lei antilavagem. 

A legislação anterior trazia a previsão/taxatividade como pressuposto especial à questão do delito prévio, e, em razão disto, passava-se a obter tanto bens como valores, que deveriam ser “lavados” posteriormente por meio do sistema financeiro, para caracterizar o branqueamento. Assim, o principal problema era na realidade a comprovação da origem ilegal, bem como, criminosa desses recursos pretéritos.

Nesse diapasão, o presente estudo tem como objetivo analisar a questão da lavagem de capitais e o assunto do crime antecedente.

No que diz respeito à metodologia, esta se fundamenta em pressupostos teóricos de autores, tendo como base, a pesquisa bibliográfica, assim como, exploratória como meio de análise da interpretação crítica sobre o tema estudado.

Em relação ao processo de pesquisa, este tem como alicerce, material já elaborado, composto por livros, artigos científicos e jurisprudência acerca do assunto e tema. Diante do narrado, a pesquisa se alicerceará em quase sua totalidade a partir de fontes bibliográficas.

A monografia está elaborada em quatro capítulos e as considerações finais. A parte introdutória tem como finalidade apresentar uma visão geral do trabalho, apresentando os objetivos, problemática e justificativa. Por último encontram-se as considerações finais, compostas por uma análise pessoal do autor e a bibliografia consultada que compõem o mesmo.


CAPÍTULO I - AS MUDANÇAS DE PARADIGMA QUE OCORRERAM NA CRIMINOLOGIA E O PROCESSO SELETIVO DE CRIMINALIZAÇÃO QUE OCORRE NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO

Antes de adentrarmos no embate sobre a lavagem de capitais torna-se necessário uma breve explicação sobre as mudanças sofridas na Criminologia sob a ótica do branqueamento e da sociedade atingida.

Assim, a base teórica da Criminologia Crítica é a contraposição à criminologia positivista, que buscava a explicação dos comportamentos desviados em dados ontológicos e estudava as causas do crime, independente de um estudo da reação social e do sistema penal.

Desenvolvendo um estudo mais realista, conectado a um contexto atual de enorme desigualdade social mundial, a criminologia crítica vai muito além aos estudos das causas da criminalidade. Apresenta como principal objeto de estudo as várias estruturas das classes sociais, as superestruturas de controle político-jurídico e o processo de criminalização, apontando as desigualdades econômicas como um dos principais fatores da criminalização. Demonstra que a solução para o problema do crime passa pela abolição das diferenças sociais e a abolição da utilização dos estereótipos como um dos fatores principais para a criminalização.

Conforme explica Andrade[1], a Criminologia desde os anos de 1960 tem, experimentando a mudança do paradigma etiológico para o paradigma da reação social.

Sobre o paradigma etiológico de Criminologia, a professora Andrade[2] retrata que, tendo como matrizes fundamentais a Antropologia criminal de Cesare Lombroso e, voltando-se para a Sociologia Criminal de Enrico Ferri, a Criminologia passa a ser reconhecida como uma ciência.

A principal indagação feita pelo paradigma positivista e apresentada por Andrade[3] é o que o homem (criminoso) faz e por que o faz:

O pressuposto, pois, de que parte a Criminologia positivista é que a criminalidade é um meio natural de comportamentos e indivíduos que os distinguem de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos. Sendo a criminalidade esta realidade ontológica, preconstituída ao Direito Penal (crimes "naturais") que, com exceção dos chamados crimes "artificiais", não faz mais do que reconhecê-la e positivá-la, seria possível descobrir as suas causas e colocar a ciência destas ao serviço do seu combate em defesa da sociedade.

Os autores Garcia, Molina e Gomes[4] comentam sobre o paradigma positivista da Criminologia o seguinte:

O fator aglutinante do positivismo criminológico foi o método empíricoindutivo, que era sustentado pelos seus representantes frente à análise filosófico-metafísica que reprovavam na Criminologia Clássica. Referido método se ajustava ao esquema “causal- explicativo”, que o positivismo propôs como modelo ou paradigma de “ciência”. Os postulados da Escola Positiva podem ser sintetizados desta maneira: o delito é concebido como um fato real e histórico, natural, não como uma fictícia abstração jurídica; sua nocividade deriva não da mera contradição com a lei que ele significa, senão das exigências da vida social, que é incompatível com certas agressões que põem em perigo suas bases; seu objeto de estudo e compreensão são inseparáveis do exame do delinqüente e da sua realidade social; interessa ao positivismo a etiologia do crime, isto é, a identificação das causas como fenômeno, e não simplesmente a sua gênese, pois o decisivo será combatê-lo em sua própria raiz, com eficácia e, sendo possível, com programas de prevenção realista e científicos; a finalidade da lei penal não é restabelecer a ordem jurídica, senão combater o fenômeno social do crime, defender a sociedade; o positivismo concede prioridade ao estudo do delinqüente, que está acima do exame do próprio fato, razão pela qual ganha particular significação os estudos tipológicos e a própria concepção do criminoso como subtipo humano, diferente dos demais cidadãos honestos, constituindo esta diversidade a própria explicação da conduta delitiva. O positivismo é determinista, qualifica de ficção a liberdade humana e fundamenta o castigo na idéia da responsabilidade social ou na do mero fato de se viver em comunidade. Por último, propugna por um claro anti-individualismo inclinado a criar obstáculos à ordem social frente aos direitos do indivíduo e por diagnosticar o mal do delito com simplistas atribuições a fatores patológicos (individuais).

