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Recall: o direito de revogação do mandato político e a Constituição Federal Brasileira

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03/09/2016 às 09:20
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3 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O RECALL

 

3.1 Democracia Representativa, Direta e Semidireta

 

Para uma melhor compreensão da compatibilidade desse instituto com a atual Constituição brasileira, é necessário apresentarmos breves conceitos de democracia representativa, direta e semidireta.

A democracia representativa como o próprio nome sugere é aquela na qual o povo, detentor de todo o poder, não participa diretamente da condução do País e da política, sendo representado por cidadãos eleitos.

A Constituição Federal define claramente o conceito de democracia representativa ao estabelecer no Parágrafo Único do artigo 1º que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos.

Norberto Bobbio (2000, p. 44) conceitua a democracia representativa:

 

[...] significa genericamente que as deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem parte, mas por pessoas eleitas para esta finalidade.

 

Para Bonavides (2006) “o poder é do povo, mas o governo é dos representantes, em nome do povo: eis aí toda a verdade e essência da democracia representativa”.

A democracia direta tem origem na Grécia, mais especificamente em Atenas, quando os homens livres se reuniam na praça para a tomada de decisões políticas, exercendo um poder direto e imediato.

Santana (1995, p. 36) ao conceituar a democracia direta ensina que nessa modalidade “o povo exprime a sua vontade exercendo ele próprio as funções do Estado. Quer dizer, tanto a legislação como as principais atribuições executivas e judiciárias são exercidas pelos cidadãos em assembleias populares ou primárias”.

Esse modelo atualmente existe apenas em alguns cantões suíços, entretanto, a doutrina majoritária entende que tal modalidade é uma curiosidade histórica. Rosseau (1998) defendia a democracia direta, criticando a representatividade, vez que a soberania não poderia ser representada assim como não poderia ser vendida, e que a vontade não se representa.

Por sua vez, a democracia semidireta surgiu por conta das falhas da representativa, e busca mesclar a representatividade com instrumentos de democracia direta, possibilitando ao povo intervenções diretas como projetos de lei de iniciativa popular, referendos, plebiscitos, veto popular e o recall.

Bonavides (2006, p. 295) ensina que trata-se de uma modalidade “em que se alteram as formas clássicas da democracia representativa para aproximá-la cada vez mais à democracia direta”.

A Constituição Federal de 1988 adotou como modelo democrático no Brasil a democracia semidireta, ao prever instrumentos de participação direta do povo (plebiscito, referendo e iniciativa popular) em seu art. 14 e também a representatividade do poder através dos eleitos. (BRASIL, 1988).

 

3.2 A Compatibilidade Com a Constituição

 

Como já destacado, a Constituição brasileira adota um modelo de democracia mista, mesclando a representatividade com instrumentos da participação direta do povo nas decisões.

Nesse sentido, é claro novamente o Parágrafo único do art. 1 ao estabelecer que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição.

No momento em que o texto constitucional dispõe que o poder que é do povo será exercido por meio de representantes eleitos estamos diante da democracia representativa, e quando estabelece que o poder do povo também poderá ser exercido diretamente é inequívoco que se trata da democracia direta.

Os instrumentos da democracia direta previstos na Constituição brasileira estão elencados no art. 14, que estabelece que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante iniciativa popular, referendo e plebiscito”. (BRASIL, 1988).

A lei que regulamenta tais instrumentos de participação direta da população é a Lei Federal nº 9.709/1998.

O instituto do recall como já destacado é um dos instrumentos da democracia direta, assim como é a iniciativa popular, o referendo, o plebiscito e o veto popular.

Ávila (2009, p. 123) analisando a viabilidade do recall no Brasil afirma que:

 

[...] é necessário, em primeiro lugar, acrescentá-lo no rol do art. 14 da Constituição Federal, com a denominação que lhe é própria da língua inglesa, sem criação de nomes ou adaptações linguísticas, para que fique bem claro que se trata do instituto sobre o qual se busca inspiração no direito norte-americano. O Recall é, da mesma forma que o termo impeachment, universal, e deve significar “revogação do mandato político por decisão dos eleitores.

