RESUMO: Historicamente, o Direito Penal Militar nunca teve a relevância que merece no cenário jurídico brasileiro. É um erro grave, pois hoje existem milhares de cidadãos sujeitos ao processo nesse campo do Direito. Em 1996, quando surgiu a primeira alteração significativa, com a lei 9.299, esta veio impregnada de preconceitos, possivelmente, pelo período de revolta que a população sentia quanto aos policiais militares, advindos de casos isolados de abusos praticados por milicianos no decorrer do país. Já em 2004, surgiu a Emenda Constitucional n. 45, que tratava da reforma do Poder Judiciário. Aconteceram mudanças mais racionais, porém, interpretadas com intenções distintas do que realmente quis a lei. Com a referida emenda, foi ampliada a competência da Justiça Militar estadual, além de legitimar o Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes militares dolosos contra a vida de civis. Também foi inaugurado o juízo singular militar para julgamento de crimes em que civis fossem sujeitos passivos de crime militar perpetrado por policiais ou bombeiros dos Estados-membros. A crítica que faremos quanto ao fato Tribunal de o Júri julgar os crimes militares dolosos contra a vida de civis, é por que o referido tribunal institui-se na Justiça comum, quando deveria funcionar no âmbito da própria Justiça Castrense Estadual. Evidencia-se que, para um tratamento justo e isonômico aos militares estaduais, seria necessário fazer uma releitura da EC 45/2004, à luz de Direitos e Garantias Constitucionais em relação ao processo. Como solução, sugerimos a participação de militares, membros da segurança pública, na formação de um corpo de jurados que não sofresse pressões externas ao proferir o seu voto.
Palavras-chave: Constituição Federal; Direitos e Garantias individuais; Direito Penal Militar; Justiça Militar; Policial Militar; Tribunal do Júri.
1 INTRODUÇÃO
O intuito do presente artigo é o de analisar a possibilidade de instituição do tribunal do júri no âmbito da Justiça Militar estadual, a partir de releitura do disposto no art.125 § 4º da Constituição Federal, trazido pela Emenda Constitucional 45/2004. Feita esta primeira análise, caminharemos no sentido de levantar elementos que subsidiem uma possível modificação da composição originária do Conselho de Sentença do Tribunal do Júri quando o réu for um militar estadual que tenha praticado crime militar doloso contra a vida de civil.
De início apresentaremos aspectos da Teoria Garantista, proposta por Ferrajoli, além de definições do que seriam violações dos princípios: do Juízo Natural e da Igualdade.
Descreveremos breves históricos do Direito Penal Militar, no Brasil e no mundo, além da estrutura e competência para julgamento na atualidade.
Demonstraremos os aspectos constitucionais do Tribunal do Júri no Brasil, para, posteriormente, discorrermos sobre as alterações da Emenda Constitucional 45/2004 e o que ela significou no âmbito da Justiça Militar Estadual.
Apresenta-se como problema de difícil solução o modo como vêm sendo julgados os militares estaduais, em especial, policiais militares, quando estes praticam crimes militares dolosos contra a vida de civis durante o desempenho do policiamento ostensivo geral na preservação da ordem pública, ou ainda, quando atuam em razão de suas funções mesmo em horário de folga. Os servidores militares são totalmente diferenciados em relação às demais profissões, suas atribuições envolvem, até mesmo, o sacrifício da própria vida.
A categoria dos servidores militares, nas várias formas de prestação de segurança pública, podem se tornar vitimas de um mesmo conflito por duas maneiras: seja por tentativas de homicídio perpetradas por criminosos de alta periculosidade, seja por serem submetidos a um processo criminal, que, em muitas ocasiões, torna-se injusto e preconceituoso pelos caminhos que pode tomar. É por esta questão, que se justifica o presente estudo.
Desenvolveremos este trabalho através do método de pesquisa qualitativo, que é, segundo Minayo[1] um método que responde questões particulares, em um nível de realidade que não pode ser quantificado em se tratando de ciências sociais.
A pesquisa, de inicio, será feita de forma exploratória para que possamos levantar informações sobre a temática em estudo definindo os problemas advindos da atual forma como os militares estaduais vem sendo julgados quando praticam crimes militares dolosos contra a vida de civis. Para tanto, analisaremos os ensinamentos de alguns autores com trabalhos publicados sobre o assunto e estudaremos casos práticos da aplicação do mencionado assunto.
Como fonte de pesquisa, utilizaremos as críticas, opiniões e debates de diversos autores nas searas Constitucional, Penal e Penal militar para chegarmos ao nosso objetivo, qual seja: apresentar uma alternativa de julgamento isonômico aos militares estaduais sujeitos ao tribunal do júri.
2 REVISÃO DE LITERATURA
2.1 Aspectos da Teoria Garantista de Luigi Ferrajoli
Tradicionalmente, como é o próprio Estado quem tem a atribuição de instituir o direito, ao criá-lo, deve sofrer uma limitação ao seu poderio em relação ao povo, através de uma doutrina criminológica de aplicação processual penal que Luigi Ferrajoli chamou de Garantismo Penal.
Em sua clássica obra, intitulada, Direito e Razão, Ferrajoli estabeleceu alguns conceitos e métodos para explicar seu Garantismo. Para o autor, o modelo Garantista se molda em torno do principio da legalidade, sendo este o núcleo do estado de direito que procura minimizar o grau de violência do poder punitivo estatal e reaver a ideia de liberdade do indivíduo. Isto ocorre, pois o Garantismo preocupa-se com a delimitação do poder punitivo do Estado renovando as perspectivas do Direito Penal Mínimo. Evidencia-se a punibilidade, a partir da crítica dos critérios quantitativos e qualitativos que asseguram o poder punitivo do Estado. Ferrajoli entende o Direito Criminal como subsidiário, e a imposição das penas só se justificam se os fatos atingem de maneira significativa um bem jurídico protegido por lei válida.[2]
Outro ponto importante na teoria de Ferrajoli permeia pelo novo elemento acrescentado ao conceito de validade. A norma será válida não apenas pelo seu enquadramento formal ao ordenamento jurídico anterior e hierarquicamente superior. Neste sentido, a validade da norma também se fundamentará em elementos materiais que seriam os direitos fundamentais.[3]
Costa[4] explica que Ferrajoli ensina algumas técnicas que deverão ser utilizadas no processo de minimalização do poder punitivo Estatal. Para tanto, o aplicador do direito deve valer-se da consagração de dez axiomas, que serão princípios norteadores do direito penal e que trarão em suas normas, garantias relativas à pena, ao delito e ao processo, como veremos abaixo:
Garantias em relação a pena
- Nulla poena sine crimine - é o emprego do princípio da retributividade em que o Estado somente pode punir caso haja a prática de infração penal;
- Nullum crimen sine lege – é o princípio da legalidade dividido em quatro preceitos: princípio da anterioridade penal; a lei penal deve ser escrita, vedando o costume incriminador; a lei penal deve ser estrita, vedando a analogia incriminadora e; a lei penal deve ser certa e de fácil entendimento, decorrente do princípio da taxatividade, da certeza ou determinação;
- Nulla lex penales sine necessitate – é o princípio da necessidade, ou como modernamente é denominado, princípio da intervenção mínima, ou seja, não há lei sem necessidade. O direito penal é ultima ratio no combate a comportamentos indesejados.
Ganratias em relação ao delito
- Nulla necessitas sine injuria - é o princípio da lesividade ou ofensividade e se não existe uma relevante e concreta lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, não há que se falar em punição.
- Nulla injuria sine actione – é o principio da exterioridade da ação, que não permite a criação de tipos penais que venham a punir o modo de pensar ou estilo de vida. Somente é punível a ação ou omissão, pois o direito penal é do fato e não do autor.
Nulla actio sine – é o princípio da culpabilidade em que deve se apurar o grau da culpa para depois se fazer a dosimetria da pena.
Garantias em relação ao processo
- Nulla culpa sine judicio – é o princípio da jurisdicionariedade em que não há reconhecimento de culpa sem órgão jurisdicional para reconhecê-la.
- Nullum judicium sine acusationes – é o principio acusatório em que o poder judiciário não reconhece direito de oficio, devendo ser provocado. Tal poder respeita o principio da inércia processual.
