Reserva legal. Colisão entre direito adquirido e meio ambiente ecologicamente equilibrado:

supremacia do interesse público sobre o particular?

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3 O DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO ERIGIDO A CATEGORIA DE DIREITO FUNDAMENTAL – HISTÓRICO LEGISLATIVO

Antes mesmo de o direito ao meio ambiente ter sido alçado à categoria de direito fundamental, no entender de Furlan e Fracalossi[47], desde o descobrimento do Brasil até meados do século XX, o meio ambiente teve “escassa proteção jurídica” ainda que não se possa olvidar que muitas foram as legislações que buscaram destacar a importância de resguardá-lo.

De modo não exaustivo, vale trazer à baila algumas legislações que buscaram assegurar a sua manutenção. Dentre as precursoras, pode-se encontrar o Regimento do Pau-Brasil, datado de 1605, versando expressamente sobre a proteção das florestas. Por conseguinte, houve a instituição da Carta Régia de 1797, que trouxe em seu bojo a afirmação da necessidade de proteção dos rios, nascentes e encostas que, por sua vez, passaram a ser declaradas como de propriedade da Coroa[48].

No ano de 1799, foi criado o Regimento de Cortes de Madeiras, de modo que o seu teor estabelecia regras rigorosas para a derrubada de árvores. Na sequência, surgiu a Lei 601/1850, dispondo sobre Lei de Terras do Brasil, ao estabelecer o disciplinamento, e a ocupação do solo, além das sanções para atividades que se caracterizassem nocivas para o meio ambiente[49].

No começo do século XX, mais precisamente no ano de 1911, com o advento do Decreto 8.843, instituiu-se a primeira reserva florestal do Brasil, localizada no antigo território do Acre. Posteriormente, no ano de 1916, com o advento do Código Civil brasileiro, foram promulgados dispositivos versando sobre o meio ambiente, ainda que, refletindo o ranço patrimonialista daquela sociedade[50].

Finalmente, no ano de 1934, foram sancionados, tanto o Código Florestal quanto o Código das Águas, tendo, o primeiro, o escopo precípuo de limitar o direito de propriedade e, o segundo, “o aproveitamento e a conservação da qualidade dos recursos hídricos”[51] e, ainda, o Decreto 24.645/1934 estabelecendo a proteção aos animais[52].

Já no ano de 1940, foi sancionado o Decreto 2.848 (Código Penal) que, mais precisamente em seu artigo 120, estabeleceu sanção para quem causasse incêndios e, em seu artigo 271, sanção para quem de alguma forma comprometesse ou poluísse a água potável[53].

Em 1948, através do Decreto Legislativo de n. 3, aprovou-se a Convenção visando a proteção da Flora, da Fauna, bem como das Belezas Cênicas e Naturais dos países das Américas[54].

Somente em 1950, a concepção “individualista ou da exploração desregrada”, que esteve vigente desde a descoberta do Brasil que, foi concebida como a primeira fase do Direito Ambiental Brasileiro, cedeu lugar à segunda fase, tratada pela doutrina como fragmentária[55], em cuja qual foram promulgados tanto o Decreto 50.877, de 1961, proibindo o lançamento de resíduos nas águas sem que houvesse o tratamento adequado para elidir a poluição; o Decreto 4.466 de 1964, determinando a arborização e construção de aterros-barragem para represamento de águas; a Lei 4.504, de 1964, denominada de Estatuto da Terra, que previu soluções para as acaloradas reivindicações oriundas dos movimentos sociais desencadeados for força da necessidade premente de alterações relativas ao uso da terra[56].

Ainda, sob a égide da segunda fase e, mais precisamente no ano de 1965, foram editadas a Lei 4.778, tratando da obrigatoriedade na oitiva de “autoridades florestais na aprovação de planos de loteamento”[57]. Além de uma nova versão do Código Florestal, que possibilitou a ampliação das políticas que visavam proteger e conservar a flora, além de contemplar a previsão de proteção das áreas de preservação permanente.