Para Barata[5] (2002, p. 42), os pressupostos ideológicos da Criminologia Positivista são resumidos em seis princípios:

a) princípio do bem e do mal – Reconhece que o delito é um dano inquestionável para a sociedade. O marginal é um fator negativo em meio à sociedade. Portanto, a ação criminosa representa o mal, e, a sociedade a figura do bem.

b) princípio da culpabilidade - O fato penalizado é a expressão de uma ação antissocial do delinquente que, conscientemente, por meio de condutas, infringe as exigências da norma jurídica.

c) princípio da legitimidade - O Estado legitimado pela sociedade tem a função de reprimir a criminalidade, por meio das instâncias oficiais de controle do Direito Penal (legislação, polícia, magistratura e instituições penitenciárias). Importante salientar que ocorre uma interpretação real da sociedade e sua reação, ou seja, reprovação e condenação que pauta o comportamento apresentado pelo indivíduo, bem como, a consequente reafirmação dos valores e normas sociais.

d) princípio da igualdade – A norma penal é imposta igualmente a todos os integrantes da sociedade. A reação penal aplica-se igualmente a todos os delinquentes.

e) princípio do interesse social e do delito natural – A norma penal protege interesses comuns da sociedade. Somente alguns poucos fatos penais apresentados no Código Penal correspondem ao interesse de grupos políticos ou econômicos. De um modo geral, os interesses tutelados pelo direito penal são interesses comuns a todos os integrantes da sociedade.

f) O princípio da finalidade ou da prevenção – A pena tem a função de prevenir o delito. Serve para criar uma “contra motivação” ao comportamento delituoso e tem a função de ressocializar o criminoso.

Ainda sobre o paradigma positivista, esclarece Baratta[6] que a primeira resposta para tentar explicar as causas do crime mediante a Criminologia Positivista partiu do médico italiano Cesare Lombroso, que buscou encontrar a causa do delito na totalidade psicológica, biológica e social do indivíduo, sendo o crime considerado como algo inerente do próprio criminoso.

Os autores Garcia, Molina e Gomes[7] apresentam o ponto de vista de Lombroso da seguinte forma:

O delinguente padece de uma série de estigmas degenerativos comportamentais, psicológocos e sociais (fronte esquiva e baixa, grande desenvolvimento dos arcos supraciliais, assimetrias cranianas, fusão dos ossos atlas e occipital, grande desenvolvimento das maçãs do rosto, orelhas em forma de asa, tubérculo de Darwin, uso freqüente de tatuagens, notável insensibilidade à dor, instabilidade afetiva, uso freqüente de um determinado jargão, altos índices de reincidência etc.). Em sua teoria da criminalidade Lombroso inter-relaciona o atavismo, a loucura moral e a epilepsia: o criminoso nato é um ser inferior, atávico, que não evolucionou, igual a uma criança ou a um louco moral que ainda necessita de uma abertura ao mundo dos valores; é um indivíduo que, ademais, sofre alguma forma de epilepsia, com suas correspondentes lesões cerebrais.

E acrescenta Andrade[8]:

Partindo do determinismo biológico (anatômico-fisiológico) e psíquico do crime e valendo-se do método de investigação e análise próprio das ciências naturais (observação e experimentação), procurou comprovar sua hipótese através da confrontação de grupos não criminosos com criminosos dos hospitais psiquiátricos e prisões sobretudo do sul da Itália.

Baratta[9] salienta que a visão antropológica lombrosiana seria posteriormente trabalhada por outras ciências, como por Garófalo, abrangendo os fatores psicológicos, bem como, por Ferri, em relação aos fatores considerados sociológicos, materializando em sua obra Sociologia Criminale, em 1900.

