Sumário: 1 Introdução; 2 O que é o direito? 2.1 O ataque geral de Ronald Dworkin ao Positivismo; 2.2 Regras, princípios, políticas e a inexistência de formas canônicas para o direito; 2.3 Os direitos individuais como trunfos; 3 A desobediência civil; 3.1 Há um direito a desobedecer? 3.2 Desobediência Civil e restrições de direitos; 3.3 Uma teoria operacional da desobediência civil; 4 Conclusões; 5 Referência bibliográficas.
Resumo: Este artigo pretende analisar a teoria de Ronald Dworkin sobre a desobediência civil, apresentando-a como consequência da tese dos direitos individuais como trunfo perante a maioria. Em um Estado que reconhece direitos, não há um dever geral à obediência e, caso as leis violem os direitos fundamentais, surge o direito à desobediência civil como característica desses direitos contra o Estado.
Palavras-chave: Desobediência civil. Direitos individuais. Ronald Dworkin.
1. INTRODUÇÃO
Nas sociedades democráticas, o problema da desobediência civil é sempre atual e, numa perspectiva mais geral, poder-se-ia formulá-lo do seguinte modo: Em um governo que se julga democrático, que reconhece direitos individuais e possui métodos de controle de constitucionalidade de leis, é possível falar que há um direito a desobedecer à lei? Se um tal direito existe, em que condições um cidadão estaria legitimado a exercê-lo?
Neste trabalho, pretende-se analisar como Ronald Dworkin responde a estas indagações, bem assim definir qual o lugar que a desobediência civil ocupa na teoria jurídica desse autor. Em razão disso, parte-se do pressuposto de que a teoria da desobediência civil de Dworkin não é um aspecto isolado e desvinculado de sua teoria dos direitos. Assim, em primeiro lugar, faz-se uma introdução geral à filosofia jurídica de Dworkin, que permite concluir que, para o autor, não há uma rígida distinção entre direito e moral e que existem direitos não expressamente previstos em regras. Neste contexto, o direito é visto como uma tentativa de sistematizar os padrões que determinam os direitos e deveres que um Estado tem o dever de reconhecer e fazer respeitar. Em seguida, analisa-se a argumentação em torno da desobediência civil como consequência da tese dos direitos individuais como trunfos contra a maioria. Ao final, examina-se o que Dworkin denominou de teoria operacional da desobediência civil como ferramenta teórica de análise de fenômenos contestadores bastante distintos.
2. O QUE É O DIREITO?
Há quem afirme que a teoria de Ronald Dworkin sobre o direito constitui uma terceira via entre o jusnaturalismo e o positivismo (KAUFMANN E HASSEMER, 2000, p. 156). Isso porque Dworkin repele as doutrinas positivistas e realistas, negando a separação absoluta entre o direito e a moral, e a jusnaturalista, vez que não se vale de princípios de justiça material previamente estabelecidos (CALSAMIGLIA, 1984, p. de internet).
A intenção de Dworkin, como analisado a seguir, é lançar um ataque geral ao Positivismo e demonstrar que não há um teste para determinar o que é o direito. Daí surge a ideia de que o direito não é um conjunto fechado de padrões pré-determinados, mas uma tentativa de sistematizar direitos e deveres que o Estado tem a obrigação de reconhecer e fazer respeitar.
2.1 O ataque geral de Ronald Dworkin ao Positivismo
Dworkin pretende lançar um ataque geral ao positivismo e utiliza a versão de H. L. Hart como alvo. Parte do ponto de que em certos casos difíceis (hard cases) os magistrados recorrem a padrões que funcionam de forma diferente das regras jurídicas, tais como princípios, políticas e outros (DWORKIN, 2002, p. 36). Portanto, o ataque se baseia em uma diferenciação lógica entre esses standards, com o objetivo de demonstrar que não há uma distinção rígida entre direito e moral, de que não há um teste para definir ao certo o que é o direito.
Segundo o autor, o modelo positivista é um modelo de regras e elaborado para um sistema de regras. Dworkin (2002, p. 27-28) aponta como postulados do positivismo: a) a visão do direito como um conjunto de regras utilizado pela comunidade com o objetivo de determinar qual comportamento será punido ou coagido pelo poder público. Tais regras podem ser identificadas por testes de pedigree, que dizem respeito à maneira pela qual foram adotadas ou formuladas, que podem separa as regras válidas das espúrias, bem assim distingui-las de outras regras sociais (morais, por exemplo); b) O direito se identifica com o conjunto dessas regras, de forma que se um caso concreto não estiver coberto por uma regra, não poderá ser decidido pela aplicação do direito, exigindo que o juiz crie uma nova regra ou complemente uma já existente; c) Só há “obrigação jurídica” se houver uma regra válida exigindo que alguém faça ou não alguma coisa, de modo correlato se alguém tem um “direito jurídico” significa que outras pessoas têm obrigações jurídicas de agir ou não agir de maneira que o afetem. Segue-se, então, que quando o juiz decide uma matéria controversa atuando discricionariamente, não está fazendo valer um direito jurídico que corresponda a essa matéria.
Na versão do positivismo de Hart, há a distinção entre regras primárias e regras secundárias. As primeiras são aquelas que concedem direitos ou impõem deveres aos membros da comunidade. As secundárias estipulam como e porque as regras primárias podem ser estabelecidas, declaradas legais, modificadas ou abolidas. Uma regra pode ser obrigatória para uma comunidade porque é aceita ou porque é válida. Nas comunidades primitivas há apenas regras primárias, cuja obrigatoriedade emana da aceitação. Entretanto quando se desenvolveu uma regra secundária fundamental, a qual Hart chama de regra de reconhecimento (rule of recognition), que estabelece como devem ser identificadas as regras jurídicas, nasce a ideia de um conjunto específico de regras, e com isso, a ideia de direito (DWORKIN, 2002, p. 31-36).
Pois bem, para levar a cabo a sua crítica ao positivismo e demonstrar que não há uma pedra de toque para saber o que é o direito, Dworkin vale-se da estratégia já antes mencionada, qual seja, provar que nos hard cases os juízes tomam decisões baseando-se em outros padrões normativos diferentes das regras. Entre as decisões dadas como exemplo, cita o caso Riggs contra Palmer, resolvido pela Corte de Nova Iorque em 1989. No caso, o tribunal condenou por assassinato um jovem que matou o avô para receber a herança, porém contra a letra da lei, justificando a aplicação da literalidade da lei no princípio de que ninguém pode beneficiar-se com seus próprios atos ilícitos. Nesses casos a norma utilizada para resolver o conflito funciona de maneira bem diferente das regras.