No ano seguinte, editou-se o Decreto 58.256, denominado de “Tratado de Prescrição das experiências com armas nucleares na atmosfera, no espaço cósmico e sob a água”[58]. Dois anos depois foram editados os Códigos de Caça, Pesca, Mineração; a Lei de Proteção à Fauna[59]; e ainda a Lei 5.357, que “estabeleceu penalidades para embarcações e terminais marítimos e pluviais que lançassem dejetos poluentes em águas brasileiras”[60]. No ano de 1967, a Constituição dispôs sobre a atribuição de competência aos Estados para que legislassem sobre florestas[61].Todavia, segundo Furlan e Fracalossi[62], ainda que tais normas visassem assegurar “uma proteção legal circunscrita, por exemplo, às florestas, animais, peixes e minérios, não garantiu a mesma proteção ao meio ambiente de modo uniforme”.

Em 1975, o Decreto Lei 1.413 estatuiu a obrigação da prevenção e correção dos prejuízos eventualmente ocasionados pela contaminação do meio ambiente[63].

Já no ano de 1977, foi promulgada a Lei 6.453 estabelecendo a responsabilidade civil para danos oriundos da realização de atividades nucleares. Alguns anos depois, foi estabelecida a Política Nacional do Meio Ambiente, através da qual o meio ambiente passou a receber atenção especial uma vez que foi concebido como objeto específico de proteção.

Em 1985, com a edição da Lei 7.347, já sob a égide da terceira fase do Direito Ambiental, denominada de holística[64], houve o disciplinamento da ação civil pública para a tutela específica do meio ambiente, e dos demais interesses difusos ou coletivos[65].

Finalmente, em 1988, com a promulgação da Constituição da República, surgiu uma nova era relativa à proteção ambiental, posto que o direito do meio ambiente foi alçado à categoria de direito fundamental em razão da materialidade constitucional do seu conteúdo, recebendo um capítulo exclusivamente voltado a obrigação da sua defesa e preservação, tanto para as gerações presentes como para as futuras, mais precisamente através do seu artigo 225[66].

Nesta senda, Fensterseifer[67], citando Silva, apregoa o cunho “eminentemente ambientalista” da Constituição de 1988:

[...] a Constituição de 1988 é eminentemente ambientalista, assumindo o tratamento da matéria em termos amplos e modernos, uma vez que, além de destacar capítulo próprio para a temática ambiental, a questão permeia todo o seu texto, correlacionada com os temas fundamentais da ordem constitucional.

Vale ressaltar que a Constituição de 1988, proporcionou a união entre o Meio-Ambiente e a infraestrutura econômica do país, pois, segundo Antunes Bessa[68], “foi reconhecido pelo constituinte originário, que se faz necessária a proteção ambiental de forma que se possa assegurar uma adequada fruição dos recursos ambientais e um nível elevado da qualidade de vida das populações”.

Vê-se que, tendo a Constituição alçado o meio ambiente a condição nunca antes elevada, foi extremamente inovadora, quando, em total harmonia com os diplomas internacionais que versam sobre a matéria, extrapolou as meras disposições que outrora visavam, de forma esparsa, proteger os recursos naturais, buscando o alcance da harmonia jurídica dos institutos que regiam a matéria, ainda que não se possa olvidar que, conforme visão de Antunes Bessa[69], “a norma constitucional ambiental é parte integrante de um complexo mais amplo e podemos dizer, sem risco de errar, que ela faz a interseção entre as normas de natureza econômica e aquelas destinadas à proteção dos direitos individuais”.

Ou seja, em que pese o meio ambiente ter sido caracterizado como imprescindível, em virtude de ser concebido como “centro nevrálgico”[70] da Carta Magna, sendo tanto formal, quanto materialmente constitucional, imprescindível será o esforço para que haja a necessária compatibilização de toda matéria contemplada pelo texto constitucional. Mesmo porque, a proteção do meio ambiente tem o escopo precípuo de “elemento de interseção entre a ordem econômica e os direitos fundamentais”[71]. Assim, em havendo qualquer colisão entre valores constitucionais como, por exemplo, o direito adquirido da não averbação de reserva legal de imóvel que se tornou urbano, considerando que a exigência recai somente sobre imóvel rural, conforme se verá adiante, deverá haver uma análise escorreita dos valores em tela, bem como pluralizada do todo, a fim de que seja preservada a unidade da constituição, considerando que, “não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços”[72].

