A Constituição Federal de 1988 é tida como a mãe de toda a legislação brasileira. E é isso mesmo. Todo nosso ordenamento jurídico, de leis complementares a decretos regulamentadores, de leis federais a leis municipais, enfim, toda a legislação vigente deve respeito e obediência ao disposto na Constituição. É a chamada supremacia da Constituição da República.
Nas palavras de José Afonso da Silva:
"A Constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma de Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do Poder, o estabelecimento de seus órgãos e os limites de sua atuação. Em síntese, a Constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado".
Destarte, qualquer lei que ouse violar o texto da Constituição será inevitavelmente banida de nosso ordenamento jurídico (lei natimorta). Tanto pelo controle difuso de constitucionalidade exercido por todos os juízes, assim como pela via da ação direta de inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal, a lei conflitante com o texto da Constituição será expurgada de nosso Direito pátrio.
Igualmente, a omissão de qualquer dos Poderes e instituições da República que importe em inadimplemento do comando imperativo da Constituição ou negligencie a efetividade de determinada norma constitucional, também importará na afronta a essa Lei Maior. É a chamada inconstitucionalidade por omissão.
Vejamos:
“Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO
Descrição do Verbete: ADO é a ação cabível para tornar efetiva norma constitucional em razão de omissão de qualquer dos Poderes ou de órgão administrativo. Como a Constituição Federal possui grande amplitude de temas, algumas normas constitucionais necessitam de leis que a regulamentem. A ausência de lei regulamentadora faz com que o dispositivo presente na Constituição fique sem produzir efeitos. A ADO tem o objetivo de provocar o Judiciário para que seja reconhecida a demora na produção da norma regulamentadora. Caso a demora seja de algum dos Poderes, este será cientificado de que a norma precisa ser elaborada. Se for atribuída a um órgão administrativo, o Supremo determinará a elaboração da norma em até 30 dias” (http://www.stf.jus.br/portal/glossario/).
Não existe um quilate ou impressão diferente entre esses dois tipos de vícios que atentam contra a Constituição. Tanto a inconstitucionalidade direta (material ou formal), assim como a inconstitucionalidade por omissão, constituem-se em grave atentado ao Estado Democrático de Direito.
Pois bem. Dedicando um capítulo inteiro ao meio ambiente, proclama a Constituição Federal:
“CAPÍTULO VI
DO MEIO AMBIENTE
Art. 225. (...)
(...)
§1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
(...)
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
Como se vê, o legislador constituinte originário prescreveu que o Poder Público deve proteger a fauna. E, ainda, também deve o Poder Público, em todas as suas esferas, zelar para que os animais não sejam submetidos a qualquer ato de crueldade, por ação ou omissão de quem quer que seja.
O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, em várias oportunidades manifestou-se expressamente a respeito deste Art. 225, §1º, Inciso VII:
"Lei 7.380/1998, do Estado do Rio Grande do Norte. Atividades esportivas com aves das raças combatentes. ‘Rinhas’ ou ‘Brigas de galo’. Regulamentação. Inadmissibilidade. Meio ambiente. Animais. Submissão a tratamento cruel. Ofensa ao art. 225, § 1º, VII, da CF. (...) É inconstitucional a lei estadual que autorize e regulamente, sob título de práticas ou atividades esportivas com aves de raças ditas combatentes, as chamadas ‘rinhas’ ou ‘brigas de galo’." (ADI 3.776, rel. min. Cezar Peluso, julgamento em 14-6-2007, Plenário, DJ de 29-6-2007.) No mesmo sentido: ADI 1.856, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 26-5-2011, Plenário, DJE de 14-10-2011.
"A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do art. 225 da CF, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado ‘farra do boi’." (RE 153.531, rel. p/ o ac. min. Marco Aurélio, julgamento em 3-6-1997, Segunda Turma, DJ de 13-3-1998.) Vide: ADI 1.856, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 26-5-2011, Plenário, DJE de 14-10-2011.
Tanto do comando normativo expresso do texto constitucional vigente, assim como ao encontro da autoridade das decisões de seu guardião maior, a Suprema Corte, uma única orientação se extrai ao seu intérprete: animal não é coisa.
Peca o Código Civil brasileiro ao tratar animal como coisa em seu sentido jurídico. A coisa, o bem móvel ou imóvel, é imune à crueldade, isenta da necessidade de proteção estatal e da sociedade contra o sofrimento ou outro ato de opressão.
Foi infeliz o legislador ordinário ao prever apenas dois regimes para regulamentar as relações jurídicas no Código Civil: o de bens e o de pessoas. Olvidando a supremacia da Constituição, a quem toda a legislação infraconstitucional não pode ousar destoar.
