As pesquisas com possível fármaco percorrem um longo e custoso caminho até sua comercialização como um medicamento aprovado. Na verdade, o acompanhamento do fármaco por meio de relato de usuários e testes laboratoriais não se interrompe, enquanto for aplicado na clínica. De forma esquemática, podemos dividir as fases de testes com fármacos em:
1. Ensaios Pré-Clínicos. Testes em laboratórios com animais ou linhagens celulares, buscando definir efeitos tóxicos, carcinogênicos, mutagênicos e teratogênicos.
2. Ensaios Clínicos (testes com seres humanos)
Fase I – com pequeno número de indivíduos sadios. Visam determinar parâmetros farmacocinéticos (absorção, distribuição, metabolismo, eliminação);
Fase II – ainda com número seleto de pacientes (doentes), buscando determinar os efeitos terapêuticos;
Fase III – testes extensivos que definem parâmetros farmacodinâmicos (tolerância, eficácia, efeitos colaterais, outras indicações, eficácia).
3. Farmacovigilância (testes contínuos, enquanto o medicamento estiver no mercado)
Durante estes testes, devem ser respeitados os direitos dos pacientes, especialmente aqueles mais vulneráveis. De acordo com a Resolução CNS 466/2012, todo o protocolo da pesquisa deve ser aprovado por um comitê de ética (CEP). Quando se trata de pesquisa com novos fármacos, essas passarão necessariamente pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
A fosfoetanolamina foi primeiramente isolada em 1936 no Canadá. Contudo, somente nos anos de 1990 passou a ser estudada por Gilberto Orivaldo Chierice no Instituto de Química da USP, em São Carlos. Alguns resultados interessantes foram alcançados com linhagens celulares de câncer e em animais, e se iniciaram testes em pacientes. Contudo, a despeito de algumas pessoas informarem curas, os protocolos não seguiram os caminhos necessários, já descritos.
Apesar de limitados, os princípios bioéticos podem nos ajudar a fazer uma análise sobre o caso da fosfoetanolamenia. Entre estes princípios que devem orientar as pesquisas com seres humanos e a atuação clínica, estão a autonomia, a beneficência, a não maleficência e a justiça.
Inicialmente, pode-se pensar que a decisão do governo federal em liberar, por meio da Lei nº 13.269/2016, a produção, manufatura, importação, distribuição, prescrição, dispensação, posse ou uso da fosfoetanolamina está em perfeito acordo com o princípio da beneficência, afinal, temos relatos de melhora e até cura. Contudo, primeiramente, deve-se lembrar que não houve testes em grande escala e que seguissem os protocolos clínicos demandados. Assim, qualquer resultado não deve ser tomado como conclusivo e não se tem certeza de que se está fazendo o bem. Além disso, ao não se conhecer os eventuais efeitos colaterais e tóxicos em humanos (há apenas alguns resultados in vitro e em animais), segue-se em rota de colisão com o princípio da não maleficência. Não sabemos o mal que pode fazer!
Por outro lado, ao se liberar o uso da substância fosfoetanolamina sintética para pacientes diagnosticados com neoplasia maligna, mediante a assinatura de termo de consentimento, pode parecer que o governo está tomando uma decisão justa e que garante a autonomia do cidadão. Contudo, a vulnerabilidade do paciente que está em busca de uma cura a todo custo, bem como a fragilidade produzida pelas deficiências econômicas e culturais da média da população brasileira tornam este consentimento viciado e a autonomia duvidosa.
Nesse sentido, o papel do governo deveria ser, por meio dos seus órgãos técnicos de regulação e fiscalização, nesse caso a ANVISA, garantir a eficácia da droga, divulgar os efeitos e limitações da substância e fiscalizar a qualidade de sua fabricação e comercialização. Assim, seria possível falar em autonomia no uso, sobretudo para esses mais vulneráveis que dependem da proteção do Estado, pois é direito do cidadão ter segurança ao consumir um produto potencialmente perigoso. Contudo, a escolha política foi de esvaziar a competência da agência de vigilância sanitária e tomar uma decisão ao arrepio das informações científicas.
Talvez o que poderia nos salvar seria o uso de outro princípio, mais recentemente utilizado nas discussões bioéticas, a precaução. Assim, o governo, ao tomar essa decisão, deveria iniciar, de imediato, forte propaganda para que os eventuais pacientes que venham a fazer uso da fosfoetanolamina sintética, não deixem, de nenhuma forma, de fazer uso do tratamento padrão previamente indicado.
Deveria, na verdade, ser feito mais: garantir o diagnóstico precoce e o tratamento indicado a todos que o buscam pelo SUS. Caso contrário, parece que a essa decisão, com a presidência deixando nas mãos do paciente a escolha pelo uso de uma droga ainda não aprovada, apenas uma atitude populista de um governo que se sustenta na corda bamba e precisa urgentemente de algum apoio popular.