- Nulla acusation sine probatione – é o principio do ônus da prova em que não há acusação sem a existência de prova ou suficiente indício de autoria.
- Nulla probation sine defensione – é o principio da ampla defesa e do contraditório.
Costa[5], ainda nos lembra, que o Garantismo Penal não é uma doutrina distante de ser aplicada atualmente, pois, movimentos penais e criminológicos modernos, como a Escola do Direito Penal Mínimo já ostentam a teoria ora analisada. Em nosso ordenamento jurídico temos algumas inovações da aplicação do ideal de Ferrajoli, como é o caso da Lei n.º 11.006/2006 que revogou o crime de adultério. É um claro exemplo de limitação do poder punitivo Estatal através do principio da intervenção mínima. O adultério deixa a seara penal para ser analisado pelo direito civil.
Há que se reconhecer a importância do Garantismo de Ferrajoli, principalmente em relação à validade das normas proposta pela Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Para a Teoria Pura, a validade da norma estaria em outra norma que lhe é anterior ao tempo e superior hierarquicamente[6]. Tal norma anterior seria responsável por traçar as diretrizes formais para que a nova norma fosse válida, mesmo que esta, em alguns pontos, contrariasse direitos fundamentais. Ou seja, desde que a norma fosse concebida respeitando critérios formais pré-estabelecidos, esta poderia até mesmo ensejar em abusos de poder por parte do Estado que, ainda assim, seria válida.
Na Teoria Garantista de Ferrajoli, além da norma respeitar critérios formais de elaboração, esta também deveria respeitar direitos fundamentais e princípios norteadores do direito penal para evitar abusos produzidos pelo poder punitivo penal do Estado. Assim, se uma norma ingressasse no ordenamento jurídico vigente de maneira formal e válida, poderia tornar-se inválida caso contrariasse um sistema de garantias mínimas existentes.
À luz dos aspectos Garantistas em relação ao processo, evidenciaremos o princípio da jurisdicionaridade, e decorrente deste, surge uma indagação: o fato da instituição do Tribunal do Júri realizar-se em um juízo diferente do pré-determinado para apuração de crimes em razão da matéria (neste aspecto, a militar), ou em razão da pessoa, não violaria o princípio do juízo natural surgindo um verdadeiro tribunal de exceção?
A Emenda Constitucional 45/2004, em relação à Justiça Militar estadual, surgiu de forma válida respeitando critérios formais de elaboração, contudo, ela contraria direitos e garantias fundamentais em relação ao processo. Ou seja, tal emenda é válida para a Teoria Pura do Direito, mas não, para a Teoria Garantista.
Neste aspecto, entendemos que a Teoria Garantista é a que mais se adéqua ao Estado Democrático de Direito insculpido por nossa Constituição Cidadã de 1988. Tão logo, instituir o Tribunal do Júri em um juízo incompetente é o mesmo que transformar a Justiça comum em tribunal de exceção quanto à matéria militar, que possui juízo competente e pré-determinado.
2.2 Do princípio do juízo natural e da proibição de criação de tribunais de exceção
O princípio do juiz natural não consta expressamente em nossa Constituição, porém, é nítido que o art.5º, inciso XXXVII, trata-se dele, ao definir que “não haverá juízo ou tribunal de exceção.”. Também, não podemos esquecer que o art. 5º inciso LIII da CF, é diretamente ligado ao princípio ora comentado, dizendo: “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”.
Para o professor Renato Brasileiro de Lima[7], compreende-se como princípio do juiz natural “...o direito que cada cidadão tem de saber, previamente, a autoridade que irá processa-lo e julga-lo, caso venha a praticar uma conduta definida como infração penal no ordenamento jurídico.”. Isso serve para que as partes sejam julgadas por um juiz imparcial e independente. Já, tribunal de exceção, seria “...aquele juízo instituído após a prática do delito com objetivo específico de julgá-lo.”. É um princípio fundamental do processo penal que impede que qualquer pessoa seja julgada por tribunal sem competência previamente definida na Constituição Federal.
Falando de tribunais de exceção, no Brasil, tivemos como exemplo o Tribunal de Segurança de 1935 e do art. 84, do Decreto-lei 898, de 1969, que possibilitava a nomeação de julgadores para o exame de casos concretos relacionados a crimes contra a segurança nacional punidos com prisão perpétua e pena de morte[8].
No plano internacional, há inúmeros exemplos de tribunais de exceção, como, por exemplo, aqueles instituídos para julgamento de crimes de guerra, praticados na antiga Iugoslávia, Ruanda, Camboja, etc. Por isso, foi tão importante a criação do Tribunal Penal Internacional de Roma, para julgamento de crimes contra a humanidade, genocídio, de guerra, dentre outros. Com esse tribunal previamente criado não é mais possível arguir violação ao princípio do juízo natural como forma de eximir-se de responsabilidades penais.
Talvez, o mais famoso tribunal de exceção já visto, tenha sido o tribunal de Nuremberg. Após o fim da Segunda Grande Guerra, militares do exército nazista foram julgados por tal tribunal, ressalta-se, instituído pós-fato, como explica Marcos Rafael Zocoler[9]
Desde sua criação, o Tribunal foi tachado como um tribunal de exceção, uma corte formada pelos vencedores da guerra para condenar os derrotados. Das críticas contra ele lançadas, as mais contundentes certamente são a de que o direito de defesa dos réus teria sido limitado – característica de tribunais de exceção -, de que o Tribunal carecia de legitimidade e que o julgamento violou o princípio da legalidade, aplicando legislação ex post facto.
Renato Brasileiro de Lima, ainda destaca, que o art. 5º, inc. XXXVIII da CF/88, estabelece que o Tribunal do Júri será o juiz natural para processar e julgar os crimes dolosos contra a vida.
Observe-se que o art. 5º, inc. XXXVIII da Constituição não faz referencia à qual justiça é responsável para instituir o referido Tribunal Popular, ou seja, este poderia ocorrer não só nas Justiças, comum e federal, como ocorre atualmente, mas também, na Justiça Castrense. No decorrer deste artigo, discorreremos mais sobre tal ideia.
Como afirma kildare Gonçalves Carvalho[10], as Justiças especializadas não podem ser consideradas Tribunas de exceção, pois estas, são constituídas e organizadas pela própria Carta Magna, bem como, pelas leis de organização do Poder Judiciário.
Por esse entendimento, a Justiça Castrense não pode ser considerada um tribunal de exceção.
Também é interessante ressaltar a análise feita por Carlos Augusto da Silva, pois, atualmente, o juiz natural não se limita à vedação de tribunais de exceção, seu campo de aplicação é mais amplo. Há um aspecto substancial a ser observado, ou seja, o caráter formal do juízo natural – a determinação da norma que dita a competência. “O juiz natural tem um conteúdo material, que baliza as regras de estabelecimento do juiz competente. O juiz competente é estatuído, em linhas mestras, pela Constituição.”[11]
Ferrajolli ensina que, o juízo natural consubstancia-se na garantia que significa três coisas distintas, relacionadas entre si: primeiro que a necessidade que o juiz seja pré-constituído pela lei e não constituído pós-fato; segundo, a inderrogabilidade e a indisponibilidade das competências; e terceiro, a proibição de juízes extraordinários e especiais.
Nelson Nery Junior, mencionado por Carlos Augusto da Silva[12], apresenta quatro condições para que o juiz natural seja devidamente observado:
1) exigência de determinabilidade, ou seja, "prévia individualização dos juízes por meio de leis gerais"; 2) garantia de justiça material, consubstanciada na "independência e imparcialidade dos juízes"; 3) fixação de competência, por meio de "estabelecimentos de critérios objetivos para a determinação da competência dos juízes"; 4) observância da divisão funcional interna (Geschäfstverteilungsplan)
Silva ainda cita o ministério de Ada Pellegrini Grinover, entendendo como garantias do juiz natural as seguintes[13]
1)proibição de juízos extraordinários, constituídosex post facto; 2) proibição de subtração do juiz constitucionalmente competente; 3) proibição de julgamento por órgão constituído após a ocorrência do fato; 4) observância da ordem taxativa de competências dos juízes pré-constituídos, não ficando à mercê de quem quer que seja. (grifo nosso)
Analisando os conceitos dos autores denotados acima, podemos inferir que ao se retirar a competência de processo e julgamento de um crime militar doloso contra a vida de seu juízo Constitucional (previamente instituído, com juiz competente fixado previamente com observância da divisão interna) e transferir-lhe à justiça comum, seria o mesmo que subtrair-lhe a competência.