3.1 RESERVA LEGAL

Como um dos objetos específicos de tutela do meio ambiente, encontra-se a reserva legal concernente a uma espécie de restrição imposta ao proprietário de imóvel rural que, segundo Freitas[73], consiste em “uma área mínima de conservação obrigatória” que não poderá ser explorada irrestritamente, cuja fruição da propriedade estará condicionada a uma limitação em que o percentual mínimo é de 20% (vinte por cento) podendo chegar, inclusive, a 80% (oitenta por cento) da área da propriedade de acordo com a região do país[74], conforme bem leciona Silva[75]:   

[...] Por reserva legal entende-se a área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, á conservação e reabilitação dos processos ecológicos, á conservação da biodiversidade (art. 1º, § 2, III). Quer dizer que as áreas de preservação permanente não entram no cômputo do percentual de reserva legal discriminado nos incisos do artigo 16. A reserva legal que incide apenas sobre floresta de domínio privado, é um espaço territorial especialmente protegido, nos termos do art. 225, § 1º, III, da Constituição Federal, que não se confunde com unidades de conservação. Trata-se apenas de reserva florestal, não de reserva de fauna, que é também um espaço, (uma área) especialmente protegido não por si, mas em função das populações animais que nela existem, e é de domínio público, que tem seu regime jurídico estabelecido no art. 19 da Lei 9.985, de 2000, ao contrário da reserva florestal legal, que é protegida Poe si e é de domínio privado. A reserva legal de florestas não é servidão, mas simples restrição do direito de propriedade, pelo que não é indenizável.

Ocorre que a expressão “reserva legal” demorou 55 (cinquenta e cinco) anos para ser cunhada, tendo em vista que, somente com a promulgação da Lei Federal 7.803/1989, a aventada necessidade de restrição no manejo das florestas foi assim designada.

Verifica-se que o Decreto Federal 23.793/34[76], antigo Código Florestal, ainda que tenha, segundo lição de Milaré[77], “introduzido a idéia de Reserva Florestal Legal em nosso ordenamento”, não teve por escopo proceder qualquer alusão a expressão denominada de reserva legal, conforme depreende-se do texto legislativo, buscando única e tão somente assegurar, em seu artigo 23, que “nenhum proprietário de terras cobertas de matas poderá abater mais de três partes da vegetação existente, salvo o disposto nos artigos 24 e 51 (25% - vinte e cinco por cento)”, omissão esta que propiciou o parcelamento do solo, sem que houvesse a averbação da dita reserva.

O referido código permaneceu vigente até o advento do Código Florestal de 1965, com a edição da Lei 4.771/65[78], que foi editada em decorrência do notável avanço da proteção estendida às reservas florestais. Contudo, não se pode afirmar que, neste momento, o termo Reserva Legal passou a constar do referido diploma legal, conquanto em tal texto, apenas existiam previsões de restrições à exploração de florestas de domínio privado, conforme o asseverado pelo seu artigo 16, “a”, senão vejamos:

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[...] as florestas de domínio privado, não sujeitas ao regime de utilização limitada e ressalvadas as de preservação permanente, previstas nos artigos 2º e 3º desta Lei, são suscetíveis de exploração, obedecidas as seguintes restrições:

Nas regiões Leste Meridional, Sul e Centro-Oeste, esta na parte Sul, as derrubas de florestas nativas, primitivas ou regeneradas, só serão permitidas, desde que seja em qualquer caso, respeitado o limite mínimo de 20% da área de cada propriedade com cobertura arbórea localizada a critério da autoridade competente.