Assim, além das regras, Dworkin identifica outros tipos de padrões normativos. E, ao aplicá-los, o magistrado não está criando direito novo, pois, como as regras, tais princípios também são normas jurídicas.
2.2 Regras, princípios, políticas e a inexistência de formas canônicas para o direito
Inicialmente, ressalte-se que Dworkin utiliza a palavra princípios em um sentido amplo, abrangendo os padrões que não são regras; outras vezes utiliza em sentido estrito, diferenciando os princípios das políticas. Dworkin (2002, p.36) denomina “política” ao padrão “que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade”. Por sua vez, o “princípio” é um padrão que deve ser observado, “não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade” (DWORKIN, 2002, p. 36). Assim, por exemplo, o padrão que diz que os acidentes automobilísticos devem ser reduzidos é uma política e o de que ninguém deve se beneficiar da própria torpeza é um princípio.
Já a diferença entre regras e princípios é de natureza lógica. Segundo Dworkin (2002 p. 39), ambos os padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto ao tipo de orientação que oferecem. Assim, “as regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão” (DWORKIN, 2002 p. 39).
Se há conflito entre duas regras, uma delas não pode ser válida. Esses conflitos podem ser resolvidos apelando-se a outras regras do sistema (critérios hierárquico, cronológico, etc.) ou preferir as regras sustentadas pelos princípios mais importantes. Porém se o conflito se dá entre princípios não é assim que se resolve, pois estes possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou da importância. Quando os princípios se entrecruzam, há que se considerar a força relativa de cada um dos princípios em conflito (DWORKIN, 2002, p. 42).
Por outro lado, para Dowrkin, não há, efetivamente, conflito entre uma regra e um princípio. Uma regra poderá excepcionar expressamente um princípio, caso em que estará dando maior importância a outro. Porém, em certos casos, poderão os princípios afastar a incidência de uma regra. Isso porque, em tais circunstâncias, estar-se-ia comparando dois conjuntos de princípios, os que sustentam a regra e reclamam sua manutenção e os que pedem a revogação da mesma. Nesse caso, estar-se atribuindo maior peso ao conjunto de princípios contrários às regras (DWORKIN, 2002, p. 122).
Porém, não é qualquer princípio que justifica a mudança de uma regra, do contrário nenhuma regra subsistiria. É preciso haver, segundo o autor, princípios com importância, princípios sem importância e princípios mais importantes que outros. Mas, em cada caso, a eleição do princípio não pode depender das preferências pessoais do juiz (DWORKIN, 2002, p. 60).
Assim, é preciso evitar dois equívocos acerca da teoria de Dworkin. O primeiro é acerca da distinção entre princípios e regras. A diferença entre ambos os padrões é apenas de ordem lógica. Em Dworkin os princípios não são vistos como “mandados nucleares de um sistema”. Um princípio poderá ser importante, mas também poderá não ser. O segundo diz respeito à afirmação de que Dworkin vê o direito como um sistema formado por princípios e regras, sem fazer a ressalva de que o autor rejeita a identificação de um número de padrões fixos no direito. Isso faria ruir a crítica feita pelo autor ao positivismo, particularmente no ponto em que Dworkin nega a existência de um teste para saber o que é e o que não é o direito. Aliás, ele diz que “Ao rejeitar a ideia de que o direito é um sistema de regras, não foi intenção substituí-lo pela teoria de que o direito é um sistema de regras e princípios. Não existe nada como ‘o direito’ como conjunto distinto de proposições, cada uma com sua própria forma canônica” (DWORKIN, 2002, p. 527).
Sendo assim, em Dworkin o “Direito poderia ser, então, visto como uma tentativa de sistematização dos direitos e dos deveres e sua efetiva implementação na sociedade” (DALL’AGNOL, 2005, p. 63).
2.3 Os direitos individuais como trunfos
Sendo o direito uma tentantiva de sistematizar os direitos e deveres que o Estado tem o dever de reconhecer e fazer respeitar, pelo menos em princípio, resta perquirir pela função desempenhada pelos direitos individuais neste conjunto.
Dworkin tem como um dos principais pontos de sua teoria a defesa dos direitos individuais, particularmente do direito à igual consideração e respeito. Dworkin formula um conceito de direito individual, que pode ser chamado de conceito antiutilitarista de um direito. Defende a ideia de que “os direitos são melhor entendidos como trunfos (trumps) sobre alguma justificação de fundo de decisões positivas em vez de estabelecer uma finalidade para a comunidade política como um todo” (Dworkin apud DALL’AGNOL, 2005, p. 59 ).
Sob essa ótica, os objetivos sociais, inclusive, só são legítimos se respeitarem os direitos individuais. Segundo o autor, se uma pessoa tem o direito de fazer algo, então é errado que o governo a prive desse direito, ainda que seja do interesse geral proceder assim (DWORKIN, 2002, p. 414). Com tal noção de direitos, Dworkin diverge das doutrinas utilitaristas, que subordinam os direitos individuais aos fins coletivos. A argumentação acerca da desobediência civil se constrói em torno dessa noção de direito individual como trunfo sobre a maioria, conforme se verá adiante.
Entretanto, segundo Darlei Dall’Agnol (2005, p. 59), ao falar de direitos como trunfos, Dworkin não está apresentando uma definição exata de “ter um direito”, mas, antes, explicitando como eles devem ser entendidos na relação indivíduo-sociedade. Observa também Dall’Agnol (2005, p. 59) que, ao comparar os direitos com certo tipo de carta para jogar, Dworkin pretende demonstrar a função desempenhada por esta noção no discurso político, tal como fará em relação à liberdade de expressão e à desobediência civil.
Dworkin também sustenta que não existem apenas os direitos legais ou jurídicos. Além deles há os direitos morais. Os direitos jurídicos são direitos institucionais, isto é, justificam uma decisão tomada por uma instituição política específica (DWORKIN, 2002, p. 145). Normalmente, os direitos morais fundamentais entram no cálculo de quais direitos jurídicos uma pessoa têm quando os materiais-padrão (as “fontes do direito”: lei, jurisprudência, etc.) não fornecem uma orientação segura (DWORKIN, 2002, p. 500). É possível que ambos entrem em conflito e, nesse caso, o juiz que acredite serem fortes as razões a favor do direito moral talvez tenha que mentir ou esperar que seu apelo com base nas razões morais tenha os mesmos efeitos que sua mentira (DWORKIN, 2002, p. 501). Assim, em Dworkin o “o problema dos direitos não se resolve mediante o mero reconhecimento legal porque o umbral entre os direitos morais e jurídicos é difuso” (CALSAMIGLIA, 1984, p. de internet).
