Movimentos sociais contemporâneos.

A atuação de líderes negros do centro comunitário “Bom Jesus”, na busca de conquistas sociais para as famílias de afro-descendentes no bairro da Terra Firme

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Resumo:


  • O artigo aborda a atuação de líderes negros do Centro Comunitário “Bom Jesus” na busca por melhorias nas condições de vida das famílias afro-descendentes do bairro da Terra Firme, destacando a importância dessas lideranças na luta pela legitimação do negro na sociedade.

  • As lideranças negras do Centro Comunitário “Bom Jesus” atuam na luta pela posse da terra, buscando garantir direitos constitucionais conquistados pela sociedade, mas historicamente negados a determinados grupos sociais, em especial os negros.

  • O trabalho das lideranças do Centro Comunitário “Bom Jesus” inclui a busca por políticas públicas efetivas, ações afirmativas e projetos de inclusão social para combater a marginalização, a violência e a falta de oportunidades enfrentadas pelas famílias afro-descendentes na Terra Firme.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

2. “QUEM MORRE CALADO É SAPO DEBAIXO DO PÉ DO BOI”: AS LIDERANÇAS NEGRAS DO “BOM JESUS” NA BUSCA POR CIDADANIA PARA AS FAMÍLIAS DE AFRO-DESCENDENTES DA TERRA FIRME.

A noção de cidadania permeou os inúmeros processos históricos vivenciados pela humanidade. Durante os séculos XVII e XVIII a concepção do cidadão institucionalizado adquiriu diferentes visões, estas estavam vinculadas ao momento político/social experimentado por cada país, assim como, a definição deste conceito segundo os interesses dos grupos dirigentes hora em voga no poder; para os teóricos do liberalismo, o ser cidadão representava o domínio de posses materiais acumuladas por um indivíduo, tendo como referencial a propriedade privada. Dessa forma, surge a idéia do cidadão proprietário em contraposição ao não-cidadão, legitimando a construção do indivíduo burguês dentro do Estado, como fica exemplificado na Declaração dos Direitos do Homem:

A Declaração dos Direitos do Homem de 1789 firma a propriedade como direito supremo. E quem era o proprietário? Era o cidadão. E quem era o cidadão? Era o homem suficientemente esclarecido para escolher seus representantes, com conhecimento de causa, independente das pressões e era ainda, acima de tudo, um proprietário (de terras e imóveis) (GOHN, 2005: 11).

Neste sentido, os direitos naturais do homem estavam assegurados – liberdade, igualdade e direito à propriedade – resguardando os princípios fundamentais da sociedade burguesa. Haja vista essa noção de cidadania, os grupos que não comportavam tais atributos estavam marginalizados socialmente; dessa forma, a apropriação da concepção de cidadania pela burguesia perpassa até os dias atuais, com a organização de uma sociedade baseada em diferenciações sociais acentuadas, principalmente para as famílias de afro-descendentes relegadas às periferias dos grandes centros urbanos do Brasil, vivenciando situações de extrema pobreza e abandono estatal.

A atuação das lideranças comunitárias negras do centro comunitário “Bom Jesus” junto aos órgãos governamentais e a imprensa, deixa claro a procura pela aquisição dos princípios norteadores contidos na Declaração dos Direitos do Homem de 1789; assim, a busca pela posse da propriedade é uma luta constante dessas lideranças comunitárias dentro do bairro; sendo o direito à propriedade privada uma das bases constituidoras da sociedade burguesa, ou seja, uma maneira de escamotear uma dita cidadania criada e direcionada para esta própria classe. Essas noções ideológicas de disparidades sociais, já foram abordadas por Karl Marx em sua obra O Capital,

A ideologia é, assim, uma consciência equivocada, falsa, da realidade. Desde logo, porque os ideólogos acreditam que as idéias modelam a vida material, concreta, dos homens, quando se dá o contrário: de maneira mistificada, fantasmagórica, enviesada, as ideologias expressam situações e interesses radicados nas relações materiais, de caráter econômico, que os homens, agrupados em classes sociais, estabelecem entre si. Não são, portanto, a idéia Absoluta, o Espírito, a Consciência Crítica, os conceitos de Liberdade e Justiça, que movem e transformam as sociedades. Os fatores dinâmicos das transformações sociais devem ser buscados no desenvolvimento das forças produtivas e nas relações que os homens são compelidos a estabelecer entre si ao empregar as forças produtivas por eles acumuladas a fim de satisfazer suas necessidades materiais. (MARX apud: SINGER, 1996: 11-12)

A ideologia burguesa exclui e expropria diversos segmentos sociais, entre esses os afro-descendentes que inserissem neste contexto atual de luta, pois historicamente foram interditados; desta forma, o bairro da Terra Firme comporta em sua constituição, elevada população negra que “sente na pele” a política burguesa excludente e direcionada para minorias elitizadas dos centros urbanos. As práticas sociais das lideranças negras do “Bom Jesus” buscam a amenização desses problemas, sendo que a marginalização e o aumento da violência são temas constantes entre os membros do centro, como foi relatado pela líder comunitária negra E. R. de S.

