Reserva legal. Colisão entre direito adquirido e meio ambiente ecologicamente equilibrado:

supremacia do interesse público sobre o particular?

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1 INTRODUÇÃO

Diante de interesses tão divergentes esposados nas manifestações hodiernas, constata-se a existência de inúmeros conflitos entre normas e, principalmente, como no caso do presente estudo, entre direitos fundamentais, de tal sorte que se evidencia que a colisão entre estes tornou-se o centro de inúmeras celeumas jurídicas, não raro, espraiando-se na efetivação dos direitos constitucionais imprescindíveis para a consagração dos anseios dos jurisdicionados.

Nesse sentido, a ponderação entre os princípios constitucionais assume papel de relevância, notadamente quando se fala em valores constitucionais conflituosos, porém, de igual relevância para a concretude do ideário constitucional de unidade.

Nesse diapasão, encontra-se o princípio da proporcionalidade a subsidiar a ponderação entre as normas constitucionais, propiciando o equilíbrio das relações jurídicas, de modo a oferecer a menor gravidade ao indivíduo, coadunada ao menor grau de sacrifício.

Ao aplicar o princípio da proporcionalidade em sentido estrito que se consubstancia propriamente na técnica da ponderação, tem-se que deverá ser realizado um juízo axiológico, com vistas à constatação do grau de sacrifício que será sentido por aquele direito que for efetivamente mitigado ante o caso concreto.

Não obstante, infere-se que para a efetiva satisfação de alguns direitos fundamentais, seriam permitidas certas limitações que estariam legitimadas a ocorrer através de reserva legal instituída pelo próprio constituinte originário, ou ainda pelo legislador, através de normas infraconstitucionais que exercem papel relevante no ordenamento, o que invariavelmente acaba por diminuir a instauração de muitos conflitos.

Sabe-se que, de acordo com tal limitação, o Estado estaria legitimado, portanto, à adoção de medidas que possam resultar em possíveis afrontas a outros interesses, muitas vezes de igual importância apenas por entender que um direito exerça papel de maior relevância em face de outro, considerando que, em se tratando de colisão entre princípios constitucionais, não há solução alguma no campo da validade, mas apenas e tão somente, na análise da carga axiológica que possuem.

Nessa esteira, pode-se passar a entender que não há direito fundamental que possa ser considerado absoluto, haja vista as restrições que eventualmente podem sofrer, quando demonstrarem confronto com outro direito aparentemente tido como de maior relevância, seja pelo maior grau de comprometimento que possa demonstrar com o ideário constitucional, seja pela maior eficácia que poderá refletir no plano fático.

Considerando-se que, no caso em comento, o objeto de estudo se consubstancia no sopesamento do direito de não averbação de reserva legal, com base no aludido direito adquirido que se contrapõe ao referido objeto de tutela do meio ambiente, não se pode olvidar que, em se aplicando o princípio da proporcionalidade em sentido estrito (técnica da ponderação), será indispensável a constatação do atendimento ao fim colimado, a fim de que a medida utilizada traga mais benefícios do que prejuízos.

A fim de justificar a existência do direito adquirido de não averbação de reserva legal, restará demonstrada a perspectiva da doutrina a acerca da sua existência.

De outro turno, imprescindível a demonstração de que o princípio atinente a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, erigido a categoria de bem essencial, por se constituir como norma de ordem pública acaba por condicionar o exercício de certos direitos.

Dessa forma, no caso em comento, buscar-se-á a partir da técnica da ponderação, a adoção de metodologias assecuratórias dos valores em conflito, lançando-se mão de mecanismos de sopesamento de princípios, visando preservá-los ao máximo possível, posto que não obstante, constituem-se como sendo de alta relevância e concretude constitucional.

Não obstante, à luz do princípio da soberania do interesse público sobre o particular, buscar-se-á de igual modo verificar a (im) possibilidade de prevalência de um dos princípios em colisão.

Nessa esteira, considerando o papel de relevância que o direito adquirido insculpido no bojo do artigo 5º, XXXVI, da Lex Suprema exerce sobre o sistema, tanto jurídico como social, haja vista ter como escopo a estabilização das relações sociais, ao passo que propicia a segurança jurídica, mais do que natural que haja um mecanismo que forneça o subsídio necessário à convivência harmônica deste, com o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, insculpido no artigo 225 da Carta Magna, principalmente porquanto se fala na concretização concomitante de dois princípios constitucionais de igual modo relevantes.

