"Atentado à vida e à liberdade individual de particulares, praticado por agentes públicos armados – incluindo tortura, prisão ilegal e "justiciamento" –, afora repercussões nas esferas penal, civil e disciplinar, pode configurar improbidade administrativa, porque, além de atingir a pessoa-vítima, alcança, simultaneamente, interesses caros à Administração em geral, às instituições de segurança pública em especial, e ao próprio Estado Democrático de Direito. (Voto do Exmo. Min. Herman Benjamin no REsp 1.177.910-SE - grifei)"
O Abuso de Autoridade, nos moldes da lei n° 4.898/65, bem como a prática do crime de Tortura (lei n° 9.455/97), perpetrado por policial no exercício de sua atividade constitui, além da tipificação penal, Ato de Improbidade Administrativa que atenta contra os princípios da administração pública, nos termos do art. 11 da lei n° 8.429/92. Esse é o teor dos julgados em tela.
Vamos explicar o que se diz.
Constitui Improbidade Administrativa que atenta contra os princípios da administração pública, em humilde síntese, a conduta desmoralizada, de má qualidade, lesiva ou advinda de malícia do agente público ofensiva aos princípios constitucionais estampados no art. 37 da Constituição Federal ou aos princípios implicitamente definidos, que regem a Administração Pública, independentemente da ocorrência de lesão ao erário ou de enriquecimento ilícito. A tipificação e suas sanções - de natureza civil - encontra-se ao longo da disposições da Lei 8.429/1992.
Igualmente, constitui ato de improbidade administrativa a conduta que importe em enriquecimento ilícito – art. 9° da lei 8.429/1992, bem como, as condutas, ação ou omissão, dolosa ou culposa, que causa lesão ao erário, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres – tipificadas no art. 10 da lei de regência.
Portanto, o art. 9º define atos que importam enriquecimento ilícito do agente, o art. 10 os atos lesivos ao erário enquanto os atos que atentam contra os princípios da Administração Pública estão tipificados no art. 11.
Nas três modalidades, o legislador adotou a técnica de descrever uma conduta genérica no caput e, nos incisos, situações exemplificadoras da conduta genérica estabelecida.
Pois bem.
Delimitando o estudo, percebe-se que dentre as condutas ímprobas o art. o art. 11, inciso I, tipifica como improbidade prática de ato visando a fim proibido em lei ou regulamento. In verbis:
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;
Deste lume, indagou-se se a conduta de policiais que praticam atos de abuso de autoridade incidiriam na esfera de abrangência da norma protetora da moralidade.
Eis o cerne da questão.
Segundo a doutrina, para a caracterização do ato de improbidade previsto no art. 11 - atenta contra os princípios da administração pública - é necessario que a conduta do agente público seja dolosa[i], pois o ato de improbidade somente se aperfeiçoa mediante a vontade de praticar a conduta objetivamente proibida pela ordem jurídica, independentemente de uma finalidade especial.
Ao mesmo tempo, deverá estar presente uma relação de causalidade entre a ação ou omissão funcional do agente público e a ofensa a princípio da Administração Pública.
Mas a questão não é tão simples.
Nos dois fatos postos a apreciação o tribunal a quo havia compreendido que o eventual abuso praticado por policiais contra particular não autoriza o ajuizamento da ação civil pública por improbidade administrativa, pois o ofendido, nestas relações, seria apenas o particular, sujeito passivo do crime, em tese, praticado. Posição adotada pelo STJ em julgado proferido em 2015, no qual a Corte decidiu que "Não ensejam o reconhecimento de ato de improbidade administrativa eventuais abusos perpetrados por agentes públicos durante abordagem policial, caso o ofendido pela conduta seja particular que não estava no exercício de função pública"[ii].
Num dos fatos circundados, policiais detiveram um suspeito de furto e conduziram até a Delegacia de Polícia, onde foi indagado a respeito de um furto ocorrido naquela circunscrição policial e onde permaneceu até sem que lhe fosse dada a oportunidade de entrar em contato com qualquer dos membros de sua família. Embora não confessassem o furto, os detidos foram presos em flagrante de delito pela contravenção, hoje revogada, de vadiagem.
No segundo fato, o Ministério Público do Estado do Sergipe impetrou Ação Civil Pública em face de policiais por terem submetido alguns presos que se encontravam custodiados na delegacia local à tortura[iii], conduta que seria ímproba para fins da aplicação da lei 8.429/1992. A questão da incidência ou não da norma sobre atos de tortura foi realizada de forma abstrata, ou seja, sem adentrar no mérito do fato posto e foi levada ao STJ por meio de Recurso Especial em Agravo de Instrumento interposto contra o recebimento da petição inicial pelo Juiz de Primeiro Grau.
Observa-se assim, uma alteração no entendimento adotado: afastou-se a posição anterior e adotou-se a compreensão que o particular, neste casos, é uma vítima imediata da ilegalidade empregada e o Estado vítima mediata da conduta. Portanto, mesmo havendo agressão a bens jurídicos particulares haverá a agressão concomitantemente do interesse público, pois a conduta ilícita resulta em obrigação de indenizar os ofendidos ao Estado.
Mas não é só.
Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de legalidade, eficiência e lealdade às instituições. Este, dever que inspira a proteção da legitimidade e imagem da administração frente a sociedade. Legitimidade corrompida pela prática criminosa de seus agentes.
A deslealdade traduz a ideia da quebra de confiança entre administrador e administrados, na medida em que o agente público não dedica a devida prudência e cuidado no trato de interesses que não lhe pertencem[iv]. Vale lembrar que toda prova obtida mediamente ilegalidade será fatalmente ilícita.
Assim, ofende-se, ao mesmo tempo, o princípio da eficiência.
Desta forma, em apertada síntese, podemos evidenciar que a prática de abuso de autoridade ou tortura por agentes públicos, além das repercussões costumeiras, configura também ato de improbidade administrativa, porque, além de atingir a o sujeito passivo do crime, alcança concomitantemente interesses do Estado.
Notas
[i] AgRg no REsp 1122474/PR, 1.ª Turma, rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 02.02.2011. REsp 1.165.505/SP, 2.ª Turma, rel. Min. Eliana Calmon, j. 22.06.2010; REsp 765.212/AC, 2.ª Turma, rel. Min. Herman Benjamin, j. 02.03.2010; REsp 1.140.544/MG, 2.ª Turma, rel. Min. Eliana Calmon, j. 15.06.2010; e AgRg no AREsp 73.968/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 02.10.2012.
[ii] STJ. 1ª Turma. REsp 1.558.038-PE, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 27/10/2015.
[iii] Recurso Especial nº 1.177.910 - SE (2010/0009495-0), Relatório, pg. 03, disponível em https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1435178&num_registro=201000094950&data=20160217&formato=PDF.
[iv] OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da Improbidade Administrativa. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo, 2007.