 

Em relação à compatibilidade do instituto revogatório com a Constituição federal, importante destacar trecho do voto do relator da Matéria no Senado, ao analisar as propostas de emendas:

 

A Proposta de Emenda à Constituição nº 80, de 2003, não apresenta óbices de ordem constitucional, nem formal, nem material. Pensamos, contudo, que se ressente de uma regulamentação mais objetiva do direito de revogação de mandato, individual e coletivo, este objeto de divergências quanto à sua aplicabilidade, inclusive por não fazer reserva legal. A Proposta de Emenda à Constituição nº 82, de 2003, por seu turno, não identifica a revogação de mandatos como hipótese de democracia direta, atacando diretamente os arts. 28, 29, 32, 55 e 82 da Carta da República, no que esses dispositivos regulam pleitos executivos, apenas. Os mandatos legislativos ficam fora do alcance do poder de revogação. A Proposta de Emenda à Constituição nº 73, de 2005, finalmente, enfoca alterações ao art. 14 e acresce um novo dispositivo ao texto constitucional, art. 14-A, que regula o direito de revogação como cláusula geral, incluindo os mandatos legislativos e atribuindo competência aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para adaptarem as prescrições constitucionais federais aos seus respectivos documentos políticos. Parece-nos que o modelo sugerido por esta última proposição é a base mais adequada para a organização desse novo instituto.

 

O Relator da matéria, ex Senador Pedro Simon (PMDB/RS), ao analisar as propostas concluiu que não havia nenhum óbice de ordem constitucional, o que significa dizer que as propostas estavam em harmonia com a Constituição Federal, não havendo elementos que impedisse que esse instituto fosse incluído no ordenamento nacional.

Enfim, sendo a democracia semidireta consagrada no ordenamento constitucional brasileiro, o direito de revogação do mandato pelos eleitores se mostra compatível com a Constituição Federal brasileira.

 

3.3 As Propostas que Tramitaram no Congresso Nacional

 

Como já destacado, após a Constituinte foram propostos quatro (4) projetos de emenda à Constituição buscando incluir no texto constitucional a revogação do mandato pelos eleitores.

Vale destacar a Proposta de Emenda à Constituição - PEC 73/2005 de Autoria do ex Senador Eduardo Suplicy, mas que nasceu na campanha nacional da OAB em defesa da República e da Democracia.

Essa proposta adicionaria o art. 14 – A na Constituição e estabelecia que o Presidente, Senadores e Deputados poderiam ter o seu mandato revogado por referendo popular, em petição por iniciativa popular dirigida ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e com alguns requisitos como a assinatura de dois por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por sete Estados, com não menos de cinco décimos por cento em cada um deles, ou mediante a assinatura de dois por cento do eleitorado estadual, distribuído pelo menos por sete Municípios, com não menos de cinco décimos por cento em cada um deles.

Entretanto, também previa que no caso do Presidente da República, o referendo popular também poderia ser convocado por requerimento da maioria absoluta do Congresso Nacional dirigido ao TSE.

Além disso, estabelecia que mandato de senador poderá ser revogado pelo eleitorado do Estado por ele representado e o eleitorado nacional poderá decidir a dissolução da Câmara dos Deputados, convocando-se nova eleição, que será realizada no prazo máximo de três meses.

Essa proposta se difere do recall norte-americano, e mescla um pouco do modelo estadunidense e o modelo adotado na suíça no abberunfungrecht1, que são diferentes.

Destacam-se também outras propostas de emenda, a PEC 80/2003 do ex Senador Antonio Valadares (PSB/SE) que também buscou alterar o art. 14 da Constituição, inserindo mais dois instrumentos de democracia direta como o direito de revogação individual e coletivo, e o veto popular.

Já a PEC 82/2003 do ex Senador Jefferson Peres (PDT/AM) se diferenciava das demais, pois, não buscava alterar o art. 14 da CF, mas, os capítulos específicos dos Estados, Municípios e União.

Buscava incluir no art. 28 (estados), art. 29 (municípios), art. 32 (Distrito Federal), art. 55 (senadores) e 82 (Presidente) a previsão de realização de plebiscito para confirmação do mandato, no caso de subscrição, por 10% (dez por cento) dos eleitores, de petição de revogação de mandato.

Também houve uma PEC de n. 477/2010 de autoria do então Deputado Rodrigo Rollemberg (PPS/DF) que buscava incluir o art. 14-A na Constituição estabelecendo os instrumentos de Petição Revogatória, Petição Destituinte e Plebiscito Destituinte.

Entretanto, todas as propostas encontram-se arquivada no Senado e na Câmara dos Deputados.

