É possível conciliar a audiência de custódia e a prisão por mandado?

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O texto busca mostrar a impertinência da realização das audiências de custódia por decorrência do cumprimento de mandado de prisão cautelar ou definitiva.

No plano internacional, o instituto da “audiência de custódia” (ou “audiência de apresentação”, como prefere o Min. Luiz Fux[2]) encontra guarida no art. 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada de Pacto de São José da Costa Rica), segundo o qual “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz […]”. No mesmo sentido, assegura o art. 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos que “qualquer pessoa presa ou encerrada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz […]”.

Em âmbito interno, invocando a concepção segundo a qual “o direito convencional de apresentação do preso ao Juiz, consectariamente, deflagra o procedimento legal de habeas corpus, no qual o Juiz apreciará a legalidade da prisão, à vista do preso que lhe é apresentado, procedimento esse instituído pelo Código de Processo Penal, nos seus artigos 647 e seguintes”, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.240, reconheceu a constitucionalidade do instituto.

Pouco tempo depois, o Plenário do STF concedeu parcialmente a providência cautelar solicitada na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347 que, fundada (também) na tese do estado de coisas inconstitucional, em razão de um quadro insuportável e permanente de violação de direitos fundamentais a exigir intervenção do Poder Judiciário, pedia providências para a crise prisional do país. Então, nossa Suprema Corte decidiu por determinar aos juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 (vinte e quatro) horas, contados do momento da prisão.

Na sequência, o Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução nº 213/2015, regulamentou o dever de apresentação de toda pessoa presa em flagrante (art. 1º) ou por mandado de prisão cautelar – preventiva ou temporária – ou definitiva (art. 13) à autoridade judicial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas.

Conforme o regramento do CNJ, a audiência de apresentação do preso em flagrante terá dupla finalidade: a primeira (protetiva) consiste na tutela de sua integridade física; a segunda (meritória) impõe a aferição da necessidade da prisão do autuado. Diversamente, a resolução não é explícita sobre a(s) finalidade(s) da audiência de custódia do preso por mandado de prisão temporária, preventiva ou mesmo definitiva (por condenação criminal transitada em julgado). Contudo, em nossa ótica, por via de regra, em tais casos o ato terá como finalidade única (protetiva) a preservação da integridade física do preso, sendo inconcebível ingresse o magistrado da audiência no mérito da necessidade da prisão por mandado, a fim de revogá-la.

Com efeito, o primeiro escopo da audiência de custódia da pessoa presa em flagrante é indicado no art. 8º, incisos I a IX, da Res. 213/2015-CNJ, do qual se extrai que a autoridade judicial entrevistará a pessoa presa em flagrante, devendo: I – esclarecer o que é a audiência de custódia, ressaltando as questões a serem analisadas pela autoridade judicial; II – assegurar que a pessoa presa não esteja algemada, salvo em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, devendo a excepcionalidade ser justificada por escrito; III – dar ciência sobre seu direito de permanecer em silêncio; IV – questionar se lhe foi dada ciência e efetiva oportunidade de exercício dos direitos constitucionais inerentes à sua condição, particularmente o direito de consultar-se com advogado ou defensor público, o de ser atendido por médico e o de comunicar-se com seus familiares; V – indagar sobre as circunstâncias de sua prisão ou apreensão; VI – perguntar sobre o tratamento recebido em todos os locais por onde passou antes da apresentação à audiência, questionando sobre a ocorrência de tortura e maus tratos e adotando as providências cabíveis; VII – verificar se houve a realização de exame de corpo de delito, determinando sua realização nos casos em que: a) não tiver sido realizado; b) os registros se mostrarem insuficientes; c) a alegação de tortura e maus tratos referir-se a momento posterior ao exame realizado; d) o exame tiver sido realizado na presença de agente policial; VIII – abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante; e IX – adotar as providências a seu cargo para sanar possíveis irregularidades.

Por sua vez, o segundo viés da audiência de apresentação do autuado em flagrante encontra previsão art. 8º, inciso X, da citada resolução, o qual impõe ao juiz o dever de “analisar o cabimento […] da concessão da liberdade provisória, sem ou com a imposição de medida cautelar”, matéria a ser decidida na própria audiência (§§ 3º a 5º do art. 8º).

O § 1º do art. 8º confirma essa segunda vocação da audiência de custódia do preso em flagrante ao dispor que, após sua oitiva pelo juiz, será dada ao Ministério Público e à defesa técnica a possibilidade de requerer: I – o relaxamento da prisão em flagrante; II – a concessão da liberdade provisória sem ou com aplicação de medida cautelar diversa da prisão; III – a decretação de prisão preventiva, etc.

De outro lado, e sem embargo de ter expressamente assegurado o direito à audiência de apresentação às pessoas presas em decorrência de cumprimento de mandados de prisão cautelar ou definitiva, o art. 13 da Res. 213/2015-CNJ não especificou as finalidades do ato. Entretanto, determinou a aplicação às prisões por mandado dos procedimentos previstos na resolução “no que couber”.

Em nossa visão, a audiência de custódia realizada em razão do cumprimento de mandado de prisão temporária, preventiva ou definitiva somente é compatível com o “escopo protetivo”, mas não com o viés “meritório”. Assim é que, em regra, deverão ser indeferidos eventuais pedidos de relaxamento/revogação da prisão por mandado ou mesmo de sua conversão em medida cautelar diversa da segregação da liberdade (art. 319, CPP).