O sistema jurídico tem como mais importante função garantir os direitos dos indivíduos frente às agressões do governo e da maioria. Calsamiglia (1984, p. de internet) fornece um exemplo que permite vislumbrar a concepção de direito como trunfos frente a maioria. Imagine-se que quatro pessoas criem uma sociedade para praticar esportes, cujo estatuto estipule que as decisões sejam tomadas com base no princípio da maioria. Criada a sociedade, decidem, unanimemente, construir uma quadra de tênis. Construída a quadra, os sócios decidem por maioria que uma das pessoas associadas – que é negra- não possa jogar porque não se desejam negros na quadra. Nesse caso, seria justa a lei da maioria? Se é assim, qual o sentido do direito à igual consideração e respeito? Uma teoria que leve os direitos a sério considerará tal decisão inválida, eis que a pessoa discriminada tem um direito individual que pode triunfar frente à maioria. Não ser discriminado só é um genuíno direito, se pode vencer as determinações da maioria em contrário.
A ideia de direitos como trunfos, não diz quais os direitos efetivamente os indivíduos têm, mas apenas quer “dizer basicamente que indivíduos têm direitos quando um fim coletivo não é suficiente para negar-lhe o que querem, têm ou fazem” (DALL’AGNOL, 2005, p. 63). Aceita tal premissa, institucionalizam-se os deveres em relação a estes direitos. É por isso que o Direito é uma tentativa de sistematização de direitos e deveres e sua implementação (DALL’AGNOL, 2005, p. 63).
3. A DESOBEDIÊNCIA CIVIL
Estabelecido que o direito não é um sistema fechado de padrões, que ao lado dos direitos jurídicos há os direitos morais, bem assim que os direitos individuais são trunfos contra a maioria, ao menos no que diz respeito à função desempenhada por eles no discurso político, resta indagar se há um direito a desobedecer a lei e, em que condições, pode ser exercido.
3.1 Há um direito a desobedecer?
Dworkin observa que há uma contradição no fato de liberais e conservadores, cujas posições são tradicionalmente consideradas como antagônicas, defenderem seus pontos de vista quanto à desobediência civil com o mesmo argumento. Ele se refere ao fato de conservadores e liberais afirmarem que, em uma democracia, todos têm o dever moral geral de obedecer a todas as leis, ainda que queira que algumas sejam modificadas, mas também uma pessoa deve honrar seus deveres para com Deus e sua consciência e, se estes entrarem em conflito com a lei, cabe-lhe decidir fazer o que julgar correto. Se decidir infringir a lei, deve submeter-se às sanções estatais por ter violado um dever para com seus concidadãos (DWORKIN, 2002, p. 287).
Embora essa não seja a posição de todos, ela padece de uma notória contradição: como é possível que o Estado reconheça que uma pessoa tem o direito de agir segundo sua consciência e ao mesmo tempo desencoraje ou proíba, ou ainda, puna algo que as pessoas têm direito de fazer? (DWORKIN, 2002, p. 288). Além de dizer que alguns ou todos que aceitam a posição apóiam direitos de consciência que na verdade não admitem, afirma Dworkin (2002, p. 289) que é preciso buscar a resposta na resolução das confusões que frequentemente rondam os argumentos sobre direitos.
Dworkin chama a atenção para o fato de a palavra direito (right) ter força diferentes conforme o contexto em que é usada. Num sentido fraco “ter um direito” significa que alguém não erra ao fazer algo, ainda que seja possível tentar forçá-lo a agir de forma diferente. Num sentido forte, dizer que alguém “tem um direito” a fazer algo significa que é errado interferir na realização dessa conduta ou de que é preciso razões especiais para nela interferir. (DWORKIN, 2002, p. 291). Este último sentido corresponde à noção de direito como trunfo, já anteriormente exposta.
Considerando, assim, o sentido forte da palavra, um cidadão americano tem o direito de fazer algo que vá contra a lei? Se o tem, quando é permitido fazê-lo?
Inicialmente, Dworkin lembra que, nos Estados Unidos, pressupõe-se que o cidadão tenha certos direitos fundamentais contra o governo, certos direitos morais transformados em direitos jurídicos pela constituição, embora nem todos os direitos jurídicos sejam direitos morais contra o governo. Por isso, dizer que os cidadãos têm direito à liberdade de expressão implica que o governo agiria errado ao impedi-los de se expressarem, ainda que acredite que esse uso da liberdade cause mais mal que bem. Ter esse direito não pode significar simplesmente que o agente nada faz de errado ao proceder assim e que o governo se reserve o direito de impedir sua conduta (DWORKIN, 2002, p. 293).
Os direitos fundamentais, como visto, representam direitos no sentido forte contra o governo. Entretanto, não se pode sustentar dois posicionamentos extremos, o de que o Estado nunca tem justificativa para desconsiderar um direito, ou o de que esteja autorizado a desconsiderá-lo com base em razões de pouca importância (DWORKIN, 2002, p. 293).
Um homem tem direito a desobedecer à lei quando esta erroneamente invade seus direitos. Assim, se ele tem um direito à liberdade de expressão, terá um direito moral a desobedecer uma lei que viole aquele direito (DWORKIN, 2002, p. 295). Disso segue-se que:
O direito a desobedecer a lei não é um direito isolado, que tem algo a ver com a consciência, mas uma adição a outros direitos contra o governo. É simplesmente uma característica desses direitos contra o governo e em princípio não podemos negá-lo, sem que também neguemos a existência desses direitos (DWORKIN, 2002, p. 295).
É oportuno recordar que, para Dworkin, um direito, para que seja considerado como tal, prescinde de uma regra que o expresse. Não se exige, portanto, que o direito à desobediência venha expresso numa regra ou que, correlatamente, uma regra disponha sobre a obrigação jurídica de o Estado agir ou não, uma vez que a desobediência é inerente à própria ideia de direitos contra o Estado.
A tese da existência de um direito a desobedecer se contrapõe à ideia de que há um dever geral de obediência à lei, legitimando o Estado a punir o desobediente. Entretanto, diz Dworkin (2002, p. 296), se o estado realmente reconhece direitos “é tolice falar de um dever geral de obediência à lei, enquanto tal, ou um dever de aceitar uma punição que o Estado não tem o direito de aplicar”. Além disso, não há provas de que tolerar a desobediência civil implica numa diminuição do respeito à lei. E se assim fosse, Dworkin (2002, p. 296) considera que um simples benefício geral, um mero ganho utilitarista, não pode justificar a restrição de direitos. Afinal, isso destruiria a noção de direitos como trunfos do indivíduo contra o Estado.
