4 O DIREITO ADQUIRIDO – DIREITO FUNDAMENTAL CONSAGRADO NO ARTIGO 5º – PRINCÍPIO CONCRETIZADOR DA ESTABILIDADE E DA SEGURANÇA JURÍDICA
Precipuamente, cumpre esclarecer que o direito adquirido no Brasil vem sendo concebido como tradição do constitucionalismo brasileiro, uma vez que se pode encontrar a previsibilidade de tal garantia desde o texto constitucional de 1824, mais precisamente no artigo 179, 3º, bem como a de 1891, artigo 11, 3º. De igual modo, tem-se que a Constituição de 1934, buscou assegurar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, algo que com o advento da Constituição de 1937, restringiu-se à aplicação da norma no âmbito penal. Ainda que a Constituição de 1946 tenha albergado tal previsibilidade, houve certa mitigação quanto ao seu âmbito de aplicação, considerando que muitas garantias jungidas à consagração de tal ideário padeceram ante a instauração do estado de exceção. Ressalte-se que mesmo tendo a redação se mantido incólume em todos os textos constitucionais posteriores, a saber: 1967 e 1969, tal prerrogativa não se realizou no plano fático em decorrência do AI Nº. 5 [109].
Com a promulgação da Carta Maior de 1988, a proteção ao direito adquirido foi de fato enfatizada visando a segurança jurídica da coletividade, ao condicionar o exercício arbitrário do poder estatal, bem como permear as relações sociais, que se estendeu, sobretudo, à proteção das liberdades individuais[110].
Não obstante, o próprio Código Civil de 1916, contemplou a garantia da proibição da retroação legal[111] e o Código Civil de 2002, através da Lei de Introdução ao Código Civil, buscou assegurar tal prerrogativa ao prelecionar, em seu artigo 6º, que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”[112].
De toda sorte, para a própria estabilização do sistema, faz-se imprescindível a existência da segurança jurídica que, notadamente, é conferida pelo direito adquirido, haja vista que, somente dela decorre a certeza de que o indivíduo não será surpreendido negativamente por alguma norma que tenha o condão de esgotar todas as garantias até então alcançadas, ou mesmo tolhê-lo da prática das suas prerrogativas essenciais[113].
Veja-se que, para Sarmento[114], a segurança jurídica traduz-se na ideia de que não deverão ser gerados deveres que venham a surpreender o sujeito, senão vejamos:
[...] certeza do Direito aparece, assim, como um direito fundamental, na medida em que não se geram deveres que surpreendam ao sujeito, assim como não se lhe impõe penas que possam atingir a sua liberdade ou seus bens. Mais até do que isto: a falta de certeza do Direito pode levar a decisões divergentes entre os vários tribunais, o que em última análise, faz com que casos idênticos sejam tratados de forma diferente em um mesmo ordenamento jurídico, o que contraria o princípio da igualdade, imanente á própria idéia de Direito.
Por fim, insta ressaltar que a segurança jurídica está intimamente relacionada ao Estado de Direito e, ainda, à certeza quanto à concretização deste direito através da submissão de todos à lei, como forma de prevenir-se o exercício arbitrário de funções, principalmente quando se fala que o princípio da segurança jurídica que “ajuda a promover os valores supremos da sociedade”[115] está intrinsecamente relacionado com o princípio da legalidade do qual decorre a legitimidade para a atuação do Estado Administração[116].
4.1 ATUAL ENTENDIMENTO E APLICAÇÃO DO DIREITO ADQUIRIDO NO BRASIL E SUA ORIGEM HISTÓRICA
Em todos esses anos, ainda que o arcabouço legislativo tenha contemplado inúmeras alterações relativas ao entendimento sobre a garantia da existência ou não do direito adquirido, conforme afirma Sampaio[117], “a Constituição resguarda o que se consolidou no patrimônio privado”. Nesse diapasão, Sampaio[118], citando Raul Machado Horta, esclarece ainda que, “o desfazimento dos direitos adquiridos é excepcional em nossa tradição, prevalecendo o princípio da continuidade”.