Com base em tais situações, explanar-se-á ainda sobre a aventada soberania do interesse público sobre o privado, a justificar que independentemente do ângulo pelo qual se oberve a situação posta à discussão, em momento algum poderá falar-se na concretização do primeiro, com base na sua eventual soberania, eis que em se tratando de princípios, sequer há que se falar na existência de hierarquia entre eles.


2 A NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL SAGRANDO OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A Carta da República de 1988 inaugurou, após vinte anos de “burocracia tecnocrático-militar”[1], uma nova ordem constitucional que, procurando dissipar toda insensatez amargada naquele longo período de imperfeições, buscou estatuir garantias de cunho fundamental que reabilitassem toda ordem normativa, erigindo alguns valores com carga axiológica inquestionável, à categoria de direitos fundamentais, a fim de que a Carta Magna pudesse enfim, não apenas funcionar como o maior alicerce normativo do ordenamento jurídico, mas sim, “criar um ambiente propício à superação de patologias e à difusão de um sentimento constitucional apto a inspirar uma atitude de acatamento e afeição a Lei Maior”[2].

A partir desse novo sentimento, instaurou-se de igual modo uma nova conjuntura política, social e econômica em nosso país, graças à ampla participação popular que possibilitou o resgate da cidadania do povo brasileiro, resguardando valores outrora marginalizados, que sequer poderiam ser questionados sob a alegação de qualquer legitimidade no pleito das garantias fundamentais[3].

Muito embora a Carta Magna tenha como característica precípua o texto extremamente casuístico e prolixo, tratando desde direitos fundamentais até questões de cunho meramente econômico, fiscal ou ainda regras específicas de interesses de diversas categorias, há que se ressaltar que tal fato deve-se puramente à vontade de constituição, há tanto perseguida pelo povo brasileiro que, recém-saído de um período ditatorial, que perdurou por mais de vinte anos, estava ávido por resguardar as frágeis estruturas que começavam a ensaiar os primeiros passos, após as infindáveis e temerárias políticas que, sem sombra de dúvida, deflagraram o caos social em nosso país, conforme leciona Barroso[4]:

[...] a Constituição de 1988 foi marco zero de um recomeço, da perspectiva de uma nova história. Sem as velhas utopias, sem certezas ambiciosas, com o caminho a ser feito a andar. Mas com uma carga de esperança e um lastro de legitimidade sem precedentes, desde que tudo começou. E uma novidade. Tardiamente, o povo ingressou na trajetória política brasileira, como protagonista do processo, ao lado da velha aristocracia e da burguesia emergente.

Nesta senda, buscou-se evidenciar os direitos fundamentais, de tal sorte que o padrão de descaso com tais garantias, principalmente no que concerne ao arbítrio das maiorias políticas, fosse suplantado, cedendo vez a uma nova concepção jurídica e social que inaugurou o neo-constitucionalismo brasileiro, inicialmente reverberado, a partir do segundo pós-guerra na Europa Ocidental[5].

2.1 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS ELEVADOS A DIREITOS SUBJETIVOS PÉTREOS ESPECIALMENTE O DIREITO ADQUIRIDO E DIREITO DO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO

Tendo em vista a essencialidade dos direitos fundamentais, considerando a importância de sua efetividade para a consagração de um bem maior que se constitui na dignidade da pessoa humana, o constituinte originário tratou de assegurá-los como direitos subjetivos pétreos, tornando-os imunes ao poder constituinte reformador em virtude da insigne cláusula pétrea que lhes atribuiu o condão de inflexibilidade a que se sujeita a Carta Suprema, ante eventuais emendas.

Nesse sentido, os direitos fundamentais foram estruturados para atender os inúmeros anseios sociais instituídos pela sociedade que projetou a Carta Política, através da Assembleia Constituinte concebida “como cenário de ampla participação da sociedade civil”[6], formada inicialmente, por 24 (vinte e quatro) subcomissões, 8 (oito) comissões temáticas, bem como pela Comissão de Sistematização, de tal sorte que as prerrogativas fundamentais foram consignadas em todo texto constitucional graças ao processo de redemocratização que o país passou a contemplar[7], conforme corroborado pelo ensinamento de Wolfgang[8]:

[...] no que concerne ao processo de elaboração da Constituição de 1988, há que fazer referência, por umbilical vinculação com a formatação do catálogo dos direitos fundamentais na nova ordem constitucional, à circunstância de que esta foi resultado de um amplo processo de discussão oportunizado pela redemocratização do País, após mais de vinte anos de ditadura militar.