Outro argumento que Dworkin combate é aquele que apela para a noção de direitos concorrentes, que seriam ameaçados caso o estado não limitasse o direito em questão. Às vezes o Estado tem que escolher entre dois tipos de direitos, quais sejam, um direito à proteção pessoal do Estado e um direito a estar livre da interferência do Estado (DWORKIN, 2002, p. 297). Exemplo disso são as leis que punem a difamação, restringindo a liberdade de expressão, tendo em vista a necessidade de resguardar a honra e a boa fama dos indivíduos.
Segundo tal argumento, no caso da desobediência civil, estariam em conflito o direito individual de infringir a lei com o direito da maioria de ter suas leis aplicadas ou com o direito à ordem e à segurança (DWORKIN, 2002, p. 297). Contrariamente, Dworkin diz que a restrição de um direito com base nessa tese colocaria em risco a própria existência de direitos contra o governo, que são direitos a fazer algo ainda que prejudique a maioria, pois os direitos seriam aniquilados sempre que contrariassem os interesses daquela (DWORKIN, 2002, p. 298).
Então, para preservar os direitos, afirma Dworkin (2002, p. 298), só se pode considerar como direitos concorrentes aqueles titulados por membros da sociedade considerados individualmente. Há que se distinguir entre os “direitos” da maioria enquanto tal e os direitos pessoais da maioria que podem ser levados em conta. Só há direito concorrente à proteção, contraposto a um direito individual de agir, se o titular daquele puder exigir do Estado a proteção de seu direito, sem considerar se os demais concidadãos fazem a mesma reivindicação. Sob essa óptica, parece que uma pessoa não tem o direito de ver aplicada todas as leis do país.
Dworkin também se antecipa a uma outra objeção que poderia ser feita pelas posições ortodoxas, qual seja, a de que o governo está sempre autorizado a restringir direitos pessoais numa situação de emergência, para evitar grande perda ou para assegurar um benefício de grande importância (DWORKIN, 2002, p. 299). Meras especulações quanto à emergência ou vantagem definitiva não justificam a restrição de direitos. Da mesma forma, não é evidente que tolerar a desobediência civil contribua para aumentar essa desobediência ou o crime, ameaçando a sociedade.
Outro equívoco desse argumento é que ele pressupõe que o governo tem sempre de escolher entre a posição de que uma pessoa nunca tenha o direito de violar a lei, ou de que sempre o tem. Dworkin (2002, p. 301) propõe que, ante um caso de desobediência civil, a autoridade deve examinar os argumentos particulares apresentados pelo agente e não simplesmente se apoiar na lei infringida ou nas decisões da Suprema Corte, embora não haja o dever de sempre se deixar persuadir por esses argumentos.
3.2 Desobediência Civil e restrições de direitos
Já se argumentou que “se um homem tem um direito específico contra governo, esse direito sobrevive à legislação e às decisões judiciais em contrário” (DWORKIN, 2002, p. 302). Sobrevive à legislação adversa pelas razões já expostas no item anterior. Sobreviverá às decisões judiciais em contrário porque, se não é dado ao magistrado a discricionariedade para criar direitos, obviamente, não se lhe concederá o poder de extingui-los. Caso contrário, os direitos dos cidadãos estariam à mercê dos juízes.
Entretanto, é difícil dizer que direitos tem um indivíduo e quais os limites desses “direitos paradigmáticos”.
Para exemplificar, Dworkin analisa o caso da lei contra distúrbios públicos envolvida no processo contra “Os Sete de Chicago”, nos Estados Unidos dos anos 60. Nesse processo, acusavam-se os réus de cruzar as fronteiras estaduais para provocar distúrbios públicos através de discursos emocionados que defendiam que a violência é justificada quando o objetivo é garantir a igualdade política, o que era aparentemente tipificado como crime na mencionada lei (DWORKIN, 2002, p. 303). A questão posta era saber se o direito à liberdade de expressão protege tal discurso. O que é uma questão jurídica e também moral, na medida em que a Primeira Emenda da Constituição americana é uma tentativa de proteger a um direito moral. Afinal é uma das tarefas do governo definir direitos morais através de leis e decisões judiciais. Diante da proliferação de casos que envolviam infrações à lei de distúrbios públicos, como então o governo deve proceder quanto à definição de direitos morais?
Deve, segundo Dworkin (2002, p. 303), inicialmente, reconhecer que suas decisões podem estar erradas e, assim, escolher entre dois modelos distintos. O primeiro modelo postula que o governo deve buscar um equilíbrio entre o bem-estar geral e os direitos individuais. Nesse sentido, não deve restringir ou inflar um direito. Ambos os erros são igualmente perigosos. Na verdade, o modelo baseia-se na ideia de direitos concorrente, já discutida anteriormente.
Todavia Dworkin rechaça esse modelo, principalmente quando se trata de direitos tidos como fundamentais. Diz ele que quem professe levar os direitos a sério deve aceitar, no mínimo, duas ideias importantes. A primeira, ainda que vaga, é a da dignidade humana; a segunda a da igualdade política. Aquela sustenta que há maneiras de tratar uma pessoa que são incompatíveis com seu reconhecimento como membro da sociedade, esta pressupõe que os membros mais vulneráveis da sociedade têm direito a igual consideração e a igual respeito a que têm os membros mais poderosos (DWORKIN, 2002, p. 304-5). Só faz sentido dizer que alguém tem um direito fundamental (no sentido forte, é claro) contra o governo, como a liberdade de expressão, se esse direito for necessário à proteção de sua dignidade ou de sua posição enquanto portador da mesma consideração e respeito ou outro valor similar (DWORKIN, 2002, p. 304-5).
Assim, uma violação a um direito importante significa tratar um homem menos que um homem ou menos digno de consideração que outro. Diz Dworkin que:
A instituição de direitos baseia-se na convicção de que isso é uma grave injustiça e que vale a pena arcar com o custo adicional, em política social ou eficiência, necessário para impedir sua ocorrência. Mas se é assim, deve ser errado afirmar que a inflação dos direitos é tão grave quanto sua violação. Se o governo erra do lado do indivíduo, simplesmente paga um pouco mais em eficiência social do que deveria pagar; em outras palavras, paga um pouco mais da mesma moeda que já decidira gastar. Se, no entanto, erra contra o indivíduo, infringe-lhe um insulto que, para ser evitado, envolveria um custo ainda maior em termos de eficiência social, de acordo com as ponderações do próprio governo (DWORKIN, 2002, p. 305-6).