O nosso bairro, ele é muito discriminado e nos sofremos isso na pela, quando nos chegamos lá fora para realizar uma entrevista no mercado de trabalho, eles te acham divina e maravilhosa, você consegue falar bem, você consegue passar a sua mensagem, mas no momento em que eles vão escolher ai fica aquilo lá sabe? Ai você se pergunta: porque eu fui tão bem na minha entrevista, mas não consegui a vaga? Porque na realizada o bairro da Terra Firme, como e chamado atualmente que é o bairro do Montese, ele é discriminado lá fora, basta você falar moro na Terra Firme as pessoas já te tratam com uma certa indiferença, elas procuram ser gentis com você, mas pra você que já tem uma visão, você consegue perceber que no fundo no fundo, elas não te dão aquele voto de confiança e é isso que nos queremos dentro do bairro da Terra Firme junto com o Centro Comunitário, então é essa a nossa luta aqui, melhoria.[8]

A líder comunitária E. R. de S., chama atenção para o estereotipo de violência que comporta o bairro da Terra Firme, por conseguinte os seus habitantes, sendo a área constituída atualmente por parcela significativa de afro-descendentes, estes então passam a serem rotulados como elementos socialmente marginalizados e “perigosos”, por outros segmentos da sociedade. Segundo Oliveira (2004), no Brasil a discriminação indireta é muitas vezes difícil de ser identificada até mesmo pelas pessoas que a sofrem. Neste sentido, o status quo existente ao longo da história brasileira reforça em muitos casos estas situações vivenciadas pelos afro-descendentes; as lideranças comunitárias do “Bom Jesus” atuam como implementadoras desta mudança, devendo ocorrer uma alteração nas posturas equivocadas de análises acerca das comunidades estabelecidas na Terra Firme; desta forma, tenta-se demonstrar que a questão da violência no bairro é algo mais abrangente que envolve políticas públicas concretas e direcionadas realmente para o local, como foi defendido pela líder comunitária negra M. F. A. G.,

Está faltando emprego e renda, saneamento e educação, porque sem emprego e renda não adianta educação porque não vai ficar em pé, não tem como absorver o que vai aprender na educação; e o saneamento faz parte da vida, da saúde, bem-estar, vive morrendo gente direto de leptospirose (...) estão fazendo farra com o dinheiro público, quando podiam estar investindo aqui na área. É essa política pública que a gente quer, a gente quer de seja confiscado o dinheiro dos ladrões e aplicado em política pública. Emprego e renda não tem! Não tem emprego para o povo, nos estamos vivendo uma situação caótica, é barbárie! Se você sair por ai o cara mete a mão no teu bolso e vai levando o que tem, vai levando, leva mesmo, os caras não tem nada, tão “urando”. Ai usam droga, cabeça vazia sem ocupação, a mãe não segura a “rédia”, o salário mínimo que ela ganha não dá nem pra ela, ela manda o moleque pra rua e ele vai rouba, assaltar com revolver, não tem respeito; ninguém respeita esses moleques, o que o Estado faz por essa molecada? não faz nada! Com isso se transformam em marginal e estão perdendo o senso de humanidade.[9]

Segundo M. F. A. G., a questão da violência no bairro esta diretamente atrelada à ausência de emprego e renda para a população, pois através da aquisição de vínculo empregatício formal os moradores da Terra Firme conseguiriam, segundo ela, obter inúmeras conquistas sociais, transformando a realidade existente e possibilitando a transfiguração da posição marginalizada da área. Dentro das famílias de afro-descendentes a falta de emprego e renda é algo mais grave, pois segundo Jaccoud & Beghin (2002) a probabilidade de um indivíduo negro ser pobre e o dobro em relação a um indivíduo branco, sendo que a cor da pele esta fortemente associada a probabilidade do indivíduo ser pobre. Diante disso, as questões econômicas acentuam as disparidades existentes entre brancos e negros, estas diferenças englobam diversos pontos como habitação, saúde, educação, lazer, segurança etc.; pois busca-se escamotear o abismo racial existentes no Brasil a partir de uma pretensa “Democracia Racial”. As tabelas a seguir demonstram esta diferenciação:

Tabela 1: Proporção de pobre segundo cor ou raça e ano (em %).

Ano

Todos

Brancos

Negros

1995

34

22

48

1996

34

22

48

1997

34

22

48

1998

33

21

46

1999

34

23

48

2001

34

22

47

Fonte: IBGE. PNAD, 1995-2001. Elaboração Disoc/Ipea a partir dos microdados.