E dessa forma nos parece porque atentaria contra a lógica do razoável o fato de um mesmo juiz (parágrafo único do art. 13 da Res. 213/2015-CNJ), reconhecendo o “perigo da liberdade” do sujeito da medida (periculum libertatis), decretar sua prisão temporária ou preventiva e revogar a sua própria decisão tão logo cumprida a ordem, antes, pois, da produção de qualquer efeito em benefício da investigação.

Em verdade, ainda que a audiência de apresentação seja realizada por juiz diverso daquele que ordenou a prisão cautelar, ordinariamente não caberá ao magistrado, em audiência, modificar (ad exemplum) a ordem de prisão temporária proferida com a marca da imprescindibilidade para o sucesso da investigação. Seria mesmo um despautério admitir que uma autoridade judiciária que desconhece por completo o procedimento investigatório viesse a modificar a decisão do juiz que o conhece e adequadamente fundamentou sua decisão. O juiz da audiência de custódia – que se encontra em igual plano hierárquico do juiz da medida cautelar, diga-se – seria ilegitimamente transformado numa pseudoinstância revisora, o que se afigura inconcebível.

Pior ainda seria a hipótese em que, cumprido o mandado de prisão por força de condenação criminal definitiva – por prática de crime de latrocínio, por exemplo – e efetivada a apresentação do preso ao juiz em 24 horas, viesse o magistrado em audiência a desconstituir a “coisa julgada”, que impôs ao sentenciado pena privativa de liberdade em regime inicialmente fechado, e conceder liberdade ao preso.

Destarte, a dupla finalidade das audiências de apresentação pode até se justificar nos casos de prisão em flagrante, que é um “ato jurídico”[3] sacramentado fora dos meandros do Judiciário. Com a reforma efetuada no Código de Processo Penal pela Lei 12.403/2011, o flagrante deixou de apresentar “cautelaridade em si mesmo”[4], restando abolida a prática até então vigente de manutenção da prisão apenas por meio de sua “homologação”. Pelo disposto no art. 310, inc. II, CPP, o juiz deverá fundamentadamente converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos.

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Portanto, partindo-se da premissa da obrigatoriedade das audiências de custódia (impostas pelo STF e pelo CNJ), é da essência desse ato a aferição da necessidade ou não da conversão do flagrante em preventiva, sendo, portanto, plenamente justificado o duplo mote (protetivo e meritório) das audiências de apresentação na hipótese flagrancial.

De outra banda, as prisões decorrentes de mandados judiciais são fundamentadas por autoridades judiciárias competentes. Nesse contexto, salvo em hipótese excepcional de absoluta teratologia – exemplo: prisão preventiva de adolescente –, nas audiências de custódia realizadas em razão do cumprimento de ordens de prisão cautelar ou definitiva deverão ser rejeitados os eventuais pedidos de liberdade, por notória incompatibilidade.

Não cabe, pois, ao magistrado da audiência de custódia reavaliar o mérito (escopo meritório) da prévia ordem de prisão cautelar ou definitiva legitimamente expedida por autoridade judiciária competente, mas apenas tomar as medidas de precaução e tutela da integridade física do detido (escopo protetivo).

Em razão disso, vale a pena ilustrar nosso raciocínio com um silogismo: se o grande propósito das audiências de apresentação é a redução da população carcerária provisória,[5] e se a concessão da liberdade só tem cabimento, ordinariamente, na audiência de custódia ocorrida em razão de prisão em flagrante, parece-nos contraproducente a realização desta audiência solene – que movimenta polícias, juízes, defensores, promotores de justiça, servidores, etc. – por decorrência do cumprimento de mandado de prisão cautelar ou definitiva, apenas para o cumprimento da finalidade protetiva.


[2] Extrai-se de seu voto na ADI nº 5240: “[…] depois de uma longa conversa com nosso Decano, o Ministro Celso de Mello, entendi de sugerir que deva ser audiência de apresentação, porque audiência de custódia dá a ideia de que uma audiência é para custodiar e, ao contrário, não liberar eventualmente, diante das circunstâncias do caso concreto.”

[3]   JARDIM, Afrânio Silva. A prisão em flagrante: novos enfoques teóricos. Disponível em <http://justificando.com/2015/01/29/a-prisao-em-flagrante-novos-enfoques-teoricos/>. Acesso em 05.02.2016.

[4]  MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. São Paulo: Método, 2011, p. 211.

[5] Extrai-se voto vencedor do Min. Luiz Fux na ADI nº 5240: “O Brasil […] também tem ainda um longo caminho a percorrer no que concerne à humanização do sistema prisional e da justiça criminal em geral. Aí reside a importância de iniciativas inovadoras voltadas à redução da população carcerária, sobretudo das que se referem aos presos provisórios, como a que ora se discute. A proposta das audiências de custódia, capitaneada pelo Conselho Nacional de Justiça e encampada por diversos tribunais do país, sem dúvida é das mais relevantes nessa seara […].”

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Sobre os autores
Vinícius Marçal

Promotor de Justiça-GO. Professor do G7 Jurídico e do VipJus. Ex-delegado de Polícia do Distrito Federal. Foi examinador de diversos concursos públicos de ingresso na carreira do Ministério Público. Autor de obras jurídicas.

Cleber Masson

Doutor e Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Foi assessor da Procuradoria-Geral de Justiça e Diretor da Associação Paulista do Ministério Público. Professor de Direito Penal. Promotor de Justiça do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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