Em que pese a dinâmica social demandar mudanças freqüentes no texto constitucional, não há que se entender, ainda que a voracidade das emendas perpetradas seja capaz de alterar circunstancialmente a essência do texto normativo, a possibilidade de que o rol das garantias fundamentais sofra qualquer mitigação, haja vista constituírem-se como cláusulas pétreas que têm por escopo a segurança de todo ordenamento jurídico, conforme depreende-se do escólio do professor Sarlet[9]:

[...] um dos elementos caracterizadores da fundamentalidade em sentido formal, ao menos em nossa Constituição, é justamente a circunstância de terem os direitos fundamentais sido erigidos à condição de “cláusula pétrea”, integrando o rol do art. 60, § 4º, inc. IV, da nossa Carta Magna, esta proteção jurídica reforçada, peculiar apenas aos direitos fundamentais e a alguns poucos princípios escolhidos pelo Constituinte, não deixa de poder ser considerada um dos efeitos jurídicos gerados pelos direitos fundamentais e, portanto, uma dimensão de sua eficácia.

Dentre tais direitos fundamentais, pode-se encontrar aqueles consignados logo no artigo 5º, inciso XXXVI, da Carta Maior, mais precisamente quando falamos de direito adquirido, que se consubstancia como um dos objetos de estudo do presente trabalho, caracterizando-se pelo resguardamento de garantias pré-existentes em face das frequentes alterações legislativas, considerando a temeridade de se adotar a retroatividade como postulado absoluto, segundo o escólio de Tolomei[10]:

[...] a retroatividade tomada como princípio absoluto constituiria evidente perigo para a segurança jurídica e, neste diapasão, para a estabilidade social. As garantias individuais, a ordem social e o próprio interesse público estariam permanentemente ameaçados.

E na mesma esteira, pode-se encontrar outro direito fundamental de extrema relevância, que mesmo albergado fora do capítulo II da Carta Magna constitui-se de materialidade caracterizadora de norma fundamental, qual seja o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado contemplado pelo artigo 225, conforme ensina Sarlet citado por Fensterseifer[11]:

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[...] a despeito de não estar previsto no Título II da Constituição, é, portanto, por intermédio do direito constitucional positivo (art. 5º, § 2º, da CF) que é atribuído ao direito ao ambiente fundamentalidade material o que se dá pela abertura material da Lei Fundamental a direitos fundamentais não constantes do seu rol fundamental (situados fora do catálogo dos direitos fundamentais ou mesmo do texto constitucional). No caso do direito ao ambiente, o mesmo integra a Constituição formal (art. 225 e demais artigos dispersos sobre o tema) e, portanto, apresenta a característica de um direito formal e materialmente fundamental.

Não obstante, restar salvaguardado o direito do ambiente, imperioso ressaltar que, no presente estudo, o direito adquirido apresenta-se em oposição a ele. No entanto, ainda que diametralmente opostos, não se pode olvidar que, em se tratando de direitos fundamentais, encontram a mesma guarida no texto constitucional, conquanto, trazem em seu bojo o mesmo propósito de concretude do ideário constitucional que prenuncia a unidade de constituição, de acordo com o invocado por Avelar[12]:

[...] De acordo com esse princípio, as normas devem ser consideradas em seu conjunto, como que integrantes de um sistema unitário. Não é possível aceitar a tese de antinomias no texto constitucional, o que importaria na acolhida de normas constitucionais inconstitucionais.