O problema não é o fato de se levar os crimes militares dolosos contra a vida de civil à Júri Popular, mas sim, o fato de se promover o Tribunal do Povo no âmbito da Justiça comum, que é incompetente para o julgamento e processo de crimes militares. O referido tribunal deve ser instituído no âmbito da Justiça Militar estadual.
Silva[14], parafraseando os entendimentos de Ferrajoli, Ada Pellegrine Grinover e Nelson Nery Junior, faz importante análise, conforme demonstrado abaixo:
A análise das condições postas em relevo por Nelson Nery Júnior demonstra a explicitação do conteúdo material do juiz natural ao exigir independência e imparcialidade do órgão julgador, bem como imposição de critérios objetivos na distribuição de competência e prévia constituição do juízo. Ada Pellegrini Grinover não colore com tintas fortes o aspecto material do juiz natural ao sintetizar as suas garantias, pondo em evidência apenas a preconstituição do juízo. Quanto à proibição de juízos extraordinários, não nos parece correto, como faz Ada Grinover - diferentemente de Luigi Ferrajoli - circunscrevê-la aos juízos ex post facto . Os juízos extraordinários devem ser execrados, mesmo que constituídos anteriormente ao fato. (Grifo nosso).
Afastar a competência de julgamento de um juízo legalmente constituído e movê-la para juízo incompetente e tendencioso não seria o mesmo que estabelecer um tribunal de exceção maquiado?
O Tribunal do Júri instituído na Justiça comum, que é incompetente para julgamento de crimes militares, consistiria subjetivamente em um tribunal de exceção para os militares estaduais ali julgados.
O princípio do juízo natural e vedação de tribunais de exceção foi elevado a cláusula pétrea pela Constituição de 1988, portanto, não poderia ocorrer nem mesmo Emenda Constitucional que abolisse a competência da Justiça Militar estadual para julgamento de crime militar.
A proposta de solução seria a instituição do Tribunal do Júri no âmbito da Justiça Militar estadual, com o corpo de jurados específico e variável. Também não seria correto o julgamento dos crimes militares dolosos contra a vida de civil feito pelo próprio escabinato, como ocorre nos demais crimes militares. É princípio do Tribunal do Júri que o julgamento seja feito por iguais, e, como o escabinato, atualmente, é formado somente por oficiais, não contando com a presença das praças, este poderia tornar-se parcial em alguns julgamentos. O Conselho de Sentença Específico variável permitiria a participação de toda a comunidade policial militar no júri.
2.3 Do Princípio da Igualdade
O principio da igualdade é um dos princípios mais importantes estampados no texto constitucional. Como afirma Rodrigo Padilha[15], o constituinte demonstrou preocupação particular com este princípio ao propagá-lo por todo o corpo constitucional, sendo encontrado, por exemplo, no preâmbulo, no art.3º inc.IV, no art.5º caput e inc.I, e no art. 7º inc.XXX.
Kildare Gonçalves de Carvalho, citando um trecho da monografia produzida por Celso Antônio Bandeira de Mello, destaca algo importante sobre o princípio em questão:
Para que um discrímen legal seja conveniente com a isonomia, impede que concorram quatro elementos:
a- Que a desequiparação não atinja, de modo atual e absoluto, um só indivíduo;
b- Que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferenciados;
c- Que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;
d- Que, in concreto, o vinculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulta em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público.[16]
Sobre o referido trecho, posteriormente o abordaremos juntamente com os comentários de Cícero Robson Coimbra Neves, quando falarmos da Emenda Constitucional de nº 45/2004.
Padilha ressalta que a igualdade deve ser dividida em duas espécies. A igualdade formal que “é a prevista friamente no texto normativo, sem analisar as particularidades do ser humano...”. Tal espécie não se preocupa com as peculiaridades individuais da pessoa. E a igualdade material, que seria o clássico conceito de igualdade idealizado por Aristóteles, em que “pessoas diferentes devem receber diferentes tratamentos”. Ou seja, tratar os desiguais na medida de suas desigualdades.[17]
A Constituição Federal não impede que seja estabelecida uma igualdade (desigualdade) a determinadas pessoas, contudo, a aplicação deve ser coroada de maneira proporcional a necessidade do individuo, nunca, de forma autoritária ou preservando interesses ilegítimos.
Álvaro Ricardo Sousa Cruz[18], em seu livro Direito à Diferença, estuda a igualdade constitucional como discriminações, que podem ser lícitas ou ilícitas dependendo do fato. Para o autor, estabelecer algumas diferenças (lícitas) é essencial para que a garantia da isonomia atenda as exigências do principio da dignidade humana e da produção discursiva do direito.
Sob esse prisma é que o Direito Militar subsiste - o militar é visivelmente desigual ao cidadão comum devido as suas atribuições, deveres e competências, deve ter seu direito à diferença (desigualdade lícita), assegurado.
2.4 Direito penal militar: Breves históricos
2.4.1 No mundo
Não é possível afirmar com precisão quando surgiu o direito militar voltado às atividades bélicas. Contudo, em linhas gerais é possível perceber, que este, caminha junto ao aparecimento dos primeiros exércitos. Daí, houve a necessidade de um órgão julgador especializado na apreciação dos crimes cometidos em tempo de guerra.[19]
Neves e Streifinger, apreciando o ministério de Univaldo Corrêa, relatam que o estabelecimento da justiça militar remonta às datas em que o homem iniciou suas conquistas, bem como, a defesa de seus povos, motivo pelo qual necessitou contar, a qualquer momento, com soldados disciplinados, sob um rígido regime, com sanções graves e de rápida aplicação. [20]
Acreditamos que o homem tem a guerra dentro de si, desde o início da evolução da própria raça humana. O ato de guerrilhar é o fundamento de sobrevivência de qualquer espécie dentro da natureza. As espécies que melhor souberam aplicar suas táticas de guerra encontram-se no topo da cadeia alimentar.
Neves e Streifinger[21] continuam seu raciocínio relatando que a criação do primeiro exército, ocorreu por volta do ano 4.000 a.c, sendo, porém, os atos bélicos romanos definitivos para o início do direito castrense.
As civilizações da antiguidade (Índia, Persa, Atenas, Macedônia e Cartago) reconheciam a existência de certos delitos militares. Quanto ao julgamento, este era feito pelos seus próprios pares.[22]
Do parágrafo acima, é possível deduzir, que ali, não só poderia estar surgindo o próprio Direito Penal Militar, como também as características do escabinato, ou até mesmo, do próprio Júri Popular, que é o julgamento feito por iguais.
Para Louredo Neto[23] somente em Roma é que o Direito Penal Militar adquiriu autonomia, pelo que, resume a evolução histórica deste ramo do direito em quatro fases:
1ª época dos reis, em que os soberanos concentravam em suas mãos todos os poderes;
2ª fase em que o direito militar era exercido pelos cônsules, com poderes de imperium majus, havendo abaixo deles o tribuno militar, que possuía o chamado imperium militae, simbolizando a dupla reunião da justiça e do comando;
3ª época de Augusto, em que a Justiça Militar era exercida pelos prefeitos do pretório, com jurisdição muito ampla;
4ª época de Constantino, em que foi instituído o Cosilium, com a função de assistir o juiz militar, sendo sua opinião meramente consultiva;
A título de informação, em batalha, o estigma da infâmia poderia incidir em punição de bastonadas até a morte.[24]
Neves e Streifinger explicam que para os gregos, atenienses e espartanos, a preparação para a guerra fazia parte da formação do cidadão, tido como soldado da pátria. Guerrear era algo nobre, digno da interferência dos deuses. Os filósofos contemporâneos de Sócrates, demonstravam grande preocupação com a formação bélica, negligenciada pelos Sofistas.[25]
Os autores mencionados acima, conforme Fustel de Coulagens, informam que existiram casos, que generais atenienses, mesmo vitoriosos, foram executados, por não tratarem com o devido respeito seus mortos em combate, abandonando-os no campo de batalha, impedindo que fossem enterrados em solo pátrio.[26]
Da informação apresentada no parágrafo acima, somos levados a crer, que ali poderia estar o início dos primeiros registros de homenagens a militares mortos em serviço.