O segundo modelo, sustenta que a restrição de um direito é mais grave que sua inflação. Defende que quando um direito é reconhecido nos casos incontroversos, o governo só pode “amputar” esse direito baseado em razões convincentes e consistentes com os pressupostos sobre os quais o direito original deve assentar-se. “Uma vez reconhecido um direito, o fato de a sociedade ter de pagar um preço mais elevado para ampliá-lo, não pode ser usado como argumento para suprimi-lo” (DWORKIN, 2002, p. 307). Se assim não for, o governo estará demonstrando que seu reconhecimento do direito no caso original é apenas aparente, que quando tal direito se-lhe tornar inconveniente, não mais o reconhecerá.
Então, segundo esse modelo, que tipos de fundamentos o governo poderia usar para restringir a definição de um direito? Dworkin aponta três: a) mostrar que os valores protegidos pelo direito original não estão em jogo, ou apenas de forma atenuada, no caso marginal (controverso); b) mostrar que se o direito original incluir o caso marginal, algum direito concorrente será restringido; c) mostrar que o custo seria de grau superior ao pago no caso da concessão original (DWORKIN, 2002, p. 307). Depreende-se, então que se os fundamentos não forem legítimos como estes, a desobediência civil será cabível.
Voltando, então, ao caso dos “Sete de Chicago”, a lei contra os distúrbios públicos representa uma limitação indevida à liberdade de expressão? Rejeitado o primeiro modelo, Dworkin parte para a análise do que considera como fundamentos apropriados para a limitação de um direito. Partindo para a ideia de dignidade humana, Dworkin afirma, que uma pessoa não pode se expressar livremente se não pode adequar sua retórica a seu ultraje ou quando deve conter-se para proteger valores, os quais, ante o valor que pretende defender, são insignificantes. Ademais, há que se formular, nos caso concreto os juízos de valor acerca dos dissidentes levando-se em consideração a personalidade dos mesmos. Por outro lado, é uma negação ao direito à igual consideração e respeito julgar que somente os “métodos ortodoxos” de expressão sejam adequados (DWORKIN, 2002, p. 309). Assim, Dworkin afasta a possibilidade de que o primeiro fundamento justifique a lei contra os distúrbios públicos.
Dworkin analisa conjuntamente os outros dois fundamentos, i. é, se os direitos concorrentes ou uma grave ameaça à sociedade justificam a lei contra os distúrbios públicos. Neste contexto, os únicos direitos concorrentes plausíveis sãos os direitos de estar livre da violência, e esta é a única ameaça à sociedade presente nesse caso (DWORKIN, 2002, p. 309). Porém os réus de Chicago não eram acusados de violência direta , mas de que seus discursos causavam atos de violência, sejam de apoio, sejam de rejeição. Não é possível prever quanta violência essa lei previna, tampouco se tem uma compreensão clara de como uma manifestação degenera em distúrbios e do papel desempenhado pelo discurso incendiário. Segundo Dworkin, o governo deve sim tentar reduzir os atentados à vida e à propriedade, mas deve reconhecer que qualquer tentativa de localizar e eliminar uma causa de distúrbios é sempre especulativa. O governo deve proibir uma pessoa de expressar-se em troca de um benefício especulativo que pode conseguir por outros meios, ainda que mais onerosos. “Quando os juristas dizem que os direitos devem ser limitados para proteger outros direitos ou para impedir uma catástrofe, eles têm em mente casos em que causa e efeito são relativamente claros” (DWORKIN, 2002, p. 310), exemplo disso é o caso do homem que dá um alarme falso de incêndio em um teatro lotado, porém, em Chicago, as relações causais eram extremamente obscuras.
Da análise dessas considerações, pode-se extrair que, para Dworkin, sempre que o governo restringir direitos fundamentais dos cidadãos sem fundamentos adequados para essa restrição, aqueles poderão dispor, de forma legítima, da desobediência civil como meio de defesa do direito violado.
3.3 Uma Teoria Operacional da desobediência civil
Segundo Dworkin, a desobediência civil seria diferente da atividade criminosa comum, uma vez que esta seria motivada por egoísmo, raiva ou loucura. Também se distinguiria das atividades daqueles que desafiam a autoridade do governo de modo fundamental em busca de ruptura ou reorganização constitucional básicas. Os desobedientes “aceitam a legitimidade do governo e da comunidade; agem mais para confirmar que contestar seu dever como cidadãos” (DWORKIN, 2000, p. 155)
Afirma Dworkin que, para se formar uma teoria da desobediência civil, deve-se evitar o atalho de que as divergências em torno da desobediência civil opõem pessoas virtuosas a más, sábias a ignorantes. Seria inútil uma teoria que dissesse que apenas alguns estão certos ao desobedecer a uma lei injusta, uma teoria que fizesse a justeza da desobediência decorrer da injustiça da lei (DWORKIN, 2000, P. 155-156).
Por isso, propõe uma teoria operacional da desobediência civil, que possa obter a concordância quanto ao que as pessoas devem efetivamente fazer, mesmo que discordem a respeito da justiça da lei. Nessa teoria, os juízos referentes ao ato de desobediência dependem dos tipos de convicções que cada lado envolvido tem (DWORKIN, 2000, p. 156).
Dessa forma, diante de um ato de desobediência civil, a fim de se encontrar, ao menos, preliminarmente, uma concordância entre os envolvidos é necessário fazer duas perguntas: 1) o que é a coisa certa para os que acreditam que uma decisão política é errada ou imoral; e 2) como o governo deve reagir se as pessoas violam a lei quando, dadas as suas convicções, pensam que isso é a coisa certa a fazer, mas a maioria que o governo representa acha que a lei é bem fundada? O governo poderia perguntar-se, conforme a primeira questão: “o que para nós seria correto fazer se tivéssemos as crenças deles?”. A minoria, no espírito da segunda questão, poderia perguntar-se: “o que para nós seria certo fazer se tivéssemos o poder político e as crenças da maioria?” ( DWORKIN, 2000, p. 156).
A análise da primeira pergunta dependerá do tipo de desobediência civil com o qual se trata. Dworkin reconhece três tipos de desobediência civil: a) baseada na integridade, b) baseada na justiça e c) baseada em política. Os dois primeiros tipos envolvem questões de princípio; já o terceiro, julgamento de política.