Dentro desta mesma ótica, qual seja, da manutenção da unidade constitucional vale ainda frisar que, para Schier[13]

[...] Deveras, na perspectiva interna, qual seja, das suas funções ou do seu telos, tem-se afirmado que os principais objetivos das constituições modernas são os seguintes: (i) distinguir as diversas funções do Estado, atribuindo-as a órgão distintos - dimensão da repartição e distribuição de competências; (ii) criar mecanismo planejado que estabeleça a cooperação entre os diversos detentores do poder (limitação do exercício do poder político e sistema de freios e contrapesos) - dimensão da separação dos poderes; (iii) criar mecanismo de solução de impasses, na órbita social, política e jurídica, atrelado ao princípio democrático ("quem decide é o povo!") - dimensão de controle e participação popular no poder; (iv) estabelecer um método racional para a reforma da constituição, impedindo movimentos desestabilizadores e (v) reconhecer, expressamente, certas esferas de autodeterminação individual - os direitos individuais e liberdades fundamentais -, e sua proteção frente à intervenção de um ou todos os detentores do poder. Portanto, cuida-se do estabelecimento de um núcleo de direitos inatingíveis pelo Estado, inalienáveis, garantidor do tráfico jurídico burguês (autonomia privada, igualdade, liberdade, transferência e garantia de patrimônio, etc.)[14]. Ou seja, o núcleo central da constituição consiste em controlar, limitar, racionalizar, justificar, distribuir etc., o poder, com o fim de salvaguardar certo núcleo de direitos fundamentais, como já se afirmou.

Imprescindível que se adote a devida parcimônia na ponderação dos dois princípios constitucionais em tela, a fim de que eventual mitigação de algum deles, não venha a afetar a harmonia constitucional que, invariavelmente, pode culminar com a inviabilidade da existência digna, conforme leciona Derani[15]:

[...] Do mesmo modo, a razão de garantir a livre disposição das presentes e futuras gerações a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, tem em vista, em última instância, a finalidade de uma existência digna a todos – deduzida do fato de que uma existência digna a todos – deduzida necessariamente do fato de que uma “sadia qualidade de vida” (art. 225) é elemento fundamental para a composição de uma existência digna. Portanto, não há de argumentar que para realizar a livre iniciativa devem-se olvidar as disposições que permitem o livre dispor de um meio ambiente ecologicamente equilibrado decorrente da Constituição Federal, no capítulo sobre meio ambiente. O direito brasileiro não faculta essa alternativa, posto que os dois princípios (o da livre iniciativa e o do meio ambiente ecologicamente equilibrado) são igualmente necessários para a consecução de uma finalidade essencial do texto constitucional: o da realização de uma existência digna. (grifo nosso)

Desta feita, claro está que deverá haver um exercício que possibilite a exata compatibilização dos valores supramencionados, de modo que a conjugação de ambos evite a inviabilidade de qualquer deles, considerando que se constituem como corolários do sistema jurídico por contribuírem com preenchimento do princípio da dignidade humana que, para Derani[16], se constitui como “princípio essência do sistema jurídico”, e também pela premência do atendimento ao princípio da unidade da constituição, conforme dispõe o mestre Canotilho[17] quando invoca que

[...] o princípio da unidade da constituição ganha relevo autônomo como princípio interpretativo quando com ele se quer significar que a constituição deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre as normas. Como ponto de orientação, guia de discussão e factor hermenêutico de decisão, o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão existentes entre as normas constitucionais a concretizar (ex. princípio do Estado de Direito e princípio democrático, princípio unitário e princípio da autonomia regional e local).

Nesta toada, faz-se premente uma pequena incursão às 3 (três) primeiras gerações de direitos fundamentais, a fim de que se possa evidenciar que o seu advento propiciou uma “nova concepção de universalidade dos direitos humanos fundamentais”[18] que, na visão de Bonavides[19], “não exclui os direitos da liberdade, mas primeiro os fortalece com as expectativas e os pressupostos de melhor concretizá-los mediante a efetiva adoção dos direitos da igualdade e da fraternidade”.

2.2 AS GERAÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.2.1 A Primeira Geração de Direitos Fundamentais

Inaugurada pela Revolução Francesa, a primeira geração de direitos fundamentais tendo por escopo constitutivo as máximas: liberdade, igualdade e fraternidade, oportunizou a constituição de garantias fulcradas na invalidação do arbítrio dos poderes estatais, a partir de “um não-agir do Estado”[20], fator essencial para a harmonização das liberdades individuais contra um Estado absoluto pautado nos poderes amplos e irrestritos do soberano que, segundo Silva[21], desenvolveu-se “à sombra dos direitos fundamentais do homem, de onde promana que tais direitos são inatos, absolutos, invioláveis (intransferíveis) e imprescritíveis”.