Louredo Neto apresenta a Revolução Francesa como o inicio da Justiça Militar na modernidade, ao estabelecer as relações entre o poder militar e o poder civil.[27]
2.4.2 No Brasil
O Direito Militar Brasileiro tem origem na legislação penal portuguesa, que sofreu influência direta do domínio romano e visigótico. Desta influência, formaram-se as Ordenações do Reino, destacando-se, as Filipinas decretadas em 1603. Estas, mantiveram-se em vigor no Brasil até 1916, com o Livro IV. Das ordenações Filipinas, não raramente, haviam condenações à pena de morte pelo crime de lesa-majestade.[28]
Pierangeli explica, que de início, não era possível observar nítida separação entre o Direito Penal Militar e o Direito Penal comum, a não ser, pelo título XCVII que tratava “dos que fogem às armadas”.[29]
Como afirma Univaldo Correa, somente em 1763, surgem os artigos de guerra do conde de Lippe, que permaneceram vigentes no Brasil até o final do século XIX, com o surgimento do Código Penal da Armada.[30]
Na iminência da guerra contra a Espanha, Wilhelm Lippe, o Conde de Schaumbourg, (oficial Alemão, alistado na Marinha Inglesa, especialista em artilharia), foi convidado pelo rei D. Jose I para reestruturar seu exército[31]. Foi aí que surgiu, no século XVIII, os artigos de guerra do Conde de Lippe. Havia previsão de delitos como a insubordinação, semelhante ao crime de Recusa de Obediência previsto no Código Penal Militar atual.
O Código Penal da Armada, permaneceu em vigor até 1944, quando surgiu o Código Penal Militar aplicado às forças armadas. Posteriormente, em 1969, entrou em vigor o Código Penal Militar, vigente até os dias de hoje, ressalta-se, com poucas alterações.[32]
Neves e Streifinger[33] lembram que o Código Penal Militar atual surgiu em um período conturbado da historia do Brasil. Foi durante o ato institucional nº 16, que tornava vago os cargos de presidente e vice-presidente da republica até a posse do novo presidente, o General Garrastazu Médici.
Por outro lado, o Código Penal Castrense apresentou inovações que só foram vistas no Código Penal comum em 1984. Dentre as inovações, destacam-se a teoria diferenciadora do estado de necessidade e o sistema vincariante às medidas de segurança, substituindo o sistema duplo binário.[34]
Outro fato importante observado por Neves e Streifinger[35], é que havia uma tendência a restringir o Código Penal Castrense somente aos militares das forças armadas. O STF, na súmula 297 de 1963 estabelecia que oficiais e praças das milícias estaduais, no exercício de suas funções policiais civis, não eram considerados militares para efeitos penais, sendo competente a Justiça comum para julgar os crimes cometidos por eles ou contra eles. O disposto permaneceu até 1977, com a chegada do “Pacote de Abril”, que eram alterações normativas trazidas pelo então presidente Ernesto Geisel. Na ocasião, foi totalmente rechaçada a súmula ora comentada.
A Constituição de 1988, em seu art. 125 §4º, manteve a competência da Justiça Militar Estadual para processar e julgar o crime castrense perpetrado por milicianos estatais. Ressalva foi feita quanto aos crimes dolosos cometidos contra a vida de civis. Com a Emenda Constitucional 45/2004, tais crimes são de competência do Tribunal do Júri.
2.5 Estrutura e competência da Justiça Militar
2.5.1 Justiça Militar da União
A competência do Poder Judiciário no Brasil é prevista, exclusivamente, pela Carta Política de 1988. Nela, existe a previsão de seus órgãos jurisdicionais, e dentre eles, os tribunais e juízes militares, conforme art.92 inciso VI.
Gilmar Luciano Santos[36] assevera que leis infraconstitucionais pertinentes a processo e procedimento não podem modificar a competência destes órgãos, pois, somente a Constituição poderia ditar a estrutura de um poder no Brasil.
Este professor ainda nos lembra, que anteriormente a edição da Emenda Constitucional n. 45/2004, as estruturas das Justiças Militares da União e Estadual eram semelhante na primeira instância. A diferença existia apenas na fase recursal. A segunda instância para os estados-membros era o Tribunal de Justiça ou tribunal de justiça militar. Já para a União, era o Superior Tribunal Militar (STM).[37]
Atualmente, prevalece que a justiça militar da União possui competência para julgar o crime militar, não importando quem seja seu sujeito ativo. É a competência em razão da matéria, insculpida no art. 124 da Constituição de 1988, que diz: “À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”. Neste sentido, não só os militares das forças armadas serão julgados por esta justiça, mas, até mesmo civis.
Prosseguindo, a primeira instância da Justiça Militar da União é formada pelos Conselhos de justiça especial e Permanente”[38], conforme demonstrado abaixo:
O Conselho de Justiça é composto por um Juiz Togado, chamado Auditor, um Oficial Superior e mais três oficiais de posto superior ao do acusado, ou, se do mesmo posto, mais antigos, por obediência ao princípio do juízo hierárquico da Justiça Militar. Cada oficial sorteado para compor o conselho recebe o nome jurídico de Juiz Militar, gozando de todos os direitos e obrigações inerentes à função jurisdicional exercida, exceto em relação aos vencimentos e à remuneração do magistrado civil.
O Conselho Especial é o órgão de primeira instância com competência para processar e julgar os oficiais das Forças Armadas e demais pessoas que com estes tenham agido em concurso para cometimento do crime militar. O Oficial sorteado para compor o Conselho Especial prestará a jurisdição como Juiz Militar até o final do processo, com a prolação da sentença.
O Conselho Permanente é o órgão de primeira instância com competência para julgar as praças das Forças Armadas e demais pessoas, exceto os oficiais, que com elas cometam o crime militar em concurso. Chama-se “Permanente”, pois os oficiais sorteados para compô-lo ficam à disposição da Justiça por um período de três meses e deliberam em todos os processos que a ele forem submetidos. (grifos do autor)
A estrutura mista de julgamento explicada acima, composta por Juízes Militares e Juiz Togado, chama-se Escabinato ou Escabinado.[39]
Gilmar Luciano Santos[40] lembra que compete à Justiça Militar da União o processo e julgamento dos crimes militares tanto em tempo de paz quanto em tempo de guerra.
O Superior Tribunal Militar é, ao mesmo tempo, instância originária para julgamento de matéria específica, além de instância recursal em face das decisões das auditorias militares.[41]
Finalizando este tópico, os artigos 122 e 123 da CF/88 demonstram a estrutura da Justiça Militar Federal
Art. 122 - São órgãos da Justiça Militar:
I - o Superior Tribunal Militar;
II - os Tribunais e Juízes Militares instituídos por lei.
Art. 123 - O Superior Tribunal Militar compor-se-á de quinze Ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a indicação pelo Senado Federal, sendo três dentre oficiais-generais da Marinha, quatro dentre oficiais-generais do Exército, três dentre oficiais-generais da Aeronáutica, todos da ativa e do posto mais elevado da carreira, e cinco dentre civis.
Parágrafo único. Os Ministros civis serão escolhidos pelo Presidente da República dentre brasileiros maiores de trinta e cinco anos, sendo:
I - três dentre advogados de notório saber jurídico e conduta ilibada, com mais de dez anos de efetiva atividade profissional;
II - dois, por escolha paritária, dentre juízes auditores e membros do Ministério Público da Justiça Militar.
Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.
2.5.2 Justiça Militar Estadual
Depreende-se do art. 125 §4º de nossa Carta Magna, a competência da Justiça Militar estadual, conforme abaixo:
Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.
A competência da Justiça Militar estadual é mais restrita do que a da União. Esta julga apenas o militar estadual (policial ou bombeiro). Aqui, o critério é em razão da matéria e em razão da pessoa.
Sob este aspecto, não é possível um civil, nem mesmo um militar das forças armadas ser julgado no âmbito da Justiça estadual Castrense.