Ou seja, conforme o já esposado, somente no ano de 1989, com o advento da Lei Federal 7.803/89[79], foi cunhada a expressão reserva legal, cuja definição decorreu do advento da Medida Provisória 2.166-67/2001[80], mais precisamente de seu artigo 1º, § 2º, III, que assim a definiu:

[...] Área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação e a biodiversidade e ao abrigo e proteção da fauna e flora nativas.

Nesse passo, com a nova redação legal, buscou-se promover a preservação e a recuperação das matas existentes nas propriedades rurais[81], de forma a evidenciar-se que, o que antes deveria ser aleatoriamente “preservado” ou “recuperado”, passou a necessariamente incidir sobre determinada fração do imóvel que deveria obrigatoriamente ser preservado.

Tal Medida Provisória concedeu nova redação ao artigo 16 do Código Florestal, ao asseverar que:

[...] As florestas e outras formas de vegetação nativas ressalvadas as situadas em áreas de preservação permanente, assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica, são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva legal.

I - oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal;

II - trinta e cinco por cento, na propriedade rural situada em área de cerrado localizada na Amazônia Legal, sendo no mínimo vinte por cento na propriedade e quinze por cento na forma de compensação em outra área, desde que esteja localizada na mesma microbacia, e seja averbada nos termos do § 7º deste artigo;

III - vinte por cento, na propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do País; e

IV - vinte por cento, na propriedade rural em área de campos gerais localizada em qualquer região do País.

De acordo com o supramencionado, ainda que leis anteriores tenham tratado da matéria intentando disciplinar a questão da averbação da reserva legal, nenhuma foi impositiva o suficiente ao ponto de coibir, ou mesmo restringir a utilização da propriedade. Como bem reconheceu Machado[82], em virtude da tardia instituição da imposição legal que, somente ocorreu em 1989, a “reserva era esfacelada ou diminuída por ocasião da venda, do desmembramento e/ou sucessão da propriedade”. Ou seja, somente depois da instituição do referido disciplinamento, passou a existir a obrigatoriedade quanto ao seu cumprimento, culminando, notadamente, com a restrição parcial da sua modificabilidade.

Ainda que a intenção, tanto do legislador ordinário, quanto do constituinte tenha sido assegurar o “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,” a reserva legal somente passou a ter proteção efetiva quando da introdução das modificações da lei 7.803/89.

Desta ilação, pode-se concluir que, somente a partir da edição da Lei 7.803/1989[83], a averbação da reserva legal passou a constituir-se como exigência. Além do que, a sua inalterabilidade, bem como a proibição do corte raso, passaram a constituir-se como imposições, quando o artigo 16, § 2º, dispôs que:

[...] a reserva legal, assim entendida a área de, no mínimo 20% (vinte por cento) de cada propriedade, onde não é permitido o corte raso, deverá ser averbada à margem da inscrição da matrícula do imóvel, no Registro de Imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação nos casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento de área. (grifos nossos)

Analisando a lei, tem-se que a alteração da destinação da reserva legal não poderia ocorrer quando esta já tivesse sido averbada à margem da matrícula do imóvel. Tal entendimento tem a confirmação de Mantovani e Bechara[84] que ponderam o seguinte: “como já asseverado, o Código Florestal, em seu art. 16, § 2º, dispõe que a Reserva Legal, devidamente averbada, não pode sofrer alteração em sua destinação, mesmo em casos de transmissão, a qualquer título, ou de desmembramento de área”, o que abriu a possibilidade para que todos aqueles proprietários de imóveis que, eventualmente, não tivessem procedido à averbação antes do advento da lei obrigando o seu registro na matrícula do imóvel a isentar-se da proibição de mutabilidade.