O primeiro tipo ocorre quando a lei exige que as pessoas façam o que sua consciência absolutamente proíbe (DWORKIN, 2000, p. 157). Seria, por exemplo, o caso do pacifista chamado a lutar em guerra ou do religioso obrigado a realizar um ato contra suas crenças.
No segundo tipo, desobediência baseada na justiça, o objetivo é opor-se a uma política considerada injusta e alterá-la, “uma política de opressão de uma minoria por uma maioria” (DWORKIN, 2000, p. 157). Há um sistema político que discrimina determinado grupo numa sociedade. Tenha-se, por exemplo, o movimento negro norte-americano em busca dos direitos civis.
Já na terceira modalidade, desobediência baseada em política, “violam a lei não porque acreditam que a política a que se opõem é imoral ou injusta, tal como descrito, mas porque acham que é insensata, estúpida e perigosa para a maioria, assim como para qualquer minoria” (DWORKIN, 2000, p. 157). Não objetiva fazer a maioria agir de forma justa, mas fazê-la “recobrar o juízo”. É, por exemplo, o caso do protesto antinuclear.
Todavia, Dworkin reconhece a fraqueza dessa distinção baseada nos diferentes estados de espírito. Um grupo ou movimento não forma uma massa homogênea; certamente inclui pessoas com diferentes crenças e convicções. Além disso, as convicções de uma pessoa poderão não se ajustar precisamente a essas categorias pré-ordenadas (DWORKIN, 2000, p. 159).
Antes de adentrar na análise destas categorias de desobediência civil, ressalta-se que Dworkin, ao admitir uma desobediência baseada em integridade, afasta-se da posição de John Rawls (2202, p. 409), que entende ser a desobediência civil um ato político, do qual se excluem as justificativas morais e religiosas, mas sem negar que princípios baseados em moralidade pessoal e religiosa possam coincidir com reivindicações políticas. Por outro lado, Dworkin parece se afastar também da posição que vê a desobediência civil como um ato essencialmente público e coletivo, motivado por razões políticas. Hannah Arendt (1999, p. 55; 61-63) é um exemplo dessa posição, eis que diferencia o objetor de consciência do contestador civil e não admite que a desobediência civil possa ser praticada individualmente e por razões de consciência, muito menos por questões religiosas, pois o contestador civil não pode ser visto como um indivíduo, mas como membro de um grupo que tem interesses comuns, além da dificuldade prática de saber se o objetor de consciência é realmente inspirado por motivos religiosos sem uma cognição que contestaria a própria religiosidade do ato.
Mas uma desobediência baseada em integridade é coerente com a teoria jurídica de Dworkin, para quem a desobediência civil se encontra atrelada à existência de direitos contra o Estado. Dessa forma não parece haver uma distinção essencial entre a objeção de consciência, vista tradicionalmente como ato individual e a clássica desobediência civil, ato coletivo, mesmo porque, em Dworkin, pode haver imbricações entre questões morais e jurídicas. Por outro lado, as razões que motivam o desobediente (consciência, justiça ou política) são importante na hora de avaliar as estratégias e as consequências do ato; a publicidade e pluralidade de participantes também dependerão do tipo especial de desobediência que se tenha e mente, podendo tratar-se também de uma questão de estratégia, tornando o ato mais eficiente. Mas estes fatos não impedem que a objeção de consciência seja considerada manifestação da desobediência civil.
Pois bem. Tratando-se da desobediência baseada em integridade, Dworkin faz uma ressalva: esse tipo de desobediência não justifica o recurso à violência e ao terrorismo, pois “se a consciência de uma pessoa não lhe permite obedecer à lei, tampouco deve permitir que mata ou fira pessoas inocentes” (DWORKIN, 2000, p. 159).
Em seguida, analisa duas outras ressalvas: a primeira é a de que o cidadão, antes de desobedecer à lei, deve esgotar os caminhos institucionais que oferecem alguma perspectiva para reverter a situação a que ele se opõe; a segunda – uma cláusula consequencialista – é a de que a decisão final sobre desobedecer ou não deve estar submetida à avaliação das consequências de tal ato, de modo que essa cláusula desaconselharia a desobediência caso esse ato viesse a causar um mal maior do que a aceitação da lei, ainda que injusta (DWORKIN, 2000, p. 159-160).
Entretanto, no caso da desobediência baseada em integridade essas duas ressalvas devem ser rejeitadas. A primeira, porque essas situações são tipicamente casos de urgência. Por exemplo, o estudante a quem se exige que saúde a bandeira sofre uma perda definitiva ao desobedecer e não lhe será muito proveitoso que a lei seja modificada logo depois. Também se deve rejeitar a cláusula consequencialista, pois talvez seja possível admitir que os princípios em questão tenham precedência sobre as avaliações consequenciais. Talvez, diz Dworkin, uma pessoa tenha uma prerrogativa moral de recusar-se a fazer o mal mesmo quando sabem que mais mal será feito (DWORKIN, 2000, p. 159-160).
Considerando agora a desobediência baseada na justiça, conforme Dworkin, é preciso admitir as duas ressalvas rejeitadas no caso anterior. As pessoas devem exaurir o processo político normal, por meios constitucionais, e só utilizarem a desobediência civil quando esses meios não oferecerem esperança de sucesso na reversão do programa questionado. Há, no entanto, um problema central nessa tese, saber quando os meios institucionais estariam esgotados, principalmente quando se trata de um sistema político viciado. Além disso, pode-se entender a possibilidade de reversão institucional de modo demasiado formal, acreditando que, ainda que distante, ela ainda seria possível, vez que os meios institucionais não estariam formalmente fechados, o que minimizaria a possibilidade de desobediência. Quanto à condição consequencialista, a mesma é aceitável, pois existe a possibilidade de que a desobediência possa favorecer a política questionada (DWORKIN, 2000, p. 160).
Existe, ainda, outra importante diferença entre os dois primeiros tipos de desobediência. A desobediência baseada em integridade é defensiva: o objetivo é impedir que o agente faça algo que sua consciência proíbe. A baseada em justiça é instrumental e estratégica: pretende alterar uma política opressora. Assim, esta pode usar duas estratégias principais para alcançar seus objetivos. A primeira é persuasiva e consiste em obrigar a maioria a ouvir os argumentos contrários a seu programa político, a fim de fazê-la mudar de ideia. A segunda estratégia é não persuasiva e está em praticar atos que elevariam o custo de dar prosseguimento à situação questionada, como interromper o tráfego, bloquear importações, ocupar órgão públicos, etc (DWORKIN, 2000, p. 161).