Uma divergência entre as duas justiças está atrelada a possibilidade do exercício da jurisdição civil pela Justiça Militar estadual, por previsão expressa do art. 125 § 5º da CF/88. O mesmo não ocorre na Justiça Militar Federal.
A Justiça Militar estadual é um órgão do Poder Judiciário e exerce jurisdição no âmbito de todo o Estado-membro a que pertence. A 1ª instância é formada pelas auditorias e pelos conselhos de justiça que são dirigidos pelo Juiz de Direito do Juízo Militar, auxiliado por uma secretaria de Juízo Militar. Conjuntamente, em cada auditoria, atuam, um promotor de justiça, membro do Ministério Público estadual, além de um Defensor Público, também pertencente ao Estado.[42]
A segunda instância da Justiça Militar estadual será exercida pelo Tribunal de Justiça dos Estados, ou pelo Tribunal de Justiça Militar Estadual. Nos estados-membros cujo o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes, o art.125 §3º da Constituição, tornou facultativa a criação do referido tribunal especializado. Atualmente, os tribunais militares estaduais foram concebidos apenas nos estados de São Paulo, Rio grande do Sul e Minas Gerias, apesar de que, outros estados já poderiam tê-lo criado por contarem com efetivo militar suficiente.
O Juiz de Direito do Juízo Militar é um magistrado de carreira aprovado em concurso público para o cargo de Juiz de Direito substituto do juízo militar e integra a carreira da magistratura da Justiça Militar. O referido juiz atua como cooperador nas Auditorias e substitui o Juiz de Direito do Juízo Militar titular, quando este tem sua atuação impossibilitada por algum impedimento.[43]
A instrução e o julgamento dos processos são exercidos pelos Conselhos de Justiça, que tem composição diferenciada para processar oficiais ou praças. Os Conselhos especiais de justiça são formados por um Juiz de direito do Juízo militar (presidente) e “...quatro Juízes Militares, sendo um oficial superior, de posto mais elevado que o dos demais juízes, ou de maior antiguidade, no caso de igualdade de posto e de três oficiais com posto mais elevado que o acusado, ou de maior antiguidade, no caso de igualdade de posto.”[44]
Já os Conselhos permanentes de justiça são compostos por um Juiz de Direito do Juízo Militar (presidente), por um oficial superior e por três oficiais, até o posto de capitão, das respectivas corporações. “Se houver concurso de agentes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros Militar no mesmo processo, o Conselho de Justiça terá composição mista, sendo sorteados dois oficiais de cada organização militar para integrá-lo. Renova-se sua composição, trimestralmente, com o sorteio de novos oficiais para integrá-los.”[45]
2.6 Tribunal do júri: breve histórico
Não se sabe ao certo quando surgiu o Tribunal do Júri, sua origem pode ser visualizada tanto na Grécia como em Roma. Existe até mesmo fundamento divino para a legitimação deste tribunal, pois, sob esta ótica estaria o julgamento de Jesus Cristo, apesar do desprovimento de garantias mínimas daquele suposto tribunal.[46]
Afinal de contas, segundo a Bíblia sagrada, não foi o próprio povo que condenou o filho de Deus à crucificação tornando livre Barrabás?
Concretamente, conforme a doutrina majoritária, o Tribunal Popular surgiu de fato com a Magna Carta da Inglaterra em 1215, tendo como antecedente mais recente, a Revolução Francesa de 1789.[47]
Já no Brasil, o referido tribunal, foi instituído por lei, em 18 de julho de 1822, com a competência restrita para julgar crimes de imprensa. Em 1824, com a Constituição Imperial, o tribunal do júri teve sua competência ampliada para julgar crimes contra a vida, passando a ter sede Constitucional.[48] Araújo informa que somente a Constituição de 1937 não previu o tribunal do Povo por tratar-se de um período ditatorial.[49] No ano de 1946, a Constituição daquela época trouxe de volta o Tribunal Popular. A Constituição Cidadã de 1988 confirmou o Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida como um direito e garantia fundamental.
2.6.1 Da constitucionalidade do Tribunal do Júri
O tribunal do júri é um órgão especial, colegiado e heterogêneo do poder judiciário de primeira instância e tem a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida[50]. Para fins de julgamento, tal tribunal é composto pelo juiz presidente e pelo Conselho de Sentença, integrado por sete jurados leigos, ou seja, pessoas do povo, escolhidas através de sorteio conforme descrito em lei. O juiz presidente é órgão do poder judiciário, denominado juiz togado e integrante da carreira da magistratura. A este, cabe dirigir e conduzir todo o procedimento até a lavratura da sentença final, produzida após decisão do corpo de jurados, por intermédio das respostas aos quesitos previamente formulados, tratando de questões de fato e de direito.[51]
O tribunal está expressamente previsto na Constituição Federal, no art. 5º inc. XXXVIII, como um direito e garantia individual e coletiva dos cidadãos. O júri foi inserido no art. 5º da CF sob o fundamento de funcionar como um tribunal leigo como uma garantia de defesa do cidadão contra arbitrariedades dos representantes do poder, permitindo à pessoa um julgamento pelos seus pares. O júri tem cunho democrático e é instrumento de participação direta do povo na administração da justiça.[52] Pertinentemente, destaca Renato Brasileiro de Lima[53], “afinal, se o cidadão participa do Poder Legislativo e do Poder Executivo, escolhendo seus representantes, a Constituição também haveria de assegurar mecanismo de participação popular junto ao Poder Judiciário.”
Neste aspecto levantamos um questionamento: se à praça militar é vedado compor o Tribunal do Júri na Justiça comum e também no escabinato dos conselhos de justiça, é mais que justo dar á esta o direito de participar pelo menos do possível Tribunal do Júri instituído no âmbito da Justiça Militar Estadual. Do contrário, tal classe estaria impedida de participar junto ao poder judiciário, conforme demonstrado acima por Renato Brasileiro de Lima.
Conforme o art. 5º, inc. XXXVIII da CF, “é reconhecida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.”. Explicaremos tais pontos a seguir.
2.6.2 Plenitude defesa
Alguns autores consideram ampla defesa e plenitude defesa como idênticas. Porém, consideramos mais adequada a definição de Renato Brasileiro de Lima[54], que entende como ampla defesa aquela assegurada a qualquer acusado, enquanto a plenitude de defesa é específica dos submetidos ao Júri. À plenitude de defesa, existem dois aspectos distintos:
a) plenitude da defesa técnica: o advogado de defesa não precisa se restringir a uma atuação exclusivamente técnica, ou seja, é perfeitamente possível que o defensor também utilize argumentação extrajurídica, valendo-se de razões de ordem social, emocional, de política criminal, etc. Incumbe ao juiz-presidente fiscalizar a plenitude dessa defesa técnica, já que, por força do art. 497, V, do CPP, é possível que o acusado seja considerado indefeso, com a consequente dissolução do Conselho de Sentença e a designação de nova data para o julgamento;
b) plenitude da autodefesa: ao acusado é assegurado o direito de apresentar sua tese pessoal por ocasião do interrogatório, a qual também não precisa ser exclusivamente técnica, oportunidade em que poderá relatar aos jurados a versão que entender ser a mais conveniente a seus interesses. Daí o motivo pelo qual o juiz-presidente é obrigado a incluir na quesitação a tese pessoal apresentada pelo acusado, mesmo que haja divergência entre sua versão e aquela apresentada pelo defensor, sob pena de nulidade absoluta por violação à garantia constitucional da plenitude de defesa.
2.6.3 Sigilo das votações
Deve-se manter o sigilo tanto do voto, quanto do local onde se vota. Conforme ensina Nestor Távora, isso é necessário para evitar a intimidação dos jurados, “...as votações ocorrem em uma sala especial, com a presença de pessoas indispensáveis a esse ato processual: o juiz, os jurados, o membro do ministério publico. O advogado e os auxiliares de justiça...”[55].
Eugênio Pacceli de Oliveira[56], ensina que o sigilo das votações também importa o dever de silencio ou incomunicabilidade entre os jurados. Isso evita que algum deles possa influenciar no voto do outro, desta forma estaria preservada a pluralidade das decisões.