No entanto, ainda que sob o pálio da alegada inexistência de lei obrigando a averbação antes de 1989, bem como sob a existência de originado direito adquirido daqueles que tiveram as suas propriedades incorporadas ao perímetro de expansão urbana de seus municípios, para alguns, o entendimento de que somente a Lei 7.803 de 1989 teria implementado a necessidade de averbação de reserva legal, seria totalmente descabido, porquanto mesmo a lei tendo sido instituída somente em 1989, a obrigação da averbação de reserva legal já existia desde o advento do Código Florestal de 1934. Assim, todos aqueles imóveis que, eventualmente, fossem incorporados ao território de expansão urbana de seus municípios antes do advento da Lei 7.803/1989, deveriam ter procedido previamente à averbação da reserva legal à margem da matrícula dos respectivos imóveis, com vistas à preservação do meio ambiente, considerando que, independentemente, da localização do imóvel, ele deverá contribuir para a efetivação do direito à sadia qualidade de vida que, não obstante, também deverá ocorrer nas cidades[85].

3.2 AS LEGISLAÇÕES POSTERIORES À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA – DISCIPLINAMENTO DA RESERVA LEGAL

Ainda que a Lex Suprema tenha sido o marco divisor da legislação ambiental, consistindo em conditio sine qua non para a elevação do direito do meio ambiente à categoria inquestionável de direito fundamental, há que se ressaltar que outras legislações importantes surgiram posteriormente, com vistas ao disciplinamento de questões ainda obscuras, ou mesmo lacunosas em nosso ordenamento jurídico, principalmente, no que concerne a denominada Reserva Legal que, desde a Constituição de 1934, tem sido motivo de dissenso na doutrina.

Em que pese a existência do Código Florestal, que desde 1934 busca disciplinar a questão da Reserva Legal, além da Constituição de 1988 propugnar que o meio ambiente sadio é bem de uso comum e imprescindível a sadia qualidade de vida, imperioso destacar que muitas legislações nasceram eivadas de vício, seja em decorrência da omissão do legislador, que as tornou confusas, lacunosas, tardias ou ainda ausentes de imperatividade necessária ao seu cumprimento, ou mesmo de sanções pelo seu descumprimento[86].

Não obstante isso, há que destacar que outras tantas foram criadas incompatíveis com a Carta Maior, ou seja, inconstitucionais, dando azo à colisão entre direitos fundamentais[87].

Nesse sentido, mister ressaltar que um dos maiores exemplos de antagonismo decorre da alegada imposição da averbação de reserva legal, pois conforme o ora invocado, ainda que alguns entendam que a obrigatoriedade advém da instituição do Código Florestal de 1934, outros entendem que somente com o advento da Lei 7.803/89, momento em que foi criado o termo “reserva legal” que alterou o artigo 16 do Código Florestal, é que tal exigência passou a existir[88]. E ainda, há quem diga que somente com a reforma da legislação, mais precisamente com o advento da Medida Provisória 2.166/67/2000, que inseriu o § 8º no artigo 16 do Código Florestal, é que se pode realmente conceber a existência de tal obrigação:

[...] art. 16, § 8º A área de reserva legal deve ser averbada à margem da inscrição de matrícula do imóvel, no registro de imóveis competente, sendo vedada a alteração de sua destinação, nos casos de transmissão, a qualquer título, de desmembramento ou de retificação da área, com as exceções previstas neste Código. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001).

A determinação de imutabilidade da destinação quando da transmissão da propriedade, passou a existir para Machado[89] com a promulgação da Lei 7.803/89:

[...] a lei visou dar um caráter de relativa permanência à área florestada do país. A lei federal determina a imutabilidade da destinação da Reserva Legal Florestal de domínio privado, por vontade do proprietário. Nos casos de transmissão por compra e venda como, também, por acessão, usucapião e pelo direito hereditário, a área de Reserva, a partir da promulgação da Lei 7.803/1989, continua com os novos proprietários, numa cadeia infinita. O proprietário pode mudar, mas não muda a destinação da área da Reserva Legal Florestal.

E ainda, em outra passagem, Machado[90] revela que a instituição de tal legislação ocorreu a destempo, conquanto esclarece que:

[...] a reforma da legislação florestal de 1989, ao lado de outras reformas de textos legais ambientais que se fizeram na mesma ocasião veio tardiamente. A reserva era esfacelada ou diminuída por ocasião da venda, do desmembramento e/ou sucessão da propriedade.