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Posterior ao paradigma positivista, Andrade[10] explica que na América do Norte iniciou-se uma mudança de paradigma na Criminologia, denominado o paradigma da "reação social" (social reation approach) do "controle" ou da "definição". O denominado labelling approach parte dos conceitos de "conduta desviada" e "reação social", formulando, portanto, sua tese principal:

(...) o desvio - e a criminalidade - não é uma qualidade intrínseca da conduta ou uma entidade ontológica pré-constituida à reação social e penal, mas uma qualidade (etiqueta) atribuída a determinados sujeitos através de complexos processos de interação social; isto é, de processos formais e informais de definição e seleção.

Andrade[11] descreve que ocorre a ruptura do paradigma positivista, dando origem ao paradigma da reação social que se utiliza de um modelo de estudo dinâmico e contínuo que reclama a redefinição do próprio objeto criminológico. Tal ruptura desqualifica as estatísticas criminais oficiais como instrumento de acesso à realidade criminal.

Explica Andrade[12] que o objeto de estudo passa a não ser mais o mesmo da Criminologia Positivista, que questiona quem é criminoso. O interesse do paradigma da reação social e sua investigação das causas do crime para a conduta desviada é especialmente no que se refere ao sistema penal como principal meio do processo de etiquetamento do indivíduo.

Neste sentido, Andrade[13]afirma que:

[...] ao invés de indagar, como a Criminologia tradicional, “quem é o criminoso?, “por que é que o criminoso comete crime? O labelling passa a indagar “quem é definido como desviante?”, ”por que determinado indivíduos são definidos como tais?”, “em que condições um indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?”, “que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?”, “quem define quem?”, e, enfim, com base em que leis sociais se distribui e concentra o poder da definição?”

Continua Andrade[14] retratando que:

Uma conduta não é criminal "em si" (qualidade negativa ou nocividade inerente) nem seu autor um criminoso por concretos traços de sua personalidade ou influências de seu meio ambiente. A criminalidade se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos mediante um duplo processo: a "definição" legal de crime, que atribui à conduta o caráter criminal e a "seleção" que etiqueta e estigmatiza um autor como criminoso entre todos aqueles que praticam tais condutas.

No que diz respeito ao tema, Baratta[15] aduz que não se pode estudar o paradigma da reação social se não se estudar a ação do sistema penal, iniciando pelas leis até a ação dos orgãos oficiais (juízes, polícia e instituições penitenciárias),

e que, por isso, o status social de delinqüente pressupõe o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinqüência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias.

Define Becker[16] a tese do etiquetamento como sendo um grupo de pessoas que cria o desvio social mediante suas regras, cujo delito passa a ser o desvio, aplicando as regras a certas pessoas em particular e qualificando-as como delinquentes. Assim, o desvio social passa a ser consequência da aplicação de normas que outros fazem contra o ofensor. O desviante é a pessoa a quem se pode aplicar o etiquetamento; “a conduta desviante é a conduta assim chamada pela gente”.

Um dos pontos fortes da tese do paradigma da reação social é o questionamento dos princípios do bem e do mal, o princípio da culpabilidade, o princípio da legitimidade, o princípio do interesse social e do delito natural, o princípio da igualdade e o princípio do fim e da prevenção, apresentados pelo paradigma positivista.

Conforme explica Andrade[17], o paradigma da reação social põe em cheque alguns princípios. Começa pelo princípio do bem e do mal apresentado pelo paradigma positivista, quando este declara que as causas do desvio delituoso não se localizam em problemas patológicos, mas que, contrariamente, a criminalidade é um acontecimento normal na sociedade, e qualquer individuo está sujeito a praticá-la.

O princípio da culpabilidade também é questionado quando as teorias das subculturas criminais se opõem a esse princípio, negando que o comportamento criminoso pode ser interpretado como uma atitude contrária aos valores e às normas sociais gerais. Essas teorias declaram que existem valores e regulamentos próprios de diversos grupos sociais (subculturas), e que as normas e valores desses grupos sociais, mediante instrumentos de interação, são absorvidos pelos indivíduos pertencentes ao grupo, determinando um comportamento paralelo com os valores e normas determinadas pelo direito, ou pela moral oficializada pela sociedade[18].

O princípio da legitimidade também é posto em cheque pelas teorias psicanalíticas da criminalidade e do Direito Penal. Na realidade, os mecanismos da pena utilizados substituem as funções preventivas e ressocializantes, nas quais se baseia a tese penal tradicional do paradigma positivista[19].

Quanto ao princípio da igualdade, este é refutado pelo paradigma da reação social, quando tal paradigma expõe que o desvio é uma qualidade atribuída a algumas pessoas por mecanismos oficiais e não oficiais de definição e seleção (etiquetamento). Não é imposta igualmente a todos os integrantes da sociedade independente de características ontológicas[20].

