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Publicidade do cigarro:

afinal, a lei vale para o governo?

01/08/2000 às 00:00
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Saúde: um dever ou um direito? No Brasil a coisa é ainda confusa, mas a resposta descobrimo-la numa sonolenta tarde de janeiro, à beira do Reno, em direção a Frankfurt. Um de nossos colegas de viagem perguntou ao guia quão rigorosa era a determinação em proibir o fumo dentro do ônibus.

Gentil, mas firmemente, o guia informou que na Europa proíbe-se o fumo dentro dos veículos coletivos e, na maioria dos países, até mesmo nos táxis. Aproveitando a oportunidade, disse-nos o jovem que na Alemanha, por exemplo, a saúde é um dever e um direito. E explicou que a mulher alemã vive uma rigorosa rotina de exames de saúde - incluindo-se entre eles o preventivo do câncer - ao longo do ano. Trata-se de um sistemático controle sanitário que lhe permite gozar da medicina estatal, uma das melhores do mundo. Até aí, o Estado está concedendo à mulher o direito de cuidar de sua saúde, e lhe dá meios para tanto.

Se faltar a um só exame e adoecer, a paciente poderá fazer o tratamento, mas todo o custo ficará por conta dela própria ou do seguro privado. Ou seja, o direito de ser tratado pelo Estado é vinculado ao cumprimento da rotina preventiva de exames. Não há jeitinho, atestados forjados ou conversa fiada. Faltando aos exames periódicos, está sujeita a paciente à medicina mais cara do globo.

Citamos esse caso para rememorar lances da briga en­tre a prefeitura de São Paulo e fumantes, ao longo do ano de 1995. Uma liminar que alguns restaurantes conseguiram contra a proibição antifumaça do prefeito de São Paulo foi cassada pelo Tribunal e os fiscais saíram atrás das multas e da observância da lei.

Sem entrar no mérito, pinçamos argumentos pró e contra o fumo em ambientes fechados, comparando a situação paulista com o exemplo europeu. Defendem os não-fumantes que não são obrigados ao consumo indireto do tabaco, por ingestão involuntária da fumaça expelida pelos usuários do cigarro. Contra-argumentam estes últimos que a saúde é sua e que têm o direito de fumar, mesmo que signifique um tipo de morte anunciada.

Fosse aqui aplicado o sistema germânico, o fumante poderia exercer o seu direito de contrair uma insidiosa doença pulmonar, mas não poderia responsabilizar o Estado nem utilizar o sistema de saúde pública.

Isso faria verdadeiros - e não hipócritas - os anúncios "O Ministério da Saúde adverte: fumar é prejudicial à saúde", "Evite fumar diante das crianças", "Fumar pode causar úlceras e enfisema pulmonar", "Fumar causa câncer". Ou, pelo menos, daria menos prejuízo ao Estado.

Seguindo o costume americano, o anúncio é produzido pelo fabricante, por força de lei. Mas existe uma diferença fundamental: lá o fabricante é quem avisa que o fumo causa alguns tipos de câncer. Veja bem, leitor: não o Ministério, mas o próprio fabricante. Que importância tem essa distinção?

Muita. Os fabricantes americanos enfrentam as maiores ações indenizatórias de que se tem notícia no planeta, movidas pelos familiares de vítimas do cigarro. Aqui no Brasil, o Estado é quem paga, solidariamente, o prejuízo das vítimas. E, para sua sorte, poucos são os fumantes ou seus herdeiros que entram com ações na Justiça.

Pior: o sistema público tem o dever de cuidar do doente.

Porque o mesmo Governo que adverte contra o fumo libera o mercado para produzi-lo.

Razões para a liberação não faltam. Afinal, com mais de 78% do valor de um maço de cigarros cobrados em impostos, a indústria do fumo é um portento, e o Governo não quer matar a galinha-dos-ovos-de-ouro. Ao seu lado, os cúmplices de sempre: a indústria da publicidade, administrando contas bilionárias, e os distribuidores - miríades de bares, quiosques e, ultimamente, contrabandistas (1) e ambulantes. Todos faturando em cima do perigoso e rentável produto.

Que contra-senso! Mesmo o prefeito de São Paulo, líder da grande cruzada antitabagista, não largaria seu naco do filé tributário. Os velhos bordões do desemprego, da recessão no setor, da diminuição dos impostos não resistem à seguinte análise: o álcool, o maior assassino das estradas e fator de desagregação familiar, o jogo, em todas as suas modalidades, a cocaína, a maconha, as drogas injetáveis e aspiráveis em geral geram uma incalculável movimentação financeira no País. Estamos certos de que a campanha de descriminalização das drogas conseguirá a adesão de nossos governantes ávidos por tributar essa renda subterrânea.