Ou seja, conforme alhures referido, a lei não sendo suficientemente clara, ou mesmo não impondo o dever ao proprietário do imóvel, não evitou a ocorrência do parcelamento do solo que se dava por venda, ou mesmo sucessão das propriedades, o que somente ocorreu em virtude da ausência oportuna do disciplinamento da questão envolvendo a averbação de reserva legal que, nos exatos termos do escólio de Freitas[91] “é evidente que se houvesse limitação à alienação ou a oneração de bens imóveis pelo proprietário que não tivesse averbado a reserva legal, ela estaria expressa na lei”.

Como se já não bastasse a extemporaneidade da lei, existem ainda as diversas interpretações acerca da exigência da averbação, posto que em julgamento de Recurso Administrativo, a Egrégia Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, manifestou-se no seguinte sentido[92]:

[...] a averbação de reserva legal é exigida apenas para algumas formas de exploração dos imóveis rurais, mormente para a preservação da Mata Atlântica, não se podendo condicionar o registro de atos de transmissão da propriedade imobiliária rural e de fracionamento do imóvel rural à efetivação daquela averbação (da área de reserva legal), prevista no artigo 16, § 2º (atual 8º), do Código Florestal (Lei 4.771/65), isto sob o fundamento de que não existe na lei proibição do ingresso no registro imobiliário dos atos translativos ou de fracionamento daquelas propriedades se não for observada a determinação relativa à averbação de reserva legal. (Grifo nosso)

Desta feita, a efetividade deste objeto específico de tutela do meio ambiente, pode, invariavelmente, restar frustrada uma vez que, como se percebe, não se poderia sequer condicionar o registro de atos de transmissão da propriedade rural e de fracionamento de imóvel à averbação de reserva legal.

Assim, seja em decorrência da lacuna legislativa que permitiu o parcelamento do solo sem a devida averbação, seja, pelas inúmeras incorporações de imóveis ao território de expansão urbana, jungidas ao não condicionamento de tais registros à averbação da reserva legal, a tutela específica de proteção ao meio ambiente consistente na averbação de reserva legal restou frustrada.

Não obstante, o fato, insta ressaltar que, mesmo havendo a alegação de que sobre os imóveis não recai mais qualquer ônus relacionado à averbação de reserva legal em razão da sua incorporação ao território de expansão urbana dos municípios, tal fato não os exime, de forma alguma, das demais responsabilidades atinentes à realização individual da proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, conforme bem dispõe o parágrafo único do artigo 2º do Código Florestal[93]; senão vejamos:

Art. 2º. [...] Parágrafo único. No caso de áreas urbanas, assim entendidas as compreendidas nos perímetros urbanos definidos por lei municipal, e nas regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, em todo o território abrangido, observar-se-á o disposto nos respectivos planos diretores e leis de uso do solo, respeitados os princípios e limites a que se refere este artigo.

Ou seja, independentemente da leitura que se faça da lei, ou ainda da alegação de que ela foi tardia, contribuindo para a deflagração de um direito adquirido de não averbar reserva legal, não se pode olvidar da necessária adoção de mecanismos voltados à gestão consciente do legado natural, conforme o disposto no Código Florestal, considerando que são imprescindíveis para a manutenção do equilíbrio do planeta, bem como da consecução de um objetivo comum que se baseia no fim coletivo e social[94].