Inobstante, a doutrina italiana, mais especificamente na pessoa de Gabba, foi preponderante para a sedimentação do primado do direito adquirido, principalmente, quando se vislumbra que as Constituições brasileiras sofreram forte influência de sua concepção sobre a impossibilidade de retroação da norma, objetivando, com isso, garantir a consagração do direito adquirido[119].
Foi Gabba quem perfeitamente definiu o direito adquirido, “como o que integra o patrimônio de uma pessoa, por força de lei, ou de fato voluntário, verificado na vigência da lei derrogada, cujos efeitos produzem-se ainda no futuro, apesar de a lei que o rege estar revogada”[120].
Hodiernamente, no Brasil o próprio Supremo Tribunal Federal pacificou a questão quando proferiu o julgado citado por Marmelstein[121], enunciando que “o disposto no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva”.
Tal estatuição serve para demonstrar que existe a premência de se respeitar as situações jurídicas já firmadas e consolidadas pelo tempo, de modo que, se eventualmente houver aplicação retroativa da lei ela, em hipótese alguma, poderá desrespeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada[122].
Por oportuno, vale ainda mencionar que na visão de Sampaio[123], os direitos adquiridos convertem-se em direito fundamental, cuja garantia apresentasse como direito “público subjetivo jusfundamental”, valendo transcrevê-lo ipsis literis:
[...] os direitos adquiridos podem ter a estatura de instituto previsto na Constituição, convertendo-se em direito fundamental. Em sendo assim, a sua garantia se mostra como direito público subjetivo jusfundamental qualificado no tempo como barreira à irreversibilidade da regulação dos atos e conseqüências passados. Um direito negativo, de maneira a possibilitar aos titulares exercê-lo contra as intervenções estatais, notadamente legislativas; mas também um direito positivo de exigir-se do Estado um quadro de prestação fática e jurídica que permita, pelo menos, fazer-se respeitado por terceiros, advogando-se ir além; possibilitar material e juridicamente a realização do conteúdo protegido. Além do mais, ganham os traços peculiares da rigidez das barreiras agravadas a mudanças constitucionais sob a proteção do sistema de fiscalização da constitucionalidade.
De tal leitura, pode-se perceber que, mostrando-se o direito adquirido como norma fundamental, que, por conseguinte, consagra-se como um direito negativo, devidamente qualificado como limitação de irreversibilidade dos atos, acaba por propiciar aos jurisdicionados a segurança jurídica de um conteúdo que se pretende proteger, ante as inúmeras alterações legislativas que, não raro, poderão ser objeto de controle de constitucionalidade.
Importante ensinamento advém do escólio de Lacerda[124], ao mencionar Pontes de Miranda, quando da afirmação de que “não se deve presumir o caráter retroativo da norma constitucional”, senão vejamos:
[...] as constituições têm incidência imediata, ou desde o momento em que elas mesmas fixaram como aquele em que começariam de incidir. Entretanto, não se deve presumir o caráter retroativo da norma constitucional originária. Insista-se em que o princípio geral de direito é a irretroatividade. Daí a presunção de que a norma não tem retroeficácia. Para fugir disto é necessário que a norma decorra inexoravelmente do texto.
Por fim, vale afirmar que o postulado da não retroatividade das leis, ainda que comporte exceções, vem sendo concebido como universal, o que inviabiliza que leis novas intentem disciplinar fatos e consequências ocorridas sob o império de outras normas, ainda que estas últimas tenham ocorrido sob a égide da lei nova, justamente para que se alcance a segurança jurídica e a estabilidade do direito[125], sendo imperioso que se verifique se a aquisição do direito violado pela lei nova ocorreu na vigência da lei antiga, a fim de que se evite que venha a ser prejudicado pela nova estatuição legal[126].