As estratégias persuasivas, segundo Dworkin, aperfeiçoam a justificativa para a desobediência baseada na justiça quando as condições são favoráveis ao seu sucesso. Por outro lado, para o uso das estratégias não persuasivas, o autor impõe uma série de condições, que na sua óptica, são essenciais:
Se alguém acredita que um determinado programa oficial é profundamente injusto, se o processo político não oferece nenhuma esperança realista de reverter o programa em breve, se não existe nenhuma possibilidade de desobediência civil persuasiva eficaz, se estão disponíveis técnicas não persuasivas não violenta com razoável chance de sucesso, se essas técnicas não ameaçam ser contraproducentes, então essa pessoa faz a coisa certa, dada a sua convicção, quando usa esses meios não persuasivos (DWORKIN, 2000, p. 162).
Por fim, a desobediência baseada em política. Ocorre quando seus agentes crêem que a política a que se opõem é ruim para todos, não só para a minoria. Nela a distinção entre estratégias persuasivas e não persuasivas é ainda mais importante. Aqui é mais vantajoso o uso de estratégias persuasivas, nas quais os desobedientes aceitam que a vontade da maioria deva prevalecer e pedem apenas, por meio de uma ressalva ou exceção ao princípio da maioria, que esta seja forçada a considerar argumentos que poderiam fazê-la mudar de ideia, ainda que não pareça, de início, disposta a isso (DWORKIN, 2000, p.163). Por outro lado parece problemático o uso de estratégias não persuasivas vez que carecem daquela explicação. Além disso, para fazer a maioria desistir sem persuadi-la deveria recorrer-se a alguma forma de paternalismo ou elitismo, o que atingiria o princípio do governo da maioria (DWORKIN, 2000, p. 164). Ademais, não se deve esquecer que tais estratégias podem atuar em desfavor dos desobedientes, eis quer muitas pessoas poderão posicionar-se ao lado da política contestada, pelo simples fato de entender que mudar essa política significaria sucumbir à chantagem civil (DWORKIN, 2000, p. 165).
Considere-se agora a segunda pergunta: como o Estado deve reagir aos casos de desobediência civil? Dworkin (2000, p. 168) afirma que se devem evitar dois erros, quais sejam, o de que a pessoa que infringiu a lei nunca deve ser punida e o de que ela sempre deve ser punida sob o argumento de que a lei é a lei e deve ser cumprida.
Nesse caso, Dworkin recorre a um argumento utilitarista que condicione a punição justa: “ninguém deve ser punido, a menos que a punição ocasione algum bem geral, a longo prazo, considerados todos os aspectos envolvidos” Todavia, ainda que se considere que o agente deva ser punido, os juristas deveriam levar em conta como causa de abrandamento da pena o fato de os motivos do ato desobediente serem melhores que os do ato criminoso comum (DWORKIN,2000, p. 169).
Dworkin manifesta posição contrária àquela que entende ser falsa ou incompleta a desobediência civil sem a punição. Mas, em certos casos, a punição pode ser parte da estratégia não persuasiva, quando se trata de desobediência baseada em justiça ou na política, obrigando a comunidade a perceber que terá que prender mais pessoas se continuar com determinada política (DWORKIN, 2000, p. 169). Não obstante, é melhor para todos que o ato alcance seus objetivos sem punição.
O autor analisa um caso concreto, o dos que violavam a lei do recrutamento militar, durante a Guerra do Vietnã. Aqueles que defendiam a punição dos que infringiram a lei argumentavam dizendo que a sociedade não funcionariam se todos desobedecessem às leis das quais discordassem ou que lhes fossem desvantajosas. Se o governo tolerasse os desobedientes, permitiria que eles desfrutassem dos benefícios de todos os outros que respeitam a lei, sem assumir os encargos, como o do recrutamento (DWORKIN, 2002, p. 317).
No entanto, Dworkin identifica uma falha nesse argumento, a de que ele pressupõe que os desobedientes sabem que estão infringindo uma lei válida e que o privilégio que reivindicam é o de desobedecê-la. Como é sabido, uma lei pode ser inválida por ser inconstitucional. E a questão não pode ser simplesmente posta nestes termos: se a lei não é válida, não se cometeu crime, portanto, a sociedade não pode punir; se a lei é válida, cometeu-se um crime, logo, os desobedientes devem ser punidos. Isso oculta o fato de que a validade da lei pode ser duvidosa. Pode haver discordância entre autoridades administrativas e juízes, de um lado, e os dissidentes do outro acerca da constitucionalidade da lei (DWORKIN, 2002, p. 318).
Para Dworkin, a Constituição incorpora valores morais. Assim, qualquer lei que pareça comprometer essa moral política convencional, levanta questões constitucionais; se o comprometimento for grave, as dúvidas constitucionais também o serão.
No caso da lei do recrutamento militar foram levantadas muitas teses que defendiam a inconstitucionalidade da lei. A Suprema Corte norte-americana, chamada a manifestar acerca de tais argumentos, rejeitou alguns e recusou-se a considerar outros sob o fundamento de que se tratava de argumentos políticos. Todavia os argumentos pela inconstitucionalidade eram plausíveis e convincentes, se se aceitasse esse fato, não haveria como não reconhecer a inconstitucionalidade da mencionada lei (DWORKIN, 2002, p. 321).
Diante disso, não há como pressupor que os dissidentes reivindicavam o direito de desobedecer a leis válidas. Só é possível decidir sobre sua punição quando se responder às questões que se seguem: “o que deve um cidadão fazer quando a lei não for clara e ele pensar que ela permite algo que, na opinião de outros, não é permitido?” não se trata de perguntar o que é juridicamente adequado fazer, mas de qual deve ser seu comportamento enquanto cidadão, de considerar o que seria “seguir as regras do jogo” (DWORKIN, 2002, p. 319).
Para essa pergunta, Dworkin (2002, p. 318) aponta três possibilidades de resposta:
1) Sendo duvidosa a lei, quanto a permitir que um indivíduo faça o que quer, ele deve pressupor que a lei proíbe o que quer fazer e, portanto, deve obedecer às ordens das autoridades responsáveis pela aplicação da mesma, enquanto utiliza, se puder, o processo político para modificá-la.