3.3 A EXIGÊNCIA DE AVERBAÇÃO DE RESERVA LEGAL MESMO QUANDO O IMÓVEL JÁ FOR URBANO

Ainda que para uma parte da doutrina a exigência da averbação de reserva legal incida somente sobre imóveis rurais, e ainda que tal exigência decorreu apenas do advento da lei 7.803/1989, ou ainda da Medida Provisória 2.166/67/2000, momento em que muitos imóveis já eram urbanos, para Gabriel Montilha[95], advogado do Instituto Ambiental do Paraná, a obrigatoriedade de averbar reserva legal, não restringe-se somente aos imóveis rurais, mas também, a partir de 1989, à todos aqueles imóveis que foram incorporados ao perímetro urbano dos seus municípios, justamente porque, segundo ele, as propriedades que antes eram rurais, ao serem incorporadas ao perímetro urbano de seus municípios, já deveriam encontrar as reservas legais devidamente registradas nas matrículas dos imóveis, não havendo que se falar que a incorporação do imóvel ao perímetro urbano isentou-os da obrigação[96].

Sob tal pretexto, o Instituto Ambiental do Paraná, a partir de 1989, passou a exigir o registro da averbação de reserva legal para aqueles imóveis que já haviam passado a incorporar o perímetro urbano de seus municípios antes mesmo da edição da lei, sob a alegação de que a obrigação de averbar a reserva legal junto à matrícula do imóvel advinha dos Códigos Florestais de 1934 e de 1965, ressaltando que a partir da publicação da lei 7.803/1989, tornou-se obrigatório para o proprietário de imóvel rural a averbação da reserva legal no percentual mínimo de 20%.

Tal entendimento, de igual modo consubstanciou-se na Lei 10.257/2001, que visando a concretização do direito ao meio ambiente, passou a instituir que o desenvolvimento da cidade deveria obedecer a proteção, a preservação e a recuperação do meio ambiente natural, cuja obrigação deveria refletir nos planos diretores das cidades, com vistas à efetividade da preservação do meio ambiente. Mesmo porque, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado constitui-se como um dos cernes do nosso ordenamento jurídico, posto que, somente com a sua preservação, é que poderá ocorrer a confirmação de que restará assegurada à todos a adequada fruição dos recursos naturais, tanto para as presentes, quanto para as futuras gerações[97].

Assim, o Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, mais precisamente em seu artigo 2º, VI, estabelece que “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”, o qual, corroborado pelo artigo 2º, parágrafo único, do Código Florestal, retrata a necessidade de observância ao disposto nos planos diretores e leis de uso do solo, que, na visão de Figueiredo[98], consiste na adoção de “diversas diretrizes gerais, dentre as quais a de ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar o parcelamento do solo, e a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infraestrutura urbana, bem como a evitar a degradação ambiental”.

Ressalta-se ainda que, mesmo havendo entendimentos acerca do fato de que somente a partir da Lei 7.803/89, passou-se a exigir a averbação de reserva legal, segundo o referido advogado[99], não se pode olvidar que a competência para legislar sobre florestas é concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, não tendo, portanto, o município, a prerrogativa para legislar sobre florestas, tampouco, sobre reserva legal, ainda que a tenha para legislar sobre assuntos de ordem local, como foi o caso do Decreto que incorporou o imóvel à zona de expansão urbana do município.

Tal fator tem implicado na indigitada colisão entre direitos fundamentais, pois enquanto existe a manifestação incisiva acerca da existência da obrigação decorrer do Código Florestal de 1934 e de 1965, há quem rebata a ideia, sob a alegação de que tal obrigação decorreu apenas da edição da Lei 7.803/89, momento em que muitas propriedades já eram urbanas e, portanto, alheias a obrigação.

Ainda que a tardia promulgação da lei tenha dado azo ao descumprimento da obrigação por parte dos proprietários dos imóveis que se tornaram urbanos antes de 1989, momento em que sob o ponto de vista destes não incidia tal exigência em decorrência do imóvel ter se tornado urbano, sob pena de prejudicar o direito adquirido de não averbação de reserva, imperioso destacar que o princípio da defesa do meio ambiente, além de “conformar a ordem econômica” segundo afirma Grau[100], ainda é o responsável pela efetivação da existência digna, sem a qual não se pode viver, sendo certo que deverão existir políticas conformadoras que resguardem a efetivação da disposição expressa na Carta Magna no que diz respeito a conservação do meio ambiente que deverá se orientar pelo desenvolvimento sustentável, consoante leciona Derani[101]:

[...] assim, políticas que reencontrem uma compatibilização da atividade econômica com o aumento das potencialidades do homem e do meio natural, sem exaurí-las; apoiadas por normas de incentivo à pesquisa científica de proteção dos recursos naturais e de garantia de uma qualidade ambiental são expressões do direito do desenvolvimento sustentável – uma outra forma de ver e compreender o direito ambiental. (grifo nosso)

Nesse passo, a partir de uma leitura teleológica do supramencionado entendimento, percebe-se que será necessário o devido condicionamento da atividade econômica, bem como do desenvolvimento da atividade humana, com vistas à manutenção da qualidade ambiental que, somente será possível com a utilização de técnicas de compatibilização que podem ser encontradas somente com a adoção do princípio do desenvolvimento sustentável.

3.4 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

O desenvolvimento sustentável tem como objetivo precípuo ordenar as políticas de desenvolvimento objetivando, especialmente, a erradicação da pobreza que, invariavelmente, propiciará a melhoria das condições vitais em todos os aspectos, tanto no econômico, quanto no plano social, intrinsecamente relacionado à sadia qualidade de vida dos povos[102].

O princípio do desenvolvimento sustentável tem como premissa “a regulação e o controle da atividade econômica”[103] o que se dá a partir da instituição de leis, que surgem com o fito de salvaguardar o direito de todos ao acesso à esse bem, evidenciando que os processos de desenvolvimento deverão sempre estar pautados na condução de técnicas que permitam evitar a deteriorização ambiental[104], a fim de que o meio ambiente seja mantido incólume.

Com isso, a educação ambiental se faz premente, uma vez que, somente a partir dela, será possível a potencialização dos inúmeros sistemas de conhecimento para a integração plena entre o homem e o meio ambiente, fazendo-o perceber acima de tudo, que todos os recursos utilizados para o seu conforto advêm de fontes naturais que, ao contrário do que se pensa, são esgotáveis[105].

Tal constatação permite evidenciar que a reflexão sobre mecanismos tendentes à minimização dos riscos torna-se “um tema e um problema” para a sociedade que, ao produzir os riscos deverá dar conta de rever as suas práticas sociais[106].

Por fim, ainda que todos os seres humanos tenham o direito de desenvolver-se economicamente, há que se ressaltar que o alcance de tal meta deve ocorrer em observância aos princípios do desenvolvimento sustentável que se consubstancia na harmonia entre o progresso e a natureza. Ou seja, ainda que, eventual demanda judicial seja decidida em prejuízo do meio ambiente, deve-se assegurar, que o prejuízo seja o menor possível, valendo nesse sentido transcrever o entendimento de Furlan e Fracalossi[107]:

[...] Deve ser feito o trabalho e Hércules de Dworkin, ou seja, dentre todas as soluções possíveis, a justa, a certa, será aquela que menor dano cause ao meio ambiente. Isso porque a bandeira do progresso não pode servir para justificar tudo, inclusive danos ambientais.

Com a adoção de tal prática, espera-se que, em momento algum o direito ao meio ambiente tenha o seu conteúdo essencial esvaziado ou comprometido ante a deflagração de conflito entre valores constitucionais relevantes, considerando-se que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um dos mais importantes direitos fundamentais do nosso ordenamento jurídico, uma vez que se traduz como legado a ser resguardado, tanto para as presentes como para as futuras gerações[108].

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Sobre a autora
Debora Cristina de Castro da Rocha

Advogada com grande experiência na área do Direito Imobiliário, tendo atuado na defesa de grandes construtoras do país, possui vários artigos publicados. Palestrante, Colunista no site de notícias YesMarilia, Vice Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Vice Presidente da Comissão de Fiscalização, Ética e Prerrogativas Profissionais da OAB/PR, subseção São José dos Pinhais/PR e membra da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/PR seccional. Especialista em Direito e Processo do Trabalho, Especialista em Direito Constitucional pela ABDConst e Especializanda em Direito Imobiliário Aplicado pela EPD.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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