4.2 A INEXISTÊNCIA DE HIERARQUIA ENTRE LEIS DE ORDEM PÚBLICA E AS DEMAIS
A existência do direito adquirido como garantia constitucional está totalmente pacificada na doutrina, de modo que as hipóteses de não retroatividade da lei encontram-se expressas na Carta Magna, a saber: (i) proteção da segurança jurídica no domínio das relações sociais; (ii) proteção da liberdade do indivíduo contra a aplicação retroativa da lei penal; (iii) proteção do contribuinte contra o Fisco. Ademais isso, verifica-se que a não retroação ainda consubstancia-se em direito individual devidamente resguardado pelo artigo 60, § 4º, IV da Lex Suprema, o qual condiciona a atividade tanto legislador, quanto dos órgãos judiciário e legislativo[127].
Vislumbra-se ainda que, justamente visando salvaguardar tal princípio constitucional, o legislador constituinte, estatuiu no artigo 60, § 4º, IV, que não será “objeto de deliberação a proposta tendente a abolir os direitos e garantias individuais”[128], a qual é corroborada pela lição de Lacerda[129], no seguinte sentido:
[...] daí se pode inferir, sem censura jurídica, que, por meio de reforma constitucional – Poder Constituinte Derivado –, o direito adquirido não pode sofrer modificação, e muito menos abolição, pois se encontra no rol dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal, conforme salienta seu art. 5º, caput.
Quanto a eventual alegação de hierarquia entre leis de ordem pública e as demais, imperioso destacar que não há qualquer diferenciação entre elas, segundo escólio ministrado por Barroso[130]:
[...] a regra do art. 5º, XXXVI, dirige-se ao legislador de todos os níveis, só não se sobrepondo ao constituinte. Quanto ao conteúdo do ato normativo, não há qualquer distinção entre as chamadas “leis de ordem pública” e as demais, como faz supor certo segmento doutrinário. A Constituição não prevê exceções. Qualquer lei, seja qual for o adjetivo que se lhe vier a agregar, está obrigada a respeitar essas garantias, mesmo porque nenhum sentido haveria em admitir-se que a Lei, conferindo a si própria determinada qualificação, pudesse afastar a garantia constitucional. (Grifo nosso)
Nesse passo, importante asseverar que não há que se entender pela retroação da lei, mesmo que esteja fulcrada na alegação de constituir-se como lei de ordem pública. Mesmo porque, tal fato acarretaria em ofensa ao direito adquirido que, segundo Gabba[131], também consiste em “forte interesse de ordem pública” e, ainda, de acordo com o posicionamento de Caio Mário da Silva, citado por Tolomei[132]:
[...] costuma-se dizer que as leis de ordem pública são retroativas. Há uma distorção de princípio nesta afirmativa. Quando a regra da não retroatividade é de mera política legislativa, sem fundamento constitucional, o legislador, que tem o poder de votar leis retroativas, não encontra limites ultralegais à sua ação, e, portanto, tem a liberdade de estatuir o efeito retrooperante para a norma de ordem pública, sob o fundamento de que esta se sobrepõe ao interesse individual. Mas, quando o princípio da não retroatividade é dirigido ao próprio legislador, marcando os confins da atividade legislativa, é atentatória contra a Constituição a lei que venha a ferir direitos adquiridos, ainda que sob a inspiração da ordem pública. (grifos nossos)
4.3 O DIREITO ADQUIRIDO ANTE O REGIME OU ESTATUTO JURÍDICO
Com o escopo de adentrar a questão mais profundamente, importante destacar que, mesmo restando assegurada a existência do direito adquirido ante a ocorrência das situações previstas em lei, segundo grande parte da doutrina, não há que se considerar a sua subsistência em “se tratando de direito público com referência a regime jurídico estatutário, uma vez que, não há direito adquirido a esse regime jurídico”[133].
Para Gabba, não se concebia a existência de direito adquirido quanto aos institutos jurídicos, que deveriam ser imediatamente aplicados, ainda que para ele devessem ser respeitadas todas as relações dele decorrentes[134].
Nesse passo, vale mencionar que para o referido teórico, existe ainda um rol de legislações que poderão ser imediatamente aplicadas, independentemente de qualquer alegação de existência de direito adquirido, especialmente aquelas que estão voltadas ao interesse geral e, portanto, não sujeitas a limites, dentre elas as leis que versem sobre o direito de propriedade de florestas, por exemplo[135].