Também não deixou de ser questionado o princípio do fim e da prevenção. Pelos resultados de investigações sobre a efetividade da pena, contestam-se a função reeducativa e a ideologia do tratamento, bem como o significado de reeducação e ressocialização mediante a pena.

E, por fim, o princípio do interesse social e do delito natural também é posto em evidência. No processo de criminalização primária (gênese da lei penal) e secundária (aplicação da lei penal) não há interesses sociais, mas sim interesses de grupos de poder[21].

Sobre o princípio do interesse social e do delito natural, Baratta[22] enfatiza que o paradigma da reação social nega o princípio do interesse social e do delito natural, retratando que:

os interesses que estão na base de formação e da aplicação do direito penal são os interesses daqueles grupos que têm o poder de influir sobre os processos de criminalização – os interesses protegidos através do direito penal não são, pois, interesses comuns a todos os cidadãos; a criminalidade, no seu conjunto, é uma realidade social criada através do processo de criminalização.

Assim, é importante entendermos como uma conduta desaprovada pela sociedade passa a ser tipificada como crime. Deste modo, torna-se importante reescrever a explicação de Fernandes e Fernandes[23] (2002, p. 558), afirmando que:

(...) o crime apenas existirá como tal enquanto a sociedade, através do legislador penal, assim o entender. Portanto, o crime não é algo em si mesmo, mas um acontecimento que é rotulado de delituoso pela lei expressa, lei que redundou da observação pessoal do legislador criminal que, nessa conduta, viu um fato penal punível. Portanto, o crime não existe em si mesmo, decorrendo da definição legal que, por sua vez é o resultado de uma apreciação subjetiva que procura consubstanciar o reclamo social. Destarte, a lei penal não seria uma realidade em si, mas uma maneira particular do legislador ver e concretizar a realidade, mesmo quando ele leva em conta a reivindicação coletiva.

Posto isso, voltamos aos comentários sobre o movimento da Criminologia Crítica, que, conforme explica Lyra e Araújo[24], possui outros sinônimos, como, por exemplo, a denominação de Nova Criminologia, Criminologia Radical, Economia Política do Crime ou Criminologia Moderna.

A Criminologia Crítica teve seu início, conforme explicam Nagel e Ancel[25], no movimento estudantil de 1968, que visava ir contra a sucumbência universitária aos interesses e preconceitos do neocapitalismo, tendo como vanguardeiros os integrantes do Grupo Europeu para o estudo da conduta desviada e do controle social, de Nagel, Taylor, Walton e Young.

Em Velo[26], a origem do movimento da Criminologia Crítica ocorreu nos Estados Unidos da América, mais precisamente no século XX, quando a Sociologia Criminal se aperfeiçoou naquele país, despertando assim o discurso da Criminologia Crítica. Assim, em 1968, esse movimento foi consolidando-se, dando origem à obra Outsiders, de Becker (1968) e a publicação de The New Criminology, dos ingleses Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young em 1975.

No caso brasileiro, explica Velo[27], o movimento teve seu início em meados dos anos 70, a partir dos estudos e escritos de Roberto Lyra Filho (Criminologia dialética, 1972) e posteriormente com Juary Cirino dos Santos (Criminologia da repressão, 1979), e (Criminologia radical, 1981).

Já Shecaira[28] aprofunda o estudo sobre o surgimento da Criminologia Crítica, e descreve que esta teve sua origem a partir do livro Punição e Estrutura Social, escrito por Georg Rusche e Otto Kirchheimer. Mas, tal obra só passou a ser reconhecida e ser utilizada por outros estudiosos nos anos 70. Fora, então a partir deste momento que surgiram alguns movimentos de estudo sobre o que preceituava o livro de Rusche e Kirchheimer, sendo os principais, o da Universidade de Berkeley (California,EUA), com influência de H. e J. Schwendinger e T. Platt; e o movimento inglês, organizado por Taylor, Walton e Young.

No que diz respeito a questão da Criminologia Crítica, Baratta[29]  explica que se trata de uma tese econômico-política, que se utiliza de hipóteses desenvolvidas no âmbito marxista, as quais preparam o estudo da criminologia crítica que tem como objeto de estudo o comportamento socialmente negativo, do delito e da criminalização.

A tese defendida pela Criminologia Crítica contrapõe-se totalmente à tese defendida pela Criminologia Positivista. Na visão apresentada pela Criminologia Crítica, criminalidade não deriva mais de comportamentos ontológicos de algumas pessoas da sociedade, e sim como um “status” atribuído à pessoa mediante dupla seleção: a primeira, refere-se à escolha dos bens tutelados pelo direito penal e a descrição no código penal (tipificação) dos comportamentos negativos socialmente; a segunda, à escolha das pessoas que serão enquadradas pela sociedade como criminosas, dentre todas as demais pessoas que também cometem ilícitos.