Tabela 2: Renda média segundo cor e ano (em R$ de janeiro de 2002).

Ano

Todos

Brancos

Negros

1995

357

418

201

1996

364

488

203

1997

365

494

205

1998

370

500

209

1999

350

472

200

2001

356

482

205

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Fonte: IBGE. PNAD, 1995-2001. Elaboração Disoc/Ipea a partir dos microdados.

O levantamento dos dados caracteriza o cenário das ralações étnico-raciais, onde os anos analisados pela pesquisa do IBGE demonstram que a renda média anual dos brancos é superior ao dobro da renda média anual dos negros; assim como, a proporção de pobre segundo cor ou raça representa um acentuado desnível entre brancos e negros, caracterizando a marginalização da população negra em nosso país. Sendo que a implementação das políticas de ações afirmativas sinalizam para a amenização desta realidade, possibilitando futuramente a redução desta situação na qual o negro esta inserido; segundo Bernardino (2002) as ações afirmativas buscam corrigir desigualdades socioeconômicas adivindas de discriminação, concedendo vantagens para certos grupos que encontram-se em situação de inferioridade, atual ou histórica, visando no futuro a reversão desta situação. A busca por políticas públicas efetivas na Terra Firme e a indignação dos moradores levou a organização de manifestações públicas que exigiam maior atenção por parte do Estado no tocante à segurança na área.

As inúmeras famílias de afro-descendentes do bairro estão sofrendo com a cooptação de seus filhos – crianças e adolescentes – pelas facções criminosas existentes; os problemas enfrentados e a falta de um projeto de vida vislumbrado por estas pessoas, torna-os alvos da criminalidade, contribuindo para o aumenta da estigmatização da região. As lideranças negras do centro comunitário “Bom Jesus” desenvolvem projetos de inclusão social destes futuros cidadãos, atuando de forma sistemática contra uma pretensa sedução direcionada as crianças e jovens pela vida do crime; a prática da capoeira representa um deste mecanismo de combate ao aumento da violência e a transformação destas pessoas em cidadãos, como é exposto pelo líder comunitário negro L. O. O. da S.,

O pessoal da capoeira, na verdade nos estamos tentando trabalhar com os meninos que estão em situação de risco, situação de risco aqui na Terra Firme ela é uma constante, o jovem mesmo que tenha uma família estruturada, ele corre o perigo porque ele ta indo para a escola, ele ta se enturmando e não existe uma forma de estar separando o “joio do trigo”; então existe o tempo todo uma interrelação dessas crianças com pessoas e também a presença constante da violência que é presenciada no dia-a-dia e muitas das vezes quando a família procura por algum motivo, as crianças como elas não tem uma opção, elas são cooptadas geralmente pelo mundo da violência mesmo, até porque essas crianças adolescentes eles freqüentam uma escola hoje que não tem um atrativo, o garoto vai pra aula, muitas vezes sai de casa com fome, chega na escola ele passa 4 horas sentado, então não existe ali uma educação além da sala de aula, ali (escola) é uma educação para o trabalho, eu acho que nem chega a isso, na periferia as vezes eu vou 10 horas da manhã na escola e não tem ninguém mais, todos já saíram, o professor não veio e os moleques estão ociosos e ficam por ai.[10]

O trabalho visando a coletividade desenvolvida pelas lideranças do centro comunitário “Bom Jesus”, objetiva garantir condições básicas de “sustentabilidade cidadã” para estas famílias carentes; segundo a noção de cidadania coletiva, observa-se que esta é constituidora de novos sujeitos históricos: as massas urbanas espoliadas e as camadas médias expropriadas. A cidadania coletiva se constrói no cotidiano através do processo de identidade político-cultural (GOHN, 2005:17). As massas urbanas relegadas às periferias inserem-se neste contexto de luta coletiva, pois através de suas articulações, as famílias de afro-descendentes criam bases para a realização de movimentos sociais, orientados pelas lideranças comunitárias, na objetividade da legitimação de seus direitos cívicos.

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Sobre os autores
Luiz Junior Nunes de Carvalho

Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade Federal do Pará (2002). Atualmente é professor do Instituto de Educação Ápice do Pará (IEAPA); tendo trabalhos anteriores no Instituto de Educação Superior e Serviço Social do Brasil (IESSB). Especialista em Educação para as relações Étnico-Raciais pelo Instituto Federal do Pará (IFPA 2008); orientador de Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) nas áreas das Ciências Humanas, envolvendo temáticas relacionadas ao cotidiano, cultura popular e memória; integrante de banca julgadoras de Trabalhos de Conclusão de Curso; elaborador de surportes teóricos e artigos científicos para as graduações em Ciências Humanas. Bacharel em Direito, pela FIBRA, ADVOGADO OAB/Pa nº 21865, atuando nas áreas de Direito Administrