Um dos meios mais primitivos de resolução de conflitos entre os homens diz respeito à vingança privada. Empregada em um momento pré-social, no qual a única lei era a força bruta, esse recurso foi felizmente superado com o advento de pactos formalizados entre os indivíduos, no intuito de preservar e manter em segurança tudo aquilo que haveria de ser conquistado.
Conquanto se verifique uma evolução histórica, o cenário mais próximo do Estado de Natureza ilustrado por Hobbes que esta geração verá, possivelmente, está se avizinhando. O esvaziamento do bom senso que inflamou o país nas últimas semanas é, evidentemente, alimentado por compartilhamentos no Facebook e WhatsApp, onde uma manada de incautos viraliza opiniões e projeções da suposta realidade com uma paixão completamente desproporcional à grandeza do objeto que é defendido.
É possível notar a correção de Umberto Eco ao afirmar: “Redes sociais deram voz a legião de imbecis”. Eis o que incomoda, em verdade, no discurso do brasileiro atualmente: a noção de que devemos adotar lados. “Você está conosco ou contra nós”, dizem. É de direita ou de esquerda. É petista ou tucano. Coxinha ou petralha, e por aí vai... A sociedade conformou-se com um maniqueísmo sem pauta plausível, fomentado por uma prostração ideológica sem justificativa.
Ninguém mais parece estar preocupado em sentar, discutir enquanto pessoas supostamente civilizadas e encontrar a melhor solução para a celeuma apresentada. No entanto, paradoxalmente, é a capacidade de raciocinar que distingue o ser humano dos demais animais, que apenas imitam. Ao contrário, todos parecem estar confortáveis em abdicar do dom do raciocínio para adotar a posição do seu grupo. É mais cômodo, de fato.
No meio do incêndio que vem consumindo o país, um galão de gasolina foi atirado por um magistrado que (inexplicavelmente) foi alçado à categoria de celebridade. De acordo com parte da população brasileira, nutrida pela imprensa, é o “herói da nação” que está “comandando” uma operação de investigação de repercussão nacional.
É de bom alvitre ressaltar – em respeito ao leitor leigo – que juízes não comandam investigações. O presidente do inquérito policial é o delegado de polícia (art. 2º, §1º, da Lei 12.830/2013), sendo o Ministério Público o órgão responsável pelo controle externo da atividade policial, consoante determinação expressa da Constituição Federal (art. 129, inciso VII).
Não há espaço, portanto, para ativismo judicial. Tampouco para comando de investigações pelo magistrado. A Lei Orgânica da Magistratura Nacional proíbe, inclusive, que juízes manifestem opiniões, por qualquer meio de comunicação, acerca de processos pendentes de julgamento (art. 36, III). Portanto, “o magistrado que pratica atos típicos da polícia judiciária torna-se impedido para proceder ao julgamento e processamento da ação penal, eis que perdeu, com a prática dos atos investigatórios, a imparcialidade necessária ao exercício da atividade jurisdicional”[1].
Some-se a isso o fato de que os meios de comunicação de massa projetam imagens ou símbolos da realidade na mentalidade da população, selecionando, por óbvio, aquilo que os interessa, com o escopo de ver produzidos os resultados práticos pretendidos.
Na Criminologia Crítica, o Teorema de Thomas explica tal fenômeno: “se as pessoas definem certas situações como reais, elas são reais em suas consequências”. Dito de outra forma, as imagens produzidas sobre a realidade, causam efeitos reais sobre ela, e isso não provém de uma interpretação objetiva, mas de uma afetação subjetiva[2].
Dentre as informações acerca das divulgações recentes de interceptações telefônicas (cuja legalidade ou ilegalidade não será tratada aqui), está a de que a central telefônica de um escritório de advogados de São Paulo foi interceptada nas investigações. As conversas de todos os 25 advogados da banca com pelo menos 300 clientes foram grampeadas, além de telefonemas de empregados e estagiários da banca[3].
Como é cediço (ou esperava-se que fosse), a inviolabilidade da comunicação entre advogados e clientes está prevista no artigo 7º do Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994). É direito do advogado, segundo a aludida norma, “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.