O ápice da Criminologia Crítica ocorre quando esta passa a dar enfoque aos mecanismos de controle social e ao processo de criminalização. Considera o Direito Penal como um sistema dinâmico, no qual se podem distinguir três mecanismos:

- Mecanismo – responsável pela produção da norma, é a criminalização primária;

- Mecanismo da aplicação da norma: responsável pelo processo penal, abrange a compreensão da ação, atingindo tanto os órgãos de investigação como o juízo (criminalização secundária);

- Mecanismo da execução da pena ou das medidas de segurança: é a criminalização terciária.

Para cada mecanismo citado anteriormente, bem como, o processo considerado como de criminalização, a análise teórica e pesquisas empíricas conduziram a crítica do direito penal como sendo desigual.

Resumido em três proposições:

a) o direito penal não tem o condão de defender realmente todos os bens, mas apenas os considerados como essenciais, estando estes ligados aos interesses dos cidadãos, punindo, assim, as ofensas aos bens essenciais no que diz respeito a desigualdade e o modo fragmentário;

b) a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso acaba por ser distribuído igualmente entre os indivíduos desiguais;

c) o grau efetivo de tutela, bem como, a distribuição do status de criminoso não depende realmente da danosidade social das ações nem mesmo da gravidade das infrações à lei, sendo que estas não constituem realmente a variável da reação criminalizante e sua consequente intensidade.

Neste sentido explica Baratta[30] que:

o direito penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas.

Enfatiza Baratta[31] que a Criminologia Crítica se coloca em posição contrária ao enfoque biopsicológico da tradicional criminologia.

A Criminologia Crítica historia a realidade do comportamento desviante e põe em evidência sua relação funcional ou disfuncional com as estruturas sociais, com o desenvolvimento das relações de produção e distribuição. O salto qualitativo que separa a nova da velha Criminologia consiste, todavia, sobretudo na superação do paradigma etiológico, que era o paradigma fundamental de uma ciência entendida naturalística como teoria das “causas”da criminalidade. A superação deste paradigma comporta também a de suas implicações ideológicas: a concepção do desvio e da criminalidade como realidade social e institucional e a aceitação acrítica das definições legais como princípio de individualização daquela pretendida realidade ontológica.

A professora Andrade[32] explica que a Criminologia Crítica surge para resgatar as condições objetivas, que dão causa aos comportamentos desviantes em nossa sociedade economicamente capitalista, separando as condutas realizadas pela classe dominada e as condutas realizadas pela classe dominante.

Assim, Garcia, Molina e Gomes[33], afirmam que em razão da Criminologia Positivista, entendeu-se o delito como um conflito individual entre a pessoa do delinquente, integrante da classe baixa, e a norma penal, fato característico de uma parcela mínima da população desviada. Sempre se buscou as causas do crime nos fatores biofísicos e biopsíquicos da pessoa criminosa.

Com o crescimento de crimes como o do colarinho branco, do tráfico, dos atos infracionais praticados por crianças e adolescentes e o crescimento da cifra obscura do crime, percebeu-se que o crime não é mais cometido por um tipo criminoso específico, e sim por um número maior de pessoas que independem de um estereótipo determinado ou classe social. Com isto, a desviação passa a ter um sentido diferente do tradicional (patológico), quando se verifica que todas as pessoas de uma sociedade estão sujeitas a “impulsos desviados”.

Com o surgimento da Criminologia Crítica, buscou-se redefinir seu objetivo, ampliando o estudo sobre os controles sociais e processos de seleção, bem como problematizar o conceito de delito e de reação social, intencionando assim ter a função de ser crítica na análise do comportamento desviante, renunciando aos esquemas causais e positivistas, pretendendo tornar-se uma teoria social da desviação, científica, crítica, autônoma e interdisciplinar, e não simplesmente atuar na função auxiliar e legitimadora do sistema social, de uma disciplina acadêmica, submetida à dogmática positivista, refugiada em estatísticas oficiais.

Enquanto a criminologia tradicional tende a caracterizar a ordem social como monolítica e consensual, com uma minoria de sujeitos nas margens da sociedade, a criminologia crítica defende a existência de vários valores localizados em diversas subculturas existentes em uma sociedade capitalista e industrial.

Sobre a forma de controle do comportamento desviado utilizado pelo Estado, a Criminologia Crítica também faz suas observações aduzindo que, longe de extinguir o crime, de preveni-lo ou ressocializar o criminoso, esse tipo de controle de comportamento só tende a estigmatizar a pessoa, reforçando ainda mais o status de criminoso no indivíduo.

Conforme ensina Fernandes e Fernandes[34], a Criminologia Crítica tem por objetivo a criação de uma tese materialista do Direito e do Estado junto às sociedades capitalistas, para identificar os instrumentos de controle da coletividade. Tal teoria defende que a criminalidade surge devido às condições econômicas diferenciadas entre os indivíduos. E reforça esse entendimento enfatizando que toda violência tem por determinante a tensão existente entre a classe abastada, de um lado, e os menos favorecidos economicamente, do outro lado. Assim, o compromisso primário da Criminologia Crítica é o de abolir as desigualdades sociais com relação a riqueza e poder, sendo a solução para o problema do crime a eliminação da exploração econômica e opressão política sobre as classes hipossuficientes.

A Criminologia Crítica é um movimento marcado pelo questionamento da ordem social, que dá origem ao fenômeno delinquencial, sempre visando às condições estruturais da desigualdade material e da criminalização econômica nas sociedades divididas pela exploração de classes.

Enfatizam ainda Fernandes e Fernandes[35] que a Criminologia Crítica desenvolve uma forte reflexão sobre o sistema de controle social desenvolvido pela Criminologia Positivista, sendo esta adotada pelo próprio Estado, que tem como um de seus instrumentos o Direito Penal que:

seleciona e diferencia facciosamente os bens e interesses jurídicos a serem tutelados por via da incriminação das condutas desviantes que os ataquem ou coloquem em perigo. Assim o processo de criminalização seria escancaradamente elitista, incriminando perfeitamente condutas típicas das classes sociais baixas e privilegiando ou contemporizando, por outro lado, os comportamentos das classes mais elevadas.

Para Fernandes e Fernandes[36], a Criminologia Crítica

é um movimento radical, caracterizado pelo questionamento da ordem social que gera o fenômeno delinqüencial e pelo compromisso com uma prática social transformadora, tudo com vista às condições estruturais da desigualdade material e da marginalização econômica nas sociedades sedimentadas na divisão e na exploração de classes. Questionamento, esse, que tem por apoio as categorias fundamentais do pensamento marxista. Enfim, os criminólogos críticos proclamam que o crime e a criminalidade não serão equacionados e resolvidos sem alterações profundas e radicais na base estrutural da sociedade capitalista.

Fernandes e Fernandes[37] afirma que, aduzindo que a criminologia crítica

reprova a teoria criminológica tradicional, com embasamento no método e nas categorias do marxismo e a conseqüênte negação do modelo capitalista dominante, a par de estabelecer novos conceitos na área do crime e de seu controle social. Para a Criminilogia Crítica as teses criminológicas convencionais são exasperadamente repressivas. Demais, como posição integral, enquanto observa o homem em todos os seus aspectos, a escola do materialismo dialético, abeberada em Karl Marx e Frederic Engels, sustenta que a criminalidade aflora em consonância com as condições econômicas desenfreadamente diferenciadas [...]. Enfatiza a Criminologia Dialética ou Crítica, que praticamente toda violência ou risco social tem por determinante a tensão existente entre os economicamente poderosos e seus apaniguados de um lado, e aqueles que nada têm a perder de outro lado.

Shecaira[38] mostra que a linha de raciocínio da Criminologia Crítica acontece sob a crítica da criminologia tradicional, que é incapaz de entender o fenômeno criminal. E que tal entendimento está relacionado ao pensamento marxista, pois relaciona o crime com o modo de produção capitalista.

Shecaira[39] esclarece que para os críticos os atos são tipificados como criminosos porque a classe dominante deseja ser assim definido.

Os críticos declaram que os indivíduos pertencentes a classes hipossuficientes são definidos como criminosos e os das classes abastadas não, porque o domínio das classes abastadas sobre os meios de produção capitalista dá a elas o controle do Estado, bem como a execução da norma penal.

Diante disso, Shecaira[40] explica que a Criminologia Crítica contribuiu pelo fato de sua fundamentação quanto ao ato desviado dever ser investigado nas bases estruturais econômicas e sociais, nas quais vive a sociedade onde está inserido o autor do delito. Mediante uma visão crítica, a Criminologia Crítica busca reduzir a desigualdade entre classes sociais, fazendo repensar a política criminalizadora do Estado, assumindo, portanto, a criminalização, bem como, penalização das classes sociais consideradas dominantes: criminalidade econômica e política (abuso de poder), práticas antissociais na área de segurança do trabalho, da saúde pública, do meio ambiente, da economia popular, do patrimônio coletivo estatal e contra o crime organizado.

Portanto, a Criminologia Crítica diferencia os crimes cometidos pelas classes dominantes (crime do colarinho-branco, racismo, corrupção dos agentes estatais, crime organizado e belicismo) e os crimes praticados pela classe dominada.