Restou consagrado, ainda, o ponto de vista de que determinada lei poderia ser suprimida ou modificada, assentando-se o primado de que a aplicabilidade da nova lei pode ocorrer imediatamente à sua edição, como no caso da resgatabilidade das enfiteuses gravadas com cláusula de perpetuidade, cuja legitimidade da redução do prazo para o seu resgate foi consolidada, inclusive, pela Súmula 170 do Supremo Tribunal Federal[136].
Desse modo, ainda que o direito adquirido seja sinônimo de segurança jurídica, não se presta ao atendimento, ou mesmo não tem por escopo a proteção de determinadas posições jurídicas ante a alteração de institutos, ou ainda determinados estatutos ou regimes jurídicos, o que acarretou na consolidação do entendimento de que não há que se invocar direito adquirido ante um regime jurídico.
Pode-se vislumbrar facilmente tal assertiva quando da análise detida dos julgados do Supremo Tribunal Federal, tendo como matéria a aposentadoria dos servidores públicos, momento em que lançando mão de tal entendimento, é estabelecido que “em se tratando de direito público com referência a regime jurídico estatutário, não há direito adquirido a esse regime jurídico”[137], bem como no momento em que a referida Corte decide sobre a natureza institucional do FGTS e se pronuncia acerca da inexistência de direito adquirido a tal regime jurídico[138], valendo transcrever o referido julgado[139]:
[...] “Fundo de garantia por tempo de serviço – FGTS. Natureza jurídica e direito adquirido. Correções monetárias decorrentes dos planos econômicos conhecidos pela denominação Bresser, Verão, Collor I (no que concerne aos meses de abril e de maio de 1990) e Collor II.
- O Fundo de Garantia por Tempo (FGTS), ao contrário do que sucede com as cadernetas de poupança, não tem natureza contratual, mas, sim, estatutária, por decorrer da Lei e por ela ser disciplinado.
- Assim é de aplicar-se a ele a firme jurisprudência desta Corte no sentido de que não direito adquirido a regime jurídico”.
Vale mencionar que, para Barroso[140], ainda que seja expressa a condição de que há uma relação institucional entre o servidor público e a União, que por sua vez, é regida por lei que poderá ser alterada sem que se mantenham as condições iniciais, tal situação somente estará legitimada a ocorrer, por tratar-se de uma relação institucional, algo que, de forma alguma, seria concebido se a nova lei se destinasse ao disciplinamento de relações privadas, conquanto somente poderia ser aplicada às relações que, eventualmente, fossem estruturadas sob a égide do seu império.
No entanto, no que tange aos servidores públicos, é pacífica a orientação do Supremo Tribunal Federal no sentido de que não há que se falar na existência de direito adquirido com vistas à continuidade de uma situação estabelecida com base em lei anterior, considerando que tal possibilidade restou peremptoriamente rechaçada pela Egrégia Corte. Assim, não se permite, portanto, a subsistência de posições pessoais em face de eventuais mudanças, revisões e, inclusive, supressões de institutos jurídicos, ou mesmo alterações estatutárias[141].
4.4 A IMPORTÂNCIA DO DIREITO ADQUIRIDO COMO ASSEGURADOR DOS PRINCÍPIOS DA ORDEM ECONÔMICA DO ARTIGO 170 DA CONSTITUIÇÃO – PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
Ainda que tenha restado claro que não há que se invocar a existência de direito adquirido nas relações entre servidores públicos e a União, ou ainda à regimes ou estatutos jurídicos, é de crucial importância salientar que, em se constando a ocorrência da hipótese de incorporação do bem jurídico ao patrimônio do seu titular, seja reconhecida a incidência do direito adquirido, sob pena de se violar a segurança jurídica, pois ainda que este último princípio tenha uma abstração muito elevada[142], reveste-se como postulado fundante do Estado de Direito, que visa, inclusive, a proteção da propriedade privada, cuja garantia é considerada como “essencial para o funcionamento do capitalismo, tal como preconizado pelo pensamento liberal e acolhido pelo sistema constitucional brasileiro”[143].