2) Ele pode seguir seu próprio discernimento, se pensar que o argumento a favor da permissão é mais forte que o a favor da proibição, mas só até o ponto em que uma instituição, como um tribunal, decida o contrário em um caso concreto, devendo submeter-se a ela, ainda que a considere errada. A questão é saber se o indivíduo terá sua conduta bloqueada pela decisão de qualquer tribunal ou instituição ou apenas pela instância suprema.
2) Ele poderá orientar-se segundo seu próprio discernimento, mesmo após uma decisão em contrário tomada pelo mais alto tribunal competente. Todavia, deve considerar a decisão contrária de qualquer tribunal ao formar seu juízo sobre o que a lei exige, pois no direito americano, a doutrina do precedente permite que uma decisão judicial “modifique” o direito. Ela atribui pesos distintos a decisões de diferentes tribunais, mas sem torná-las definitivas, afinal, há a possibilidade de a Suprema Corte rever seus julgados, e de os juízes que a compõem divergirem entre si. Diz Dworkin (2002, p. 323) que “não se pode pressupor que a Constituição é sempre o que a Suprema Corte diz que é”.
Dworkin afasta o primeiro desses modelos. Para saber se uma determinada regra terá consequências indesejáveis ou se tais consequências terão ramificações amplas ou indesejáveis, ou ainda, saber se uma solução particular transgride princípios de justiça ou de lealdade respeitados pela sociedade, é conveniente, antes de tomar uma decisão a respeito, saber o que ocorre quando as pessoas procedem de acordo com essa regra. Testa-se, então, a reação da comunidade (DWORKIN, 2002, p. 325).
Seguindo o primeiro modelo, a sociedade perderia a vantagem desse teste. Ao agir como se a lei fosse válida, perder-se-ia o principal instrumento para questioná-la a partir de fundamentos morais. Por outro lado, ao seguir seu próprio discernimento e, ao justificar sua ação, o cidadão estará contribuindo para criar a melhor decisão judicial possível. Uma vez tomada a decisão, diz Dworkin, não se esgota o valor do exemplo do cidadão, vez que aquela ainda será criticada pelos praticantes do direito e a interpretação dissidente do cidadão pode ser muito proveitosa para essa crítica (DWORKIN, 2002, p. 325-6).
Dworkin também rebate o segundo modelo. Alega que tal raciocínio desconsidera o fato de que a própria suprema Corte pode rever suas decisões. Um exemplo é que, em 1940, a Suprema Corte decidiu pela constitucionalidade de uma lei do estado de West Virginia que exigia que os estudantes saudassem a bandeira; porém, em 1943, decidiu que a lei era inconstitucional. Isso porque em 1941 e 1942 as pessoas continuaram desobedecendo à lei, pois achavam a exigência desarrazoada. Quando a Suprema Corte decidiu que os desobedientes estavam certos, não sustentou que fora crime não saudar a bandeira depois da primeira decisão e que, após a segunda, o fato deixara de ser crime (DWORKIN, 2002, p. 327). Como os tribunais não possuem amplo poder discricionário, a Suprema Corte, no caso, não criou nenhum direito novo; limitou-se a garantir a liberdade de consciência. De outra parte, não se diga que os dissidentes deveriam ter acolhido a primeira decisão e lutar junto ao legislativo para mudar a lei, eis que, no caso, tratava-se de desobediência civil baseada na integridade, modalidade que não admite esse tipo de ressalva. Ademais, se tivessem acatado a primeira decisão teriam sofrido injúria irreparável e talvez, não teriam conseguido mudar a lei (DWORKIN, 2002, p. 327).
Os mesmo motivos que fundamentam a rejeição do primeiro modelos aplicam-se também ao segundo. O autor sustenta que
Se não contássemos com a pressão exercida pelo dissenso, não teríamos as declarações dramáticas e intensas que ocorrem quando percebemos como erro uma decisão de um tribunal contra um dissidente, que certamente são pertinentes para saber se se tratava da decisão correta. Aumentaríamos a probabilidade de sermos governados por regras que ofendem os princípios aos quais pretendemos servir (DWORKIN, 2002, p. 327).
Resta, assim, a o terceiro modelo, o qual Dworkin vê como a formulação mais equitativa do dever social de um cidadão. Diz o autor que “a lealdade do cidadão é para com a lei e não para com algum ponto de vista particular que alguém tenha sobre a natureza do direito” (DWORKIN, 2002, p. 328), ele não estará se comportando injustamente ao agir segundo sua própria concepção, ponderada e razoável, acerca do que a lei requer.
Nesse caso, sustenta Dworkin que o Estado tem uma responsabilidade especial de tentar protegê-lo e amenizar sua condição desfavorável, devendo procurar uma solução conciliatória, que não cause grandes danos a outras políticas. Todavia, como já foi dito, não pode adotar a ideia de que deve sempre processá-lo ou a de nunca deve fazê-lo. Se adotar a primeira dessas posições o Estado perderá a vantagem de utilizar o terceiro modelo, qual seja “se o Estado nunca processasse, os tribunais não poderiam agir com base na experiência e nos argumentos gerados pela dissidência” (DWORKIN, 2002, p. 330); adotando a segunda posição, não estará distinguindo, na hora de aplicar a lei, entre o homem que se comporta conforme seu próprio discernimento acerca de uma lei passível de dúvidas e o criminoso comum (DWORKIN, 2002, p. 330).
4. CONCLUSÃO
A desobediência civil aperfeiçoa o sistema democrático e a qualidade das decisões jurídicas e políticas, tornando-se um dos mecanismos utilizados para afastar o perigo de que os cidadãos sejam governados por normas contrárias aos fundamentos da Constituição. Pode-se dizer, com Habermas, que o “Estado democrático de direito que está seguro de si mesmo considera que a desobediência civil é um componente normal de sua cultura política, precisamente porque é necessária” (HABERMAS, 2000, p.54).
Indo mais além, Dworkin defende que a desobediência civil é uma característica dos direitos contra o Estado, pelo que é impossível negá-la sem negar esses direitos. Os direitos individuais só são autênticos se triunfam perante a maioria. Sendo assim, um Estado que diz reconhecê-los, isto é, que leve os direitos a sério, deverá reconhecer também a legitimidade da desobediência civil quando os direitos estiverem ameaçados pelo próprio Estado, ainda que em nome de um objetivo coletivo.
Nas sociedades que reconhecem direitos, a desobediência civil serve de instrumento da cidadania ao permitir a participação dos cidadãos nas tomadas das decisões políticas, principalmente quando se julga que essas decisões são prejudiciais a todos; mesmo porque, nessas ocasiões, muitas vezes, os tradicionais métodos de participação política quedam-se inócuos.
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