Defende uma maior intervenção punitiva para classe dominante, e uma diminuição da intervenção punitiva contra as classes dominadas.

Explica Quinney[41] que o Estado existe para manter a estabilidade na sociedade civil, e que o direito é um conjunto de normas estabelecidas por consenso por aqueles que são governados, para justamente manter essa estabilidade social. Mediante uma visão crítica que contraria a visão dominante, o Estado “é criado por aquela classe da sociedade que tem poder para impor sua vontade sobre o resto da sociedade”, objetivando assim a proteção de sua riqueza.

A classe dominante a que o autor se refere é aquela que detém os meios de produção e que em virtude de seu poder econômico se utiliza do Estado como instrumento de dominação da sociedade. Desta forma, o Estado e seu sistema legal passam a servir essa classe dominante, impedindo as classes dominadas de se tornarem poderosas. Qualquer ameaça à regra determinada pode ser abafada pela principal arma da classe dominante e criada por ela mesma, que é seu sistema penal.

Quinney[42] resume as explanações, descrevendo que:

Compreender que o sistema legal não serve à sociedade como um todo, mas serve aos interesses da classe dominante, é o começo de uma compreensão crítica do direito criminal, na sociedade capitalista. A classe dominante, através de seu uso do sistema legal, é capaz de preservar a ordem doméstica que permita aos interesses econômicos dominantes serem mantidos e promovidos [...]. Em uma análise critica da ordem legal, nós compreendemos que o Estado capitalista é um instrumento coercitivo que serve uma classe particular, a classe econômica dominante. Através do sistema legal, então, que o Estado explicitamente e poderosamente protege os interesses da classe dominante.

Quinney[43] explica como o Estado e as classes dominantes se utilizam do Direito Criminal.

O Direito Criminal é utilizado pelo Estado e pela classe dominante para garantir a sobrevivência do sistema capitalista. E como o sistema capitalista invariavelmente é ameaçado por suas próprias contradições, cada vez mais o Direito Criminal é usado na tentativa de assegurar a ordem doméstica. A classe inferior, a classe que deve permanecer oprimida para o triunfo da classe econômica dominante, continuará a ser o objeto do Direito Criminal enquanto a classe dominadora procura perpetuar a si mesma.

Declara Conde[44] que o direito e o Estado não partem de um consenso geral de vontades, sendo estes na verdade reflexo de um modo de produção e uma maneira de proteger a classe dominante e seus interesses. Conde[45] complementa:

Transladada esta idéia para o direito penal, isso significa a negação radical do mito do direito penal como direito igualitário,e, com ela, a ilegitimidade de todo intento de entender a pena como prevenção integradora do consenso social. Como a nova criminologia pôs em relevo, a partir da realização de diversas investigações empíricas, o direito penal não protege por igual todos os bens relativos a que têm igual interesse todos os cidadãos; tampouco a lei penal é igual para todos, nem o status de criminoso se aplica por igual a todos os sujeitos independentemente da danosidade social e da gravidade das infrações à lei penal por eles realizadas. Basta só recordar o distinto tratamento que recebem os delitos contra a propriedade e os delitos econômicos. A tese do direito penal como direito igualitário e da pena como prevenção integradora do consenso é insustentável como modelo de sociedade baseada na desigualdade e na exploração do homem pelo homem [...]. A grande descoberta de uma nova criminologia consiste precisamente em haver demonstrado a contradição existente entre direito penal presumidamente igualitário e uma sociedade profundamente desigual.

O Estado de Direito sobre estas bases só pode produzir um direito do Estado que reflita e manifeste necessariamente os interesses da classe dominante.

De acordo com o que descreve Velo[46],

a Criminologia Crítica sentencia o verdadeiro mal que o sistema penal tem proporcionado através de suas múltiplas modalidades de controle social, também esvaziando alguma esperança que eventualmente exista quanto à eficácia de seu caráter reativo, uma vez que é construído e dirigido sob o domínio das emoções capitalistas.

1.1 A criminologia crítica e o processo de seleção criminalizante no sistema penal brasileiro

Conforme já mencionado e explicado por Baratta[47], o ápice da Criminologia Crítica surge quando passa a dar enfoque aos mecanismos de controle social e o processo de criminalização. Esse processo de criminalização está dividido em três mecanismos: o mecanismo da produção da norma (criminalização primária), o mecanismo da aplicação da norma, isto é, o processo penal, compreendendo a ação dos órgãos de investigação e culminando com o juízo (criminalização secundária), e o mecanismo da execução da pena ou das medidas de segurança (criminalização terciária).