Esse flagrante vacilo do Congresso Nacional caracteriza, a toda evidência, a inconstitucionalidade por omissão dessa Casa Legislativa, privando o Art. 225, §1º, Inciso VII, da Constituição Federal de todo e qualquer efeito.
Curiosamente, a Assembleia Nacional Constituinte instalada em 1987 esteve anos-luz à frente do legislador ordinário de 2002. Com quinze anos de antecedência o legislador constituinte originário reconhecia os animais como “seres sencientes”, ou seja, seres dotados de sensibilidade, merecedores de tutela estatal generalizada contra atos de crueldade.
O reprovável cochilo do Congresso Nacional, caracterizador da inconstitucionalidade por omissão do Poder Legislativo, não é refreado ou absolvido pela entrada em vigor do novo Código Civil. O velho Código Civil de 1916, no que interessa, não foi recepcionado pelo Art. 225, §1º, Inciso VII, da Constituição. O atual Código Civil apenas denota que o legislador ordinário se omite em dar execução a uma norma constitucional cogente, ao não reconhecer esse Diploma a existência e tutela dos “seres sencientes”.
Falando duramente, no plano cível, o Código Civil iguala atear fogo, estrangular ou causar aleijão a um animal, como a praticar esses mesmos atos de crueldade a uma mesa ou a uma cadeira. O que, a olhos vistos, não foi e nem é a vontade da Constituição Federal. Tanto que, no plano penal, regulamentando parte do Art. 225, §1º, Inciso VII, da Constituição, a Lei nº 9.605, de 1998, comina pena de prisão a todo aquele que praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais.
Em que ponto o Congresso Nacional acha que o Art. 225, §1º, Inciso VII, da Constituição Federal, confere apenas tutela penal aos animais, a justificar a sua injustificável mora legislativa? A incumbência do Poder Público é de proteger a fauna, de modo que os animais não sejam submetidos a crueldade. Não há determinação para que o Poder Público divorcie seu poder-dever do Direito Civil, muito menos para rebaixar os animais à categoria de “coisa”.
E para o drama dos animais, o Brasil assiste com admiração a eclosão da legislação estrangeira que reconhece agora os animais como “seres sencientes”, quando desde 1987 nosso legislador constituinte originário já havia cravado no texto da Lei Maior a classificação dos animais como sujeitos de direito, passíveis de tutela estatal. Aplaudimos, assim, o que é de fora e quando é de fora, mesmo que seja algo já existente aqui.
Felizmente, o drama dos animais parece chegar ao seu fim. Vozes de renome ecoam no Congresso Nacional apresentando propostas legislativas para remediar a inconstitucionalidade por omissão que envergonha e mancha a imagem do Brasil na ordem jurídica internacional entre os países mais civilizados.
O Senador Antônio Anastasia apresentou projeto de lei (PLS 351/2015) que altera o Código Civil para determinar que os animais não sejam considerados como coisas. A proposta caminha a passos largos no Congresso Nacional, já aprovada no Senado, sendo encaminhada agora para a Câmara dos Deputados.
No Parecer aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, consignou seu Relator, o Senador Álvaro Dias:
“No que concerne ao mérito da proposta, podemos afirmar que, com o advento da Constituição Federal de 1988, o respeito ao meio ambiente foi elevado ao status de direito fundamental, em seu art. 225. A proteção e defesa dos animais, bem como a vedação à crueldade, são expressamente previstas em seu § 1º, inciso VII, ao prescrever como incumbência do Poder Público a proteção da fauna e da flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais a crueldade. Importa destacar, do capítulo constitucional que trata da proteção ambiental, o § 3º do art. 225, por instituir a responsabilidade civil, penal e administrativa às condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente
(...) Há, inegavelmente, um dever da coletividade e do Poder Público em defender e proteger os animais, haja vista os dispositivos constitucionais que vedam a crueldade contra estes seres vivos, e o de ampliação dessas garantias constitucionais”.
A matéria encontra-se na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados (07/06/2016). Designado Relator, o Deputado José Silva Soares.
Cumpre salientar que o projeto de lei aludido põe fim à inconstitucionalidade por omissão do Congresso Nacional, ao reconhecer os animais como “seres sencientes” – e não como coisas. Por isso, a matéria deve tramitar em regime de prioridade na Câmara, a bem do disposto no Art. 225, §1º, Inciso VII, da Constituição, que reclama máxima efetividade na tutela legislativa dos animais.