Hannah Arendt e o golpe de estado em curso no Brasil

03/05/2016 às 08:30
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A barbárie que vivemos no Brasil tem culpados: a imprensa, que hostiliza a Constituição Federal em vigor, e o STF, que não a cumpre nem a faz cumprir.

A disputa entre duas representações de um mesmo fenômeno é algo interessante. Mas não é exatamente isto o que está ocorrendo no Brasil. O que ocorre é um golpe de estado cuja representação é rejeitada pela imprensa brasileira.

O divórcio entre a democracia (atribuição do poder público mediante o voto) e o governo (a eleição indireta do vice mediante a deposição inconstitucional da mandatária eleita) se duplica na imprensa, que insiste em chamar o golpe de Impedimento, como se o processo em curso se ajustasse perfeitamente à CF/88, que está sendo rasgada pela Câmara, pelo Senado e pelo STF.

Nenhuma novidade. Em nosso país todos os golpes de estado ou não são golpes ou foram chamados de revolução. O Brasil (representação ideológica de uma nação que nasceu através da imposição violenta de um Estado trazido pelos colonos e cultivado por seus descendentes) é incapaz de encontrar o Brasil (terra de muitos povos e diversos falares, cujas ambições nunca foram atendidas, representadas ou reconhecidas pelo governo e pelo Estado). 

No momento em que o povo brasileiro foi finalmente introduzido no Estado através de um líder popular, a crise se instalou no íntimo daqueles que rejeitam os “outros” em benefício da representação ideológica que receberam dos seus ancestrais. E a imprensa cumpriu sua obrigação de aplaudir o “povo” que saiu às ruas exigindo o golpe e de criticar as “hordas petistas” que insistem em atrapalhar o trânsito para conservar a suposta ditadura do PT.

No imaginário dos golpistas e dos jornalistas a democracia deixou de existir no exato momento em que eles perderam a eleição, pois os votos dos “outros” deveriam ter um valor menor. O princípio da igualdade deve ceder espaço ao princípio da hierarquia. E é exatamente isto o que está ocorrendo no Congresso Nacional.  

A triste recorrência do passado me fez voltar a ler Hannad Arendt:

“Quando todo mundo é arrebatado sem pensar por aquilo que todos os demais fazem e acreditam, aqueles que pensam são puxados para fora de seus esconderijos porque sua recusa a se juntar ao grupo é visível e, com isso, se torna uma espécie de ação. O elemento purificador do pensar, a maiêutica socrática, que traz a luz as implicações das opiniões não examinadas e com isso as destrói - valores, doutrinas, teorias e até convicções -, é político por implicação. Pois essa destruição tem um efeito libertador sobre uma outra faculdade humana, a faculdade do julgamento, que podemos chamar, com alguma justificação, a mais política das capacidades espirituais do homem. É a faculdade de julgar os particulares sem subsumi-los naquelas regras gerais que podem ser ensinadas e apreendidas até se tornarem hábitos que podem ser substituídos por outros hábitos e regras.” (Responsabilidade e Julgamento, Hannah Arendt, p. 256 da minha edição brasileira, Companhia das Letras)

Os homens encarregados de julgar o golpe de estado não foram puxados para fora de seus esconderijos nos Tribunais. Eles se esconderam atrás de um ambicionado aumento salarial para poder lavar as mãos sem exercer as capacidades espirituais que deveriam ter e que, de fato, provavelmente não tinham. No centro do golpe está a irresponsabilidade do órgão julgador e a ausência da capacidade de julgar dos juízes brasileiros.

O Estado dentro do Estado (refiro-me aqui ao Judiciário, único poder republicano que nunca foi profundamente reformado de fora para dentro) é incapaz de rejeitar o golpe. Então ele limita-se a julgar o Impedimento e até promove a ajudar a aceleração do mesmo, mediante decisões que sabotam o governo, impedindo-o de nomear Ministros, por exemplo. Quando julga o Impedimento, o STF legitima os atos praticados pelo homem que o próprio Tribunal já deveria ter afastado do cargo em cumprimento do princípio da moralidade.

A falta de julgamento leva necessariamente à ação irresponsável dos agentes estatais. Foi o que ocorreu durante a ditadura, quando a tortura (ilegal para os padrões da CF/67 emendada em 1969) era uma prática corriqueira e solenemente ignorada pelos juízes brasileiros. As exceções ilegais e os hábitos cruéis transformados em regras administrativas necessariamente retornarão durante o novo governo que já nasce impopular e com a mácula da arbitrariedade.

De fato, tudo indica que nós, os brasileiros, somos incapazes de elevar a maiêutica socrática à condição de ferramenta jornalística e prática judiciária. Seremos, pois, vítimas da barbárie que criamos, porque, de fato, já vivíamos numa espécie de barbárie disfarçada.

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Sobre o autor
Fábio de Oliveira Ribeiro

advogado em Osasco (SP)

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