Na obra de Alagia, et al[48], os autores explicam que o processo seletivo de criminalização acontece em duas etapas, que são conhecidas como criminalização primária e criminalização secundária. A criminalização primária é desenvolvida pelo poder legislativo do país mediante o “ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas”. A criminalização secundária é desenvolvida pelas conhecidas agências de criminalização secundária (policiais, promotores, advogados, juízes, agentes penitenciários). Essas agências estão incumbidas de aplicar as leis penais sancionadas pelo poder legislativo no momento da criminalização primária.

De acordo com o que descreve Alagia, et al[49], a seleção criminalizante concentra-se mais no momento da ocorrência da criminalização secundária, quando, devido à limitada capacidade operativa das agências de criminalização secundária, abrangendo as agências policiais, estas não tem outra forma de trabalhar se não proceder de modo seletivo.

Continuando a explicação sobre as agências policiais, Alagia et al[50] esclarecem que:

as agências policiais não selecionam segundo seu critério exclusivo, mas sua atividade neste sentido é também condicionado pelo poder de outras agências: as de comunicação social, as agências políticas etc. A seleção secundária provém de circunstâncias conjunturais variáveis. A empresa criminalizante é sempre orientada pelos empresários morais, que participam das duas etapas de criminalização; sem um empresário moral, as agências políticas não sancionam uma nova lei penal nem tampouco as agências secundárias selecionam pessoas que antes não selecionavam [...] a empresa moral acaba sempre desembocando em um fenômeno comunicativo: não importa o que seja feito, mas sim como é comunicado. A reinvindicação contra a impunidade dos homicidas, dos estupradores, dos ladrões e dos meninos de rua, dos usuários de drogas etc., não resolve nunca com a respectiva punição de fato, mas sim com urgentes medidas punitivas que atenuem as reclamações na comunicação.

Assim, conclui Alagia et al[51] que em regra a criminalização secundária se resume em selecionar fatos grosseiros e de pessoas que causem menos transtornos, devido sua capacidade de acesso ao poder político e econômico. Tais atos grosseiros, cometidos por pessoas sem acesso positivo ao poder político e econômico, são divulgados pela comunicação social como sendo os únicos delitos cometidos por pessoas reconhecidas como os únicos delinquentes, contribuindo, assim, para a criação de um único estereótipo de criminoso no imaginário da sociedade.

Desta forma, Alagia et al[52] enfatizam ser inevitável ter as agências de criminalização secundária preferência na seleção de pessoas sem poder algum e por fatos grosseiros. Suas características fisiológicas e sociológicas enquadram-se nos estereótipos criminais; sua educação só lhes permite cometer atos ilícitos e porque existe uma etiquetagem desenvolvida pelo sistema penal, que corresponde ao estereótipo e ao comportamento delitivo.

E complementam Alagia et al[53], aduzindo:

o estado de vulnerabilidade será mais alto ou mais baixo consoante a correspondência com o esteriótipo for maior ou menor [...]. Em geral, já que a seleção dominante corresponde a estereótipos, a pessoa que se enquadra em algum deles não precisa fazer um esforço muito grande para colocar-se em posição de risco criminalizante, porquanto se encontra em um estado de vulnerabilidade sempre significativo. Quem, ao contrário, não se enquadrar em um esteriótipo, deverá fazer um esforço para posicionar-se em situação de risco criminalizante, de vez que provém de um estado de vulnerabilidade relativamente baixo.

Concluindo este capítulo e sintetizando o que descrevem Alagia et al[54] sobre o processo seletivo na criminalização secundária, fica claro que o sistema penal opera para selecionar as pessoas mais vulneráveis e susceptíveis à criminalização e possuidoras de estereótipo Criminalizante que se encaixem no contexto deletério do crime.  

Resta por fim, evidenciado que aqueles desprovidos ou menos abastados de características socioeconômicas e fisiológicas desejáveis, amargam a prisão, acusação e a condenação, por meio dos delegados, promotores e juízes, que incansavelmente perpetuam a mazela da seleção das pessoas mais vulneráveis e susceptíveis a revolvessem criminosas. 

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Sobre o autor
André Luiz Rapozo de Souza Teixeira

Doutorando em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC (2020-2025); Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia - UFBA com investigação realizada sobre a tutela penal da ordem econômica (2018); Especialista lato sensu em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes - UCAM (2016); Especialista lato sensu em Ciências Criminais pela Faculdade Baiana de Direito - FBD (2015); Bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador - UCSAL (2012); Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM e ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI; Advogado (2012); Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, André Luiz Rapozo Souza. A Lei 9.613/98 e a necessidade ou não da condenação pretérita para a sua aplicação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4648, 23 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/47368. Acesso em: 26 abr. 2024.

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