Ademais, ainda que seja clara a possibilidade de supressão, revisão ou mudança de instituto jurídico, não se pode olvidar as situações jurídicas consolidadas ao longo do tempo, bem como a boa fé perpetrada pelos contratantes que, pressupondo a “confiança na estabilidade de uma situação legal atual”[144] celebraram negócios jurídicos pautando a sua conduta, única e tão somente na segurança jurídica.
Percebe-se que, no que toca ao ferimento da segurança jurídica, de estreme importância invocar que as situações jurídicas consolidadas deverão sempre ser consideradas, senão vejamos o que a doutrina destaca a respeito[145]:
[...] ainda que não se possa invocar a idéia de direito adquirido para a proteção das chamadas situações estatutárias ou que se não possa reivindicar direito adquirido a um instituto jurídico, não pode o legislador ou o Poder Público em geral, sem ferir o princípio da segurança jurídica, fazer tabula rasa das situações jurídicas consolidadas ao longo do tempo.
Importante ainda perceber que, além de a celebração de negócios jurídicos encontrar a proteção da lei, ainda está alicerçada na prerrogativa insculpida no artigo 5º, XXXVI, que caracteriza o direito adquirido, estando ainda consubstanciado na segurança conferida pelo ato jurídico perfeito, cuja denominação consiste em reputar-se consumado segundo a lei vigente ao tempo em que ocorreu, o que corrobora a todo infatigavelmente aludido, isto é, de que o evento realizado sob a égide de determinada lei, que no caso em comento, seria o Decreto incorporador do imóvel à zona de expansão urbana do município, além de revestir o ato com a perfeição jurídica necessária, ainda gera o direito adquirido[146].
Com o fito de enriquecer o presente estudo, há que se destacar o magistério de Romeu Felipe Bacellar Filho[147], quando explicita que a desconsideração de tais direitos, em uma dada ordem constitucional, poderia deflagrar o caos social:
[...] o ato jurídico perfeito gera o direito adquirido, o direito adquirido, o direito concreto e subjetivo a exercê-lo ou desfrutá-lo, na medida em que a não consideração dos formados sob uma norma prejudicaria o interesses de seus titulares e implantaria o caos e a desordem social. Portanto, quando se fala em direito adquirido é porque decorre, na maior parte das vezes, de um ato jurídico perfeito, que é o que lhe dá embasamento em decorrência de ter sido realizado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.
Sabe-se que, conforme disciplinou Gabba[148], toda lei que trate de propriedade florestal tem incidência imediata. Nesse sentido, claro é que a Lei 7.803/89 passou a incidir imediatamente sobre propriedades rurais, com vistas à disciplinar a obrigação da averbação da dita reserva legal que restava omissa. Com isso, todos aqueles proprietários de imóveis rurais que até então não tinham procedido à averbação teriam que, a partir da promulgação da lei, registrá-la à margem da matrícula de imóveis. Todavia, em momento algum a norma referiu-se à averbação de reserva legal em imóvel urbano, de forma que eventual desnaturação do instituto, ou seja, interpretação diversa daquela que realmente lhe deveria ser dada, comprometeria, inclusive, a segurança jurídica valendo, nesse aspecto, transcrever o escólio de Recaséns Siches citado por Ferrari[149] ao ponderar que:
[...] o principal motivo do direito, que este surgiu para prestar culto à idéia de justiça e fornecer segurança e certeza á vida social, porque a segurança é um valor fundamental do jurídico, sem ela não pode haver direito. O direito a partir do ponto de vista formal, não é um fim, mas um meio para assegurar a realização de certos fins que os homens reputam como de indispensável cumprimento. Portanto, não radica no que é, mas como é.
Portanto, quando se suscita a existência de um direito adquirido do proprietário de imóvel que se tornou urbano embasa-se, precipuamente, na celebração de um negócio jurídico que ocorreu sob a égide de determinada lei que disciplinou a incorporação do imóvel ao território de expansão urbana do município sobre o qual não se opõe à referida exigência, bem como na concessão de licenças pela Administração Pública, posteriormente à constatação da inexistência de qualquer irregularidade referente a instalação do parque fabril que ocuparia todo o imóvel, algo que se deu através da realização de Estudo de Impacto Ambiental e da realização de Relatório de Impacto Ambiental.