As primeiras manifestações escritas que proclamaram tais direitos, foram a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 1976, e, por conseguinte, a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, cujas quais deram azo ao desenvolvimento das Constituições escritas que propugnaram a positivação das garantias fundamentais surgidas no mundo contemporâneo, não havendo hodiernamente, segundo Bonavides[22], “Constituição digna desse nome que os não reconheça em toda a sua extensão”.

Insta ressaltar, primeiramente, que por terem papel limitador da atuação do ente estatal, tais direitos proporcionaram a emancipação do povo ao outorgar-lhe, segundo Derani, “uma esfera de atuação livre do Estado onde não precisava movimentar-se de acordo com modelos objetivos de relacionamento, porém, por decisões apreciadas subjetivamente”[23] propiciando, assim, o florescimento dos direitos fundamentais[24].

Vale trazer, nesse sentido, o ensinamento de Campos Júnior[25] quando preceitua que o individualismo permeava os direitos fundamentais:

[...] as primeiras declarações se caracterizavam pela conotação individualista dos direitos fundamentais, porque o Estado então estruturado era Liberal de Direito, pelo que os interesses individuais e o individualismo predominavam sobre todas as formas de organização, e o direito não se ausentava desta natureza com que se geravam as idéias, as instituições e as suas práticas, daí os direitos fundamentais referentes à vida, à liberdade individual, à segurança, à igualdade e à propriedade terem sido considerados, no curso do século XX, e denominados de primeira geração.

Ainda que a liberdade, marco do século XIX, tenha sido imprescindível para a emancipação do povo, bem como para o florescimento de uma nova sociedade que não mais se submetia ao jugo do soberano, certo é que, em virtude da concentração de renda e da exclusão social fruto do individualismo e do absenteísmo estatal[26], o Estado passou a ser chamado com vistas à proceder evitando o cometimento de abusos ou mesmo excessos, dentre eles, o do poder econômico, fato este que invariavelmente desencadeou a denominada segunda geração de direitos fundamentais.

2.2.2 A Segunda Geração dos Direitos Fundamentais

Ultrapassado o período em que os direitos fundamentais não mais resumiram-se apenas ao campo da não intervenção estatal versada nas liberdades dos indivíduos, tudo isto graças a dinâmica social e da não menos importante Revolução Industrial, houve a necessidade de que o Estado passasse a intervir diretamente na regulação das relações sociais que se estabeleciam na sociedade[27], fazendo as vezes de artífice na “composição social”, ao estabelecer a pacificação quando da existência de conflitos.

Nesta seara, é imprescindível mencionar que, não menos importantes e de igual relevo, consagraram-se os direitos fundamentais de segunda geração que invocavam a igualdade jurídica como seu corolário impondo a obrigação de agir ao Estado. Este não mais poderia abster-se do dever de regular o sistema, de tal sorte que o papel de coadjuvante que havia adotado em observância ao imperativo máximo do direito às liberdades individuais, marco do século XIX, teve de ser abandonado, posto que, a partir de então, o Estado deveria agir de forma comissiva no estabelecimento de diretrizes para a efetivação da composição social, na ideal pacificação dos conflitos, conforme propugna Derani[28]:

[...] a liberdade individual é possível de ser alcançada somente por uma composição social. Para tanto, o Estado recebe um aumento de tarefas destinadas a incorporar conflitos e organizá-los dentro da esfera administrativa, seja por normas, seja por aumento dos seus serviços.

Desta feita, sendo promanada a referida evolução, esclarece Carl Schmitt na lição de Bonavides[29], que os direitos de segunda geração “numa acepção estrita, são unicamente os direitos de liberdade, em princípio ilimitada diante de um poder estatal de intervenção, em princípio limitado, mensurável e controlável”, constituindo-se nos direitos civis e políticos que acabam sendo reconhecidos por se apresentarem como mecanismo de “resistência e oposição perante o Estado”[30].

De outra banda, ainda percebe-se que os direitos fundamentais de segunda geração relacionam-se intrinsecamente ao princípio da igualdade, fator este que desencadeou a exigência de prestações positivas do Estado, a partir de uma dimensão positiva na esteira do que leciona Campos Júnior[31]:

[...] os direitos fundamentais de segunda geração nasceram intrinsecamente ligados ao princípio da igualdade. Tais direitos fecundaram a justiça social, e o bem-estar social passou a ser buscado pelo próprio Estado (o Estado fez-se Social de Direito). É por esse motivo que a nota distintiva destes direitos é uma dimensão positiva, uma vez que se cuida não mais de evitar a intervenção de Estado na esfera da liberdade individual, mas sim, nas palavras de Lafer, de propiciar um “direito de participar do bem-estar social.