 


4 CONCLUSÃO

 

O Recall é um instrumento da democracia direta no qual os eleitores possuem o direito de revogar o mandato político por diversas razões, mas em especial diante de casos de corrupção.

Em um sistema democrático de direito as formas legais de se retirar um governante do poder se dá através do impeachment e do recall, entretanto, o primeiro exige que tenha sido cometido um crime de responsabilidade, enquanto o segundo não exige a existência de um crime previamente, mas, apenas que o representante esteja realizando um governo prejudicial ao povo ou que casos de corrupção tenha acabado com a confiança e credibilidade do governante.

O Brasil passa atualmente por uma grave crise política e representativa, na qual o cidadão não se sente representado pelos seus representantes. Em que pese os deputados, senadores, vereadores, governadores e Presidente terem sido eleitos democraticamente a sensação é de que representam apenas o seu próprio interesse.

Ademais, a crise econômica pela qual passa o país, somada aos casos de corrupção investigados que envolvem, em tese, bilhões de dinheiro público desviado de uma empresa que é orgulho do brasileiro, levou o povo às ruas pedindo a saída da Presidente Dilma Rousseff (PT), seja pelo impeachment ou pela renúncia.

A reforma política que está sendo aos poucos votada no Congresso está focada em questões como o financiamento público ou privado das campanhas, sistemas eleitoras como o distrital misto ou o proporcional, e outros assuntos que buscam reestabelecer o elo entre representante e representado.

Entretanto, o recall que não faz parte das propostas da reforma política, se mostra um remédio mais eficaz contra a crise política e de representatividade, pois conferirá ao cidadão um maior controle dos seus representantes, que no caso de má gestão ou corrupção poderão ter o seu mandato revogado.

Além disso, o instituto revogatório é compatível com a Constituição, vez que a democracia brasileira é mista, reunindo instrumentos da representatividade com elementos da democracia direta, sendo considerada por boa parte da doutrina como uma democracia semidireta.

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As propostas de emenda à Constituição ao longo da história, após a constituinte de 1988, não chegaram ao Plenário das casas legislativas do Congresso, tendo sido arquivadas em razão do término do mandato dos autores, o que certamente impossibilitou um debate amplo com a sociedade.

Ainda que pelo sistema eleitoral vigente no Brasil seja difícil se adotar o recall nos moldes do que há nos Estados Unidos da América, caberia a adoção de um mecanismo de revogação do mandato político pelos eleitores misto, ou seja, mesclando a revogação individual do instituto norte-americano com a revogação coletiva do instituto suíço.

Isso porque, a revogação individual do mandato no caso do poder legislativo, em especial no caso de vereadores e deputados, se tornaria difícil uma vez que os deputados e vereadores são eleitos com votos das diversas regiões dos estados e municípios. Somente com um sistema distrital, ou distrital misto, se poderia cogitar a hipótese de revogação do mandato individual dos representantes no legislativo.

Nesse caso, o instituto suíço, que não fora objeto deste artigo, seria mais adequado, pois, prevê o direito de revogação coletiva da assembleia. Entretanto, o instituto do recall norte-americano se mostra viável para os cargos do Executivo e de Senadores, que são eleitos pelo sistema majoritário.

Enfim, com a crise de representatividade e política pela qual passa o Brasil, com o distanciamento de eleitos e eleitores, com escândalos de corrupção sendo amplamente divulgados no mundo, com a crise econômica e a falta de credibilidade de muitos governos, o direito de revogação do mandato político pelos eleitores seria uma alternativa para a reforma política, trazendo o cidadão para o centro da democracia e obrigando os representantes eleitos à atuarem com responsabilidade.

 


REFERÊNCIAS

 

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BOBBIO, Norberto. Democracia representativa e democracia direta. In: O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira, São Paulo: Paz e Terra, 2000.

 

 

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Nota

1 Abberunfungrecht: tradicional instituto Suíço que prevê a revogação de todos os mandatos políticos da assembleia.

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Sobre o autor
Alexandre Melatti

Advogado do escritório Melatti & Carbonera - Advocacia, Coordenador da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/Londrina-PR, especialista em Direito do Estado, com ênfase em Direito Constitucional, pela UEL, Professor autor convidado nas disciplinas de Direito Administrativo II e Direito Político da Kroton Educacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELATTI, Alexandre. Recall: o direito de revogação do mandato político e a Constituição Federal Brasileira. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4812, 3 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48548. Acesso em: 26 abr. 2024.

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