Outro importante ensinamento a se lembrar é que “...os jurados são cidadãos leigos, pessoas comuns do povo, magistrados temporários, que não gozam das mesmas garantias constitucionais da magistratura...”. Diante disso, poderiam se sentir intimidados com a presença do réu e de populares se acaso a votação fosse aberta à todos, isso poderia atrapalhar a necessária e imprescindível imparcialidade do conselho de sentença. [57]
2.6.4 soberania dos veredictos
Sobre a soberania dos veredictos, conclui-se que um tribunal formado por juízes togados não pode modificar o mérito da decisão proferida pelo conselho de sentença[58], ou seja, nem o Tribunal de Justiça e nem o Juiz Togado podem modificar o julgamento do fato, o que pode ocorrer é o Tribunal Recursal decidir por um novo julgamento diante de nulidades do primeiro, ou rever o quantum da fixação da pena determinada pelo juiz de primeira instância.
2.6.5 Competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida
Conforme leitura do art. 5 inc. XXXVIII da Constituição Federal, o Tribunal do Júri tem competência reduzida ao processo e julgamento dos crimes dolosos contra a vida, quais sejam: o homicídio; o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio; o infanticídio e o aborto.
A competência do Tribunal do Popular é causa pétrea e não pode ser afastada nem sequer por Emenda Constitucional, porém, isto não significa que sua competência não possa ser ampliada. Aliás, também compete ao tribunal o julgamento dos crimes conexos ou continentes aos dolosos contra a vida, exceto, crimes militares ou eleitorais.[59]
Ressaltamos que por força da Emenda Constitucional n.45/2004, apesar do crime doloso contra a vida de civil, praticado por militar estadual, continuar tipificado como crime militar, este, teve sua competência de processo e julgamento redirecionada ao Tribunal do Júri instituído na Justiça comum. Assim como alguns autores, entendemos que o redirecionamento é inconstitucional.
2.7 Comentários sobre as irregularidades trazidas pela lei 9.299/96
Leis criadas em momentos críticos e de forte clamor popular muitas vezes são questionáveis em seu conteúdo. Isto aconteceu, por exemplo, com a criação da Lei de crimes hediondos e também com a lei 9.299/96, em análise neste trabalho. Por força de organismos nacionais e internacionais de direitos humanos, excluiu-se, em especial, o homicídio doloso da competência da Justiça Militar no intuito de resolver um suposto corporativismo no julgamento de crimes praticados do confronto entre Policiais Militares e criminosos. A questão foi supostamente resolvida com a Emenda Constitucional 45/2004 que alterou o § 4º do art. 125 da CF/88. Para a maioria da doutrina a lei 9.299/96 apresentou inconstitucionalidade patente, pois apenas suprimiu a competência da Justiça Militar. O raciocínio da flagrante inconstitucionalidade, segundo Alexandre de Morais, citado na obra de Neves e Streifinger é simples, pois basta apenas uma reflexão sobre o principio da Supremacia da Constituição e da ideia de Constituição rígida para entendermos que:
[...] a existência de escalonamento normativo é pressuposto necessário para a supremacia constitucional, pois, ocupando a Constituição a hierarquia do sistema normativo, é nela que o legislador encontrará a forma de elaboração legislativa e seu conteúdo. Alem disso, nas constituições rígidas se verifica a superioridade da norma magna em relação àquelas produzidas pelo Poder Legislativo, no exercício da função legiferante ordinária [...].[60]
Neves e Streifinger[61] concluem que nenhuma norma infraconstitucional pode afrontar a Lei Maior, do contrario será inconstitucional. Foi o que aconteceu com a lei 9.299/96, ou seja, uma lei ordinária alterou a competência de julgamento dos crimes militares dolosos contra a vida de civis, retirando o julgamento do âmbito das justiças militares, relativizando o principio do juiz natural que prevê que não haverá juízo ou tribunal de exceção e que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.
É importante mencionar dois julgados importantes sobre o assunto, apresentados antes da do advento da EC 45/2004.
Crimes dolosos contra a vida. Inquérito. Julgada medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Associação dos Delegados de Policia do Brasil – Adepol – contra a lei 9299/96, que, ao dar nova redação ao art. 82 do Código de Processo Penal Militar, determina que ‘nos crimes dolosos contra a vida, praticados contra civil, a justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à Justiça Comum’. Afastando a tese da autora de que a apuração dos referidos crimes deveria ser feita em inquérito policial civil e não em inquérito policial militar, o Tribunal, por maioria, indeferiu a liminar por ausência de relevância na arguição de ofensa ao inc. IV do §1º e ao §4º do art. 144 da CF, que atribuem as policias federal e civil o exercício das funções de policia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares. Considerou-se que o dispositivo impugnado não impede a instauração paralela de inquérito pela policia civil. Vencidos os Ministros Celso de Mello, relator, Mauricio Correia, Ilmar Galvão e Sepílveda Pertence. (ADIn 1.494/DF, rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, DJU, 20 abr. 1997).[62]
Nesse julgado, o STF reconheceu como constitucional a lei 9.299/96 mas desconheceu competência da policia civil para a instauração do inquérito. Discutiu-se se seria de competência da policia civil o inquérito policial sobre a morte de civil praticada por militar e restou solucionado que apesar de ser possível investigação paralela, o inquérito é de competência da policia judiciária militar. Aqui o STF reconheceu a natureza do delito como militar ao dizer que a policia civil não seria competente para a apuração do crime.
No julgado abaixo, o STF, de forma contrária, em recurso extraordinário, afirmou que os crimes dolosos contra a vida, praticado contra civil, com a edição da lei 9.299/96, passa a ser crime de natureza comum, tornando Constitucional a referida lei.[63]
Ementa: recurso extraordinário. Alegação de inconstitucionalidade do § único do art.9º do Código Penal Militar introduzido pela lei 9.299 de 07 de agosto de 1996. Improcedência. No art. 9º do CPM que define quais são os crimes que, em tempo de paz, se consideram militares, foi inserido pela lei 9.299/96, um parágrafo único que determina que ‘os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum’. Ora, tendo sido inserido esse parágrafo único em artigo do Código Penal Militar que define os crimes militares em tempo de paz e sendo preceito de exegese o de que ‘sempre que for possível sem fazer demasiada violência as palavras, interprete-se a linguagem da lei com reserva tais que se torne constitucional a medida que ela institui, ou disciplina’, não há demasia nenhuma em se interpretar, não obstante sua forma imperfeita, que ele, ao declarar, em caráter de exceção, de que todos os crimes de que trata o art.9º do Código Penal Militar, quando dolosos contra a vida e praticados contra civil, são de competência da justiça comum, os teve, implicitamente, como excluídos do rol dos crimes considerados como militares por este dispositivo penal, compatibilizando-se assim com o disposto do caput do art. 124 da Constituição federal.[...]. (RE 260404/MG, rel. p/ o acórdão Min. Moreira Alves, decisão unânime do Pleno em 22-03-2001).
Por outro lado, outra decisão, a nosso ver, foi mais acertada. O Superior Tribunal Militar declarou a lei 9.299/96 inconstitucional.
Ementa: Recurso criminal. Competência da Justiça Militar da União. Inconstitucionalidade, declarada incidenter tantum, da lei 9.299 de 1996, no que se refere ao § único do art.9º do CPM e ao caput do art. 82 e seu §2º do CPPM. Desde a sanção da lei 9.299/96, com o projeto de lei encaminhado ao congresso Nacional para modificá-la, verifica-se que seu texto resultou equivocado. Enquanto não ocorre a alteração do texto legal pela via legislativa, o remédio é a declaração de sua inconstitucionalidade incidenter tantum, conforme dispõe o art. 97 da CF antecedentes da corte. (RCr n. 6.348-5/PE). Provido o recurso do RMPM e declarada a competência da Justiça Militar da União para atuar no feito. Decisão unanime. (Ac. 1997.01.006449-0/RJ, decisão de 17-03-1998, rel. Min. Aldo da Silva Fagundes).
Célio Lobão[64] afirma que todo esse problema teria sido resolvido se a redação do § único do art. 9º tivesse sido mais simples, como por exemplo: “Os crimes dolosos contra a vida, praticados contra civis, não são crimes militares.”. Isso evitaria toda a discussão metajurídica que se desenvolveu em torno da lei 9299/96.