Assim, fecundou-se a possibilidade de o Estado intervir diretamente na manutenção do bem-estar social a partir da efetivação dos direitos prestacionais, dentre os quais incluíam-se a educação, a cultura, o trabalho, a assistência social e a saúde, tendo em vista que o exercício puro e simples das liberdades individuais, não mais se coadunava aos anseios sociais que de per si já indicavam a necessidade da intervenção estatal para um maior beneficiamento das populações.

2.2.3 A Terceira Geração dos Direitos Fundamentais

De outra banda surgem, calcados na fraternidade e na solidariedade, os direitos de terceira geração que, acrescentados aos direitos de primeira e segunda geração, passaram a expandir o rol das tantas garantias já concretizadas no campo dos direitos fundamentais, que se tornaram mais concretas no final do século XX.

Entenda-se por solidariedade e fraternidade os exatos termos asseverados pela Constituição da República, quando em seu artigo 3º consagra-os como preceitos relevantes para a estatuição de uma sociedade livre, justa e solidária, o que lhes permite desfrutar, portanto, de preeminência em todo ordenamento jurídico, visto que a erradicação da pobreza e da marginalização social, intrinsecamente relacionada à solidariedade culmina, inquestionavelmente, com a redução das desigualdades proporcionando, enfim, a efetividade das garantias fundamentais[32].

Segundo Cherobim, citado por Carvalho[33], a “solidariedade é conceituada como um conjunto de interesses e deveres mútuos de uma dada sociedade, sustentada em um conjunto de idéias e valores comuns”.

Nessa esteira, importante que se esclareça que na visão de Carvalho[34] o princípio da solidariedade representa um “novo paradigma, tanto no direito internacional, quanto no direito interno”:

[...] o princípio jurídico da solidariedade representa novo paradigma no Direito Internacional e doméstico, prenunciando o início de relevantes modificações nas estruturas jurídicas tradicionais. Embora essa concepção porte uma mensagem idealista e utópica, seus fundamentos têm raízes em conhecimentos científicos descortinados pela moderna ciência ecológica e espacial.

Concebem-se, por direitos de terceira geração, aqueles que não são destinados a um único indivíduo, grupo ou Estado, pois com o advento dos direitos de terceira geração, passou-se a preconizar a satisfação dos interesses dos inúmeros grupos humanos caracterizando-se, consequentemente, na visão de Campos Júnior, “como direitos de titularidade coletiva ou difusa”[35].

Além de serem dotados de “altíssimo teor de humanismo e universalidade,”[36] de acordo com o entendimento de Bonavides:

[...] dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta.

Nesta perspectiva, encontram-se abrangidos por tal geração de direitos, dentre outros, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, insculpido tanto no artigo 225, quanto no artigo 170, VI, da Constituição Federal, consolidando-se não mais como direito de menor importância, mas de magnitude hábil ao fortalecimento do insofismável dever de zelar por um patrimônio que não gera apenas benefícios às gerações atuais mas, principalmente, procura resguardar tal direito às gerações futuras, segundo lição ministrada por Canotilho e Leite[37]:

[...] assim posta, a proteção ambiental deixa, definitivamente, de ser um interesse menor ou acidental no ordenamento, afastando-se dos tempos em que, quando muito, era objeto de acaloradas, mas juridicamente estéreis, discussões no terreno não jurígeno das ciências naturais ou da literatura. Pela via da norma constitucional, o meio ambiente é alçado ao ponto máximo do ordenamento, privilégio que outros valores sociais relevantes só depois de décadas, ou mesmo séculos, lograram conquistar.

Importante ainda frisar, que na visão de Bessa, citado por Furlan[38], “o direito ambiental inclui-se dentre os novos direitos como um dos mais importantes”.