Simples: basta ao Ministério da Saúde avisar que a cocaína faz mal à saúde, liberá-la, como acontece com o cigarro e o álcool, e sair em busca da fortuna tributária. Em paralelo, como a conscientização se efetiva pelo bolso, pode-se legislar no sentido de que, se o prejuízo à saúde for causado voluntariamente, o sistema sanitário público ficará isento de despesas e ações indenizatórias eventuais.

Em Amsterdã, que tanta curiosidade desperta na imaginação dos viciados de todo o mundo, realmente se isolou o vício em algumas praças e bairros. Ali se pode fazer o que quiser com a saúde e com a moral, já que até mesmo museus de sexo estão abertos ao público, não importa a idade, sob a supervisão e o acompanhamento do Estado. Todavia, o volume de gastos com segurança e saúde dos viciados é muito menor do que no Brasil, onde aparentemente reina a paz e o crime é livre pelas ruas.

Outro exemplo europeu aplicável à nossa realidade vimos na França. Ao Arco do Triunfo, em Paris, convergem cerca de 11 grandes avenidas, que instalam em torno do monumento um trânsito infernal, sem sinais, onde todos parecem disputar um rally da morte. Perguntando ao guia local como aqueles veículos não se entrechocavam ou criavam o caos em volta do Arco, ficamos sabendo que as autoridades de trânsito resolveram o problema de uma forma muito simples.

Ao chegar àquele ponto, cada motorista pode entrar como quiser, na velocidade que lhe convier. Porém, se houver choques de veículos, não adianta procurar a Justiça, que sempre decidirá pela norma comum: cada um paga o seu prejuízo! Diante dessa possibilidade, os motoristas parisienses diminuíram o ritmo, pensando na sua própria conta bancária. E o Judiciário pôde se dedicar a coisas mais importantes do que arbitrar imprudência e loucura.

Com soluções simples encerram-se grandes problemas. Não sabemos se o prefeito de São Paulo conseguirá sucesso em sua campanha, mas a arrecadação de multas será razoável e os infratores irão, paulatinamente, perdendo o interesse pela aventura do ilícito.

Afinal, o fumo é ou não nocivo?

É nocivo e o Governo é cúmplice no crime de vender o vício à população.

Em primeiro lugar, quando a Constituição trata da proteção à saúde, considera o tabaco um dos produtos sujeitos a controle, não só na indústria como na mídia. (2)

A legislação trabalhista, datada de 1943, já contemplava o tabaco como um malefício, restringindo o trabalho na indústria que o produz, incluída a partir da Lei 6.514/77 entre as "atividades insalubres e perigosas". (3)

Criado o Conselho de Comunicação Social, para dar apoio ao Congresso Nacional na legislação e fiscalização da programação de mídia, o tabaco passa a ser visto como uma preocupação do mesmo nível dos agrotóxicos e das bebidas alcoólicas, sabidamente causadores de doenças gravíssimas. (4)

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), no artigo relativo às publicações infantis, alinha o tabaco entre causadores de malefícios como bebidas alcoólicas, armas e munições. (5)

Se o tabaco é tão perigoso que chega a impor pesados custos publicitários, de prevenção e previdenciários, e as doenças profissionais por ele causadas são custeadas pelo sistema de aposentadoria pago por toda a sociedade; se o tabaco é tão maléfico que indenizações milionárias são cobradas e recebidas do Governo e da indústria pelos herdeiros de pessoas atingidas pelo seu uso; se, finalmente, o tabaco é tão nocivo, até pelo uso dessa palavra nos anúncios, (6) e considerado um vício, (7) capaz de causar dependência ao usuá­rio, os industriais e distribuidores de tabaco deveriam estar enquadrados na lei antitóxicos, que pune severamente quem de qualquer forma dê curso a substâncias "...que determinem dependência física ou psíquica".(8)

Os plantadores de fumo, bem como as legiões de pessoas envolvidas na produção de fumo, sem o saber, não são inocentes, nos termos da legislação. (9)

Os distribuidores de cigarros e o Governo - que permite, facilita, fecha os olhos, se faz de bobo e, mais ainda, confessa nos anúncios que ajuda a distribuir substância perigosa, danosa - podem sofrer acusação de cumplicidade, dentro da mesma lei. (10)

Agora, a parte mais surpreendente dessa contradição: o Código do Consumidor, uma lei em vigor após 1991, põe na mira Governo, produtores e vendedores de tabaco, pois proíbe a colocação no mercado de produtos nocivos à saúde. (11) Diz que, lançado um produto considerado prejudicial, o mesmo deve ser retirado do mercado, (12) com avisos à população. Esses avisos devem partir dos industriais e não do Governo. (13)

Ora, o Governo, desde 1943, julga as emanações do tabaco prejudiciais à saúde, já constatou isso, continua permitindo o lançamento de novas marcas e, ainda mais grave, confessando seu crime.