Para corroborar a existência do alegado direito adquirido, Sampaio[150] esclarece que não cabe a revogação de atos administrativos por inconvenientes ou, mesmo porque se mostrem contrários ao interesse público. Ademais, na situação em espeque, o ato de a Administração Pública ter concedido as licenças para a instalação e operação não ocorreu contra disposição expressa de lei de modo que, o direito delas oriundo, não permite a revogação dos atos administrativos.
Nesta toada, Arnoldo Wald, citado por Sampaio[151], entende que nem mesmo sob o argumento de que se estará defendendo o meio ambiente, tais licenças poderão ser revogadas com fulcro em normas supervenientes:
[...] para quem a aprovação de loteamento pela autoridade competente equipara-se à licença de construção, por ambos integrarem um “direito novo” no patrimônio do proprietário. Significa dizer que não pode ser revogada, mesmo que a pretexto da defesa do meio ambiente, valendo-se de normas supervenientes.
Veja-se assim, que os atos administrativos de que resultam direitos, não podem ser revogados, o que demonstra que a exigência de averbação de reserva legal em propriedade já incorporada ao perímetro urbano que submeteu-se ao Estudo de Impacto Ambiental e de Relatório de Impacto Ambiental prévio, antes da concessão de licenças para instalação do parque fabril e, operação da atividade, não pode tê-las revogadas, uma vez que não foram expedidas contra disposição de qualquer lei.
Nesse sentido, conforme se percebe quando da análise de julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro[152], exarado no Agravo de Instrumento da Ação Civil Pública de nº. 1992.002.529, foi concedida proteção jurídica àquele que, ostentado pela obtenção de licença, demonstrou possuir um direito subjetivo, senão vejamos:
[...] construção. Obra licenciada. Embargo de Obra. Proteção do Meio Ambiente. Cassação da Liminar. Embargo de obra licenciada, por força da liminar em ação civil pública agitada pelo Ministério Público, no pregão de defesa do meio ambiente. A licença para edificar como ato administrativo publicizado, ostenta-se como gerador de direito subjetivo, e enquanto não desconstituído legalmente, no procedimento em que se assegure ao licenciado o pleno da defesa, desfruta de ampla proteção jurídica. O direito de construir integra a confederação dos direitos irradiados da propriedade, jungido à disciplina das posturas municipais, não sendo de admitir, mesmo por epístrofe, a priori presumida ilegalidade daquele atua sobre o pálio do bill administrativo. A suspensão de inopinado de uma obra de vulto, em pleno desenvolvimento, ante os fatores inflacionários que martirizam a nação e todos estão a suportar com estóico espírito de lealdade aos governantes, os quais se esforçam, mas nada acertam, isso, na liminar de uma ação civil pública à guisa de preservação ambiental urbana, em princípio não contemplada na reserva urbanística municipal, pelo menos explicita e, com certeza individuosa, torna-se medida agressiva e temerosa pelos danos imensos e irreparáveis para a parte atingida. Provimento do agravo para se cassar a liminar, ficando o risco à conta da construtora. Agravo provido. TJRJ, AI nº 1992.002.529, rel. Des. Hermydio Figueira, j. 9.2.93, v.u. (Grifos nossos)
Percebe-se que, mesmo sendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado um dos fins da Ordem Constitucional, o fortalecimento e a expansão da economia acabou por preponderar no julgado supramencionado, justamente porque a medida perpetrada se mostrava extremamente agressiva em virtude dos danos que causaria, algo que sem dúvida, não coadunaria com o desenvolvimento do país, ainda que, ressalte-se, o prevalecimento de um, ou outro direito deva, necessariamente, ser sempre analisado à luz do caso concreto, conforme se perceberá quando da análise do estudo feito acerca da colisão e da ponderação dos direitos fundamentais.