Observa-se, assim, que a relevância da proteção do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado em virtude do seu escopo constitutivo de garantia mínima de direitos fundamentais, não somente adstrito às gerações presentes, como também as futuras, não permite que individualismos culminem com a indiferença ambiental, uma vez que uma das suas finalidades, quando alçado à categoria de direito fundamental é, justamente, a sua imunização em face de eventuais ingerências arbitrárias, visando a inibição do exercício do poder estatal em face da liberdade individual[39].

Nesse diapasão, tem-se claramente o fato de que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem por alicerce o princípio da solidariedade, de modo que este garante à coletividade, a fruição daquele, que será exercido como prerrogativa metaindividual, conforme apregoa Furlan[40]:

[...] a solidariedade, como valor subjacente aos direitos de terceira geração, é importante no plano ambiental na medida em que afasta o individualismo e o egocentrismo, concepções que totalizam e resumem a indiferença ambiental. O Estado, como garantidor desses direitos fundamentais de terceira geração, e a própria coletividade, como titular destes, devem almejar o bem-estar ambiental, perseguindo o desenvolvimento sustentável em detrimento do sistema individualista e predatório da sociedade industrial, que compromete a vida do planeta.

E ainda, o princípio que vela o meio ambiente, constitui-se como princípio da ordem econômica, cumprindo dupla função no ordenamento, além de revestir-se de caráter impositivo, bem como de diretriz do ordenamento jurídico, por destacar-se precipuamente como norma objetivo do sistema[41].

No entanto, ainda que se entenda que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é “direito constitucional impositivo”[42], bem como “direito das presentes e das futuras gerações”, não se pode olvidar da existência do alegado direito adquirido, de igual modo concebido como direito fundamental, conquanto segundo preceitua Derani[43]:

[...] a necessidade de assegurar a base natural da vida (natureza) coloca novos matizes na política econômica. É verdade, o grande desafio das políticas econômicas. A obviedade da necessidade de uma relação sustentável entre desenvolvimento industrial e meio ambiente é exatamente a mesma da irreversibilidade da dependência da sociedade moderna dos seus avanços técnicos e industriais. Assim, qualquer política econômica deve zelar por um desenvolvimento da atividade econômica e de todo seu instrumental tecnológico ajustados com a conservação dos recursos naturais e com uma melhoria efetiva da qualidade de vida da população.

Principalmente, quando sob a alegação de se proteger o meio ambiente, sejam criadas legislações cujo escopo constitutivo esteja eivado de inconstitucionalidade, conforme leciona Dutra, ao mencionar que a criação de algumas legislações ambientais, como por exemplo, o Decreto 6.514/08, ocorreram “à revelia da Carta Política”[44]:

[...] as alterações na legislação ambiental são a revelia da Carta Política, apresentando evidente inconstitucionalidade, em razão de ferir o direito de propriedade reconhecido na Carta Magna, porquanto eventual conflito entre direitos fundamentais deve ser interpretado de forma harmoniosa, não podendo um direito constitucional ser excludente de outros direitos fundamentais e, sobretudo, causar prejuízos ao cidadão.

À derradeira, resta claro que os princípios constitucionais, oriundos das gerações de direitos fundamentais, buscaram, sem “eliminar-se mutuamente”[45], garantir a fruição de prerrogativas essenciais, que concomitantemente, propiciarão a salvaguarda do princípio da dignidade da pessoa humana que, segundo visão de Canotilho e Vital Moreira, citados por Grau[46]:

[...] fundamenta e confere unidade não apenas aos direitos fundamentais – direitos individuais e direitos sociais e econômicos – mas também à organização econômica. Isso, sem nenhuma dúvida, torna-se plenamente evidente no sistema da Constituição de 1988, no seio do qual, como se vê, é ela – a dignidade da pessoa humana – não apenas fundamento da República Federativa do Brasil, mas também o fim ao qual se deve voltar a ordem econômica (mundo do ser).

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Sobre a autora
Debora Cristina de Castro da Rocha

Advogada com grande experiência na área do Direito Imobiliário, tendo atuado na defesa de grandes construtoras do país, possui vários artigos publicados. Palestrante, Colunista no site de notícias YesMarilia, Vice Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Vice Presidente da Comissão de Fiscalização, Ética e Prerrogativas Profissionais da OAB/PR, subseção São José dos Pinhais/PR e membra da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/PR seccional. Especialista em Direito e Processo do Trabalho, Especialista em Direito Constitucional pela ABDConst e Especializanda em Direito Imobiliário Aplicado pela EPD.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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