É curial deixar assentado que utilizar conceitos jurídicos indeterminados como “interesse público” e “justa causa” para proceder à interceptação dos telefones de um escritório de advocacia não é suficiente. O magistrado, especialmente aquele que atua no processo penal, deve ser, sobretudo, técnico em suas decisões. Jamais se deixar contaminar por suas paixões e preferências, notadamente quando o que está em jogo são as garantias inerentes ao devido processo legal.
Pensar diferente desencadearia comportamento a culminar na odiosa perda da imparcialidade. Seria admitir conduta que não se coaduna com as liturgias do Poder Judiciário. Essa semana, o ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, corroborou tal entendimento, ao elucidar que “o princípio da imparcialidade pressupõe uma série de outros pré-requisitos. Supõe, por exemplo, que o juiz seja discreto, que tenha prudência, que não se deixe se contaminar pelos holofotes e se manifeste no processo depois de ouvir as duas partes”.
Sobreleva notar que os conteúdos das interceptações realizadas na investigação, por lei, teriam que ser sigilosos. Neste sentido, não cabe ao magistrado arvorar-se no poder que detém em razão do cargo e usar de discricionariedade para praticar atos inadmissíveis dentro do paradigma do Estado Democrático de Direito. É dever, portanto, da Ordem dos Advogados do Brasil adotar as medidas necessárias para proteção e defesa das prerrogativas de seus membros.
Com efeito, o que se observa, no presente caso, é um “jogo interpretativo ad hoc”, como bem sintetiza Lênio Streck, aduzindo que “quando interessa, vale a palavra da lei, a sua sintaxe, o verbo nuclear, etc; quando não interessa, as palavras são fugidias, líquidas, amorfas... Aí então se busca a vontade da norma, a vontade do legislador, a ponderação de valores, enfim, os mais diversos álibis teóricos que visam a confortar a decisão”[4].
É preciso que fique claro, como afirmam Dworkin e Habermas, que a discricionariedade, como forma de fundamentar ato de poder, não mais se compatibiliza com o atual paradigma constitucional. As controvérsias presentes no Estado Social não devem subsistir à luz do vigente Estado Democrático de Direito, de modo a possibilitar uma interpretação procedimental da Constituição da República, que mantenha estreita observância aos direitos e garantias estabelecidos no ordenamento.
Diante de tais premissas, afigura-se possível afirmar que a nação parou de pensar. É necessário voltar à racionalidade para avançarmos em direção à consolidação de uma sociedade verdadeiramente livre, justa e com os olhos voltados à responsabilidade social, evitando, assim, o retrocesso ao quase estado de natureza hobbesiano em que o cenário atual mergulhou.
Finaliza-se com o pensamento de John Stuart Mill, filósofo utilitarista do século XIX, que em sua mais célebre obra deixou assentado que: “as capacidades mentais e morais, assim como as musculares, só se aperfeiçoam se forem estimuladas (...) Quem abdica de tomar as próprias decisões não necessita de outra faculdade, apenas da capacidade de imitar, como os macacos. Aquele que decide por si emprega todas as suas faculdades”[5].
Não há garantia qualquer de que as deliberações públicas acerca de matérias complexas que envolvam o futuro da comunidade poderão, um dia, chegar a um acordo. Mas, indubitavelmente, a conduta comprometida de se engajar na busca de uma solução de satisfação equânime, inspira mais e é mais promissora do que voltarmos ao momento da vingança privada.
Notas
[1] Superior Tribunal de Justiça, RHC 23945/RJ, Ministra Jane Silva (Desembargadora Convocada do TJ-MG), Sexta Turma, publicado no DJe 16/03/2009.
[2] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.
[3] Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-mar-17/25-advogados-escritorio-defende-lula-foram-grampeados>. Acesso em: 21/03/2016.
[4] STRECK, Lênio Luiz. É possível fazer direito sem interpretar? Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-abr-19/senso-incomum-jurisprudencia-transita-entre-objetivismo-subjetivismo>. Acesso em: 21/03/2016.
[5] MILL, John Stuart. On Liberty (1859). Stefan Collini, ed. (Cambridge, Cambridge University Press, 1989), cap. 3.