2.8 Releitura da Emenda Constitucional 45/2004 com proposta de instituição do Tribunal do Júri na Justiça Militar estadual com Conselho de Sentença específico variável.
Com o advento da emenda constitucional 45/2004, a situação dos crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares federais foi pacificada no sentido do referido crime continuar sendo militar e o julgamento continuar a cargo da Justiça Militar Federal. Porém, conforme explica Fernando A. N. Galvão da Rocha,[65] a discussão voltou-se em torno dos crimes militares dolosos contra a vida de civis praticados por militares estaduais, pois a emenda 45/2004 ampliou a competência da Justiça Militar estadual, dada a perceptível alteração trazida na redação dos parágrafos 3º, 4º e 5º do art. 125 da Constituição Federal de 1988, conforme podemos observar:
§3º A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça, e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes.
§4º Compete à Justiça Militar Estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra os atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.
§5º Compete aos juízes de direito do juízo militar processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra os atos disciplinares militares, cabendo ao Conselho de Justiça, sob a presidência de juiz de direito, processar e julgar os demais crimes militares.
Pelo exposto dos artigos acima, não houve alteração das regras de competência ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Também não houve alteração na definição do crime militar de homicídio, pois, não importa se o crime foi cometido contra civil ou contra militar, a tipificação continua no art. 205 do Código Penal Castrense.[66]
Com o §5º do art. 125 da CF, o juiz de direito do juízo militar passou a ter competência privativa para o julgamento dos crimes militares cujo sujeito passivo seja um civil. Note-se que a Constituição fez uma ressalva no intuito de preservar a instituição do júri. Ou seja, quando o crime militar for contra a vida de civis não poderá haver julgamento singular pelo juiz de direito do juízo militar, porém, este juiz deverá instituir o Tribunal do Popular sob sua presidência.[67]
Com a preservação da instituição do júri feita pela Constituição, não se cria uma nova “justiça especializada do júri”. O Tribunal do Povo não materializa nenhuma justiça especializada, apenas compõe a organização judiciária competente. Com isso, a única conclusão possível é que “...a Emenda Constitucional 45 determinou que se instituísse o Tribunal do Júri na Justiça Militar estadual, que é competente para o julgamento dos crimes militares praticados por militares estaduais.”[68]. O que a Lei Maior quis foi preservar a garantia individual do Tribunal do Povo aos militares estaduais.
Não haveria razoabilidade se a Constituição concedesse à Justiça Comum a competência para julgamento de apenas um crime militar. Isso quebraria a harmonia da competência em razão da matéria, que justifica a criação de justiças especializadas, como a militar.[69]
Rocha[70] nos apresenta um exemplo prático da problemática advinda desta quebra de competência.
Veja-se, por exemplo, a hipótese de desclassificação do crime doloso para o culposo no plenário do Tribunal do Júri. Tal desclassificação importaria reconhecimento de incompetência da Justiça comum para o julgamento do crime militar culposo praticado contra civil. Por outro lado, se à Justiça comum fosse concedida a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida do civil, que razão justificaria a preservação da competência da Justiça Militar para o julgamento de outros crimes militares graves igualmente praticados contra civis, como por exemplo o latrocínio? Estas singelas reflexões permitem perceber que a pretendida repartição da competência viola a harmonia do sistema normativo e coloca em xeque a sua racionalidade.
Diante do exposto Rocha chegou à conclusão que o julgamento de crimes militares por Tribunal do Júri organizado no âmbito da Justiça comum é nulo por incompetência absoluta do órgão julgador em razão da matéria. A Emenda Constitucional 45/2004 preservou a competência da justiça militar estadual para o julgamento de todos os crimes militares. Quanto aos crimes dolosos contra a vida de civil o autor assevera que deve o juiz de direito do juízo militar assumir a presidência do Tribunal do Povo organizando um “...conselho de sentença integrado por cidadãos escolhidos conforme as regras do Código de Processo Penal comum, aplicável ao caso por previsão do art. 3º, alínea “a”, do CPPM.”.[71]
Alisson Silva Garcia[72] também apresenta como proposta a consolidar a previsão constitucional do Tribunal do Júri, que o referido tribunal seja recebido nas dependências da Justiça Militar estadual, porém, que este seja com composição mista, ou seja, com a participação de civis e militares.
Discordamos de Rocha quanto à composição do Conselho de Sentença na Justiça Militar estadual ser nos moldes do Código de Processo Penal comum e também discordamos da composição mista do Tribunal do Júri proposta por Alisson Silva Garcia. A nosso ver, o Código de Processo Penal Militar deve ditar normas próprias para a formação do referido Conselho. O art. 437, inc. VIII do Código de Processo Penal exclui os militares da ativa da formação do Conselho de Sentença no âmbito da justiça comum, talvez por entender que militares da ativa poderiam ser parciais em seus votos quando julgassem civis.
Rodrigo Faucz Pereira e Silva explica que o legislador isentou algumas pessoas de fazerem parte do Tribunal do Júri, seja por não poderem se ausentar de seus cargos ou talvez pelo fato de que pelas funções, algumas pessoas estariam mais propensas a acolher facilmente os argumentos da acusação ou da defesa.[73]
Assim, já que os servidores militares não podem fazer parte do Conselho de Sentença para julgar civis, como deixar que os civis tenham voto no Conselho de Sentença de um réu militar? Certamente que os civis não conhecem as peculiaridades da vida na caserna.
Aliado a isso, está o fato que algumas pessoas são facilmente influenciadas pela opinião da mídia propagada em seus veículos de comunicação em massa, e esta, como facilmente se observa, é altamente preconceituosa em relação aos policiais militares. Somente os erros policiais ganham destaque em revistas, jornais, televisão, rádio e internet. Já os acertos, dificilmente. Por isso, caso o fato julgado seja alvo da cobertura da imprensa a opinião de um juiz leigo civil poderia estar condicionada aos rumos predeterminados pelas reportagens.
Diferentemente, um militar da ativa que conhece as minúcias do serviço policial na atualidade, estaria menos propenso a ter seu voto influenciado por qualquer fator externo que contrapusesse as provas apresentadas nos ritos do Júri Popular.
O mais apropriado seria que o Conselho de Sentença fosse integrado somente por militares, respeitando-se logicamente, a antiguidade dos réus para não ferir os preceitos da hierarquia e da disciplina, pois, mesmo o militar estando preso, ele conserva as prerrogativas inerentes ao seu posto ou graduação. Ou seja, seria um Conselho de Sentença específico de militares, e variável, dependendo do posto ou graduação do réu. Por exemplo, se o réu for um 3º Sargento, o Conselho de Sentença não poderia ser formado com Cabos ou Soldados. Da mesma forma, se o réu é um 1º Tenente, o conselho só se formaria de Capitães até Coronéis.
Essa composição específica variável do Conselho de Sentença do Júri não se confunde com os Conselhos de Justiça, especial ou permanente, integrantes da primeira instância das Justiças Militares estaduais. No júri, além de ser possível haver praças atuando como juízes leigos, os votos não carecem de fundamentação legal e serão secretos, respeitando-se todos os princípios constitucionais do Tribunal Popular.
O direito fundamental de ser julgado pelo Tribunal do Júri tem a intenção de evitar decisões monocráticas legalistas do juiz togado, podendo as decisões absolutórias serem motivadas devido á carga emocional e aos sentimentos dos jurados, aliado ao fato do julgamento ser realizado por membros da própria comunidade que conhece as peculiaridades e sentimentos daquele meio.[74]
Se o fundamento do Tribunal do Júri é que este é um Tribunal de leigos que são julgados pelos seus pares ou seus iguais, não há como dizer que civis pertençam a mesma comunidade dos militares estaduais quando falarmos em crimes da caserna. A atividade de polícia militar é por demais específica.
Existem várias peculiaridades do policial militar que nos fazem acreditar que de fato o Conselho de Sentença destes réus deve ter composição diferenciada, respeitando-se o Principio da Igualdade bem como o direito individual de ser julgado pelo Tribunal do Júri no âmbito da Justiça Militar estadual.
A começar, o próprio edital para o concurso de admissão ao ingresso em um dos quadros da polícia militar, nas atribuições do cargo, já revelam as diferenças desta carreira em relação às demais funções públicas.
Condições gerais de exercício do cargo: Trabalhar tendo contato cotidiano com o público, de forma individual ou em equipe, sob supervisão permanente, em ambiente de trabalho que pode ser fechado ou a céu aberto, a pé, montado ou em veículos, em horários diversos (diurno, noturno ou em rodízio de turnos). Atuar em condições de pressão e de risco de contágio de moléstias e de morte em sua rotina de trabalho.
A carga horária semanal de trabalho é regulada pela Lei Complementar nº127, de 02/07/2013 e pela Resolução nº 4285/2013, de 10 de dezembro de 2013 e suas alterações, ressalvada a exigência de estar pronto para cumprir a missão que lhe for confiada pelos seus superiores hierárquicos ou impostas pelas leis e regulamentos, a qualquer hora do dia ou da noite, na sede da unidade ou onde o serviço exigir.(grifo nosso) [75]
Ao entrar para a instituição, o policial militar também faz um juramento que inclui, até mesmo, o sacrifício da própria vida.
Ao ser declarado Soldado da Polícia Militar de Minas Gerais, sob os princípios da hierarquia e disciplina, assumo o compromisso: de executar as atribuições que me competem na promoção da paz social; cumprir, rigorosamente, as ordens das autoridades a que estiver subordinado; assegurar a dignidade humana, as liberdades e os direitos fundamentais; servindo à sociedade, em toda sua diversidade: com respeito e participação, com ética e transparência, com coragem e justiça, e dedicar-me, inteiramente, ao serviço policial militar, mesmo com o sacrifício da própria vida.(grifo nosso)[76]
Tanto o art.43 do Código Penal Militar quanto o art.24 §1º do Código Penal comum revelam que o militar tem o dever de arrostar/enfrentar o perigo. Em situações que um civil tem a ilicitude de um crime afastada pelo estado de necessidade, ao militar isto não se aplica, conforme se depreende abaixo:
A princípio o militar federal, estadual, ou distrital, não tem a possibilidade de alegar o estado de necessidade ainda mais quando é obrigado a arrostar o perigo, ou seja, a exercer a sua função constitucional de preservar a segurança nacional, a segurança pública, a integridade física e patrimonial, e também a salubridade pública e a defesa civil, dos brasileiros e estrangeiros que vivem no território nacional. No caso, por exemplo, dos bombeiros militares estes são obrigados a enfrentarem o incêndio não podendo alegar a ocorrência do estado de necessidade para deixarem de prestar socorro a vítima. [77]
É sabido também que o policial militar tem obrigação legal de agir em situações de flagrante delito de crimes comuns ou militares, por previsão do art. 301 do Código de Processo Penal e do art. 243 do Código de Processo Penal Militar. Note-se que ao cidadão comum, a atuação é meramente facultativa, ao passo que o policial militar poderá incorrer até mesmo em crime de prevaricação caso se mantenha inerte.
Art. 301 CPP – Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.
Art. 243 CPPM – Qualquer pessoa poderá e os militares deverão prender quem for insubmisso ou desertor, ou seja encontrado em flagrante delito.
Ademais, como bem informa Alisson Silva Garcia[78], não é só a Justiça Militar estadual que contém quesitos desconhecidos do público. Sobre seu jurisdicionado, o policial militar, somente os parentes e os amigos próximos sabem das reais dificuldades que o mesmo enfrenta diariamente.
As características diferenciadoras entre os militares e os demais do povo são inúmeras, conforme informações do 17º GAC trazidas por Garcia[79]:
Risco de morte: Durante toda a sua carreira, o militar convive com o risco. Seja nos treinamentos, na sua vida diária ou na guerra, a possibilidade iminente de um dano físico ou da morte é um fator permanente de sua profissão. O exercício da atividade militar, por natureza, exige o comprometimento da própria vida.
Sujeição a preceitos rígidos de disciplina e hierarquia: Ao ingressar nas Forças militares, o cidadão tem de obedecer a severas normas disciplinares e a estritos princípios hierárquicos, que condicionam toda a sua vida pessoal e profissional.
Dedicação exclusiva: O militar não pode exercer qualquer outra atividade profissional, o que o torna dependente de seus vencimentos, historicamente reduzidos, e dificulta o seu ingresso no mercado de trabalho, quando na inatividade.
Disponibilidade permanente: O militar se mantém disponível para o serviço ao longo das 24 horas do dia, sem direito a reivindicar qualquer remuneração extra, compensação de qualquer ordem ou cômputo de serviço especial.
Mobilidade geográfica: O militar pode ser movimentado em qualquer época do ano, para qualquer região do Estado, indo residir, em alguns casos, em locais inóspitos e destituídos de infraestrutura de apoio à família.
Vigor físico: As atribuições que o militar desempenha, não só por ocasião de eventuais conflitos, para os quais deve estar sempre preparado, pois a natureza do seu serviço exigem-lhe elevado nível de saúde física e mental constantes. O militar é submetido, durante toda a sua carreira, a periódicos exames médicos e testes de aptidão física, que condicionam a sua permanência no serviço ativo.
Formação específica e aperfeiçoamento constante: O exercício da profissão militar exige uma rigorosa e diferenciada formação. Ao longo de sua vida profissional, o militar de carreira passa por um sistema de educação continuada, que lhe permite adquirir as capacitações específicas dos diversos níveis de exercício da profissão militar e realiza reciclagens periódicas para fins de atualização e manutenção dos padrões de desempenho.
Proibição de participar de atividades políticas: O militar da ativa é proibido de participar de atividades políticas, especialmente as de cunho político-partidário.
Proibição de sindicalizar-se e de participação em greves ou em qualquer movimento reivindicatório: O impedimento de sindicalização advém da rígida hierarquia e disciplina, por ser inaceitável que o militar possa contrapor-se à instituição a que pertence, devendo-lhe fidelidade irrestrita. A proibição de greve decorre do papel do militar na defesa do país, interna e externa, tarefa prioritária e essencial do Estado.
Restrições a direitos trabalhistas: O militar não usufrui alguns direitos trabalhistas, de caráter universal, que são assegurados aos trabalhadores, dentre os quais incluem-se:
- remuneração do trabalho noturno superior à do trabalho diurno;
- jornada de trabalho diário limitada a oito horas;
- obrigatoriedade de repouso semanal remunerado; e
- remuneração de serviço extraordinário, devido a trabalho diário superior a oito horas diárias.
Vínculo com a profissão: Mesmo quando na inatividade, o militar permanece vinculado à sua profissão. Os militares na inatividade, quando não reformados, constituem a "reserva" de 1ª linha, devendo se manter prontos para eventuais convocações e retorno ao serviço ativo, conforme prevê a lei, independente de estarem exercendo outra atividade, não podendo por tal motivo se eximir dessa convocação.
Consequências para a família: As exigências da profissão não ficam restritas à pessoa do militar, mas afetam, também, a vida familiar, a tal ponto que a condição do militar e a condição da sua família se tornam estreitamente ligadas:
- a formação do patrimônio familiar é extremamente dificultada;
- a educação dos filhos é prejudicada;
- o exercício de atividades remuneradas por cônjuge do militar fica praticamente impedido.
Para Garcia, outros itens ainda poderiam ser elencados, porém, não seria possível demonstrar o que é ser militar em apenas um trabalho acadêmico. “...para que se tenha o mínimo de conhecimento das distinções reservadas ao homem que veste farda, é necessário que se conviva por alguns dias dentro da caserna participando de suas atividades de rotina...”. Somente assim, precariamente, os interessados poderiam se convencer da necessidade de diferenciar os militares dos demais cidadãos.[80]
Por fim, como bem explica Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, “a observância da hierarquia e da disciplina não afasta o respeito aos princípios constitucionais e às garantias processuais que são asseguradas a todos os acusados e aos litigantes em geral, em processo administrativo ou judicial.”[81] Daí, concluímos que ao militar estadual deve ser garantido o direito fundamental de ser julgado pelo tribunal do júri, porém, com o Conselho de Sentença composto por seus pares.