É preciso que a sociedade - fumantes e não fumantes - apreenda essa contradição. E não permita que o Governo adote uma postura hipócrita em relação ao fumo, ora tentando reprimi-lo, ora admitindo que, pelos altos impostos, se crie em torno de sua indústria uma infra-estrutura criminosa, que vai do plantio, industrialização, distribuição, guarda até o contrabando.

Afinal, por que têm os contribuintes de pagar a conta dessa hipocrisia?


NOTAS

1) Em Ponta Porã, cidade brasileira fronteiriça com o Paraguai, milhões de dólares em cigarros cruzam a rua rumo ao país vizinho e voltam como contrabando. O vício exportado, taxado de forma tão benevolente, faz o produto retomar ao Brasil ainda em condições de ser vendido com grandes margens de lucro.

2) CF art. 220, que proíbe a censura, em seu inciso II, diz que compete à lei federal "estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221 (trata dos princípios que devem nortear a programação da mídia), bem como do propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente".

Mesmo mantendo o respeito à liberdade de comunicação, impõe, no parágrafo 4º, que "a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso .

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3) CLT, art, 190: "O Ministério do Trabalho aprovará o quadro das atividades e operações insalubres e adotará normas sobre os critérios de caracterização da insalubridade, os limites de tolerância aos agentes agressivos, meios de proteção e o tempo máximo de exposição do empregado a esses agentes.

Parágrafo único. As normas referidas neste artigo incluirão medidas de proteção do organismo do trabalhador nas operações que produzem aerodispersóides tóxicos, irritantes, alergênicos ou incômodos".

4) A Lei 8.389/91, que instituiu o conselho de comunicação Social, previu que esse órgão "terá como atribuição a realização de estudos, pareceres, recomendações e outras solicitações que lhe forem encaminhadas pelo Congresso Nacional sobre (...)

b) propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias nos meios de comunicação social;"

5) ECri, art. 79: As revistas e publicações destinadas ao público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas, crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família.

6) Nocivo (do latim nocivus) adj., prejudicial, perigoso, danoso (cf. Antônio Geraldo da Cunha, Dic. Etimológico Nova Fronteira, 2ª ed., p. 550)"; Tb. "Nocivo (do latim nocivu) adj., que prejudica; que causa dano; danoso, nocente, nóxio (cf. Aurélio B. de Holanda Ferreira, Novo Dicionário Aurélio, 2ª ed., Nova Fronteira, p. 1.196)".

7) "Vício (do latim vitium), s.m., defeito grave que torna uma pessoa ou coisa inadequada para certos fins ou funções (cf. Antônio Geraldo da Cunha, Dic. Etimológico Nova Fronteira, 2ª ed., p. 821)"; Tb. "Vício (do latim vitiu), s.m., defeito grave que torna uma pessoa ou coisa inadequada para certos fins ou funções (cf. Aurélio B. de Holanda Ferreira, Novo Dicionário Aurélio, 2ª ed., Nova Fronteira, p. 1.774)".

8) O art. 12 da L. 6.368/76, "que dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências , diz que é crime: "Importar ou exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda ou oferecer, fornecer ainda que gratuitamente, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a consumo substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar . A pena é de reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e pagamento de 50 (cinqüenta) a 360 (trezentos e sessenta dias-multa) .

9) A cumplicidade está prevista no parágrafo primeiro da Lei 6.368/76:

"Nas mesmas penas incorre quem. indevidamente:

I - importa ou exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda ou oferece, fornece, ainda que gratuitamente, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda matéria-prima destinada à preparação de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica;

II - semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas destinadas à preparação de entorpecente ou de substância que determine dependência física ou psíquica".

§ 2º - Nos mesmas penas incorre, ainda, quem:

I - induz, instiga ou auxilia alguém a usar entorpecente ou substância que determine dependência física ou psíquica;

II - utiliza local de que tem a propriedade, posse. administração, guarda ou vigilância. ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, para uso indevido ou tráfico ilícito de entorpecente ou de substância que de­termine dependência tísica ou psíquica;

III - contribui de qualquer forma para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica".

10) Ccon, art. 10

11) CCon, art. 10, § 1º

12) CCon, art. 10, § 2º

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Sobre o autor
João de Campos Corrêa

advogado no Mato Grosso do Sul, membro do Colegio de Abogados del Mercosur (COADEM), ex-presidente da Comissão Especial para el Mercosur

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORRÊA, João Campos. Publicidade do cigarro:: afinal, a lei vale para o governo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/490. Acesso em: 23 abr. 2024.

Mais informações

Texto extraído do livro "Reclame, o direito é seu. Um manual do consumidor indignado", do autor, Ed. Letra Livre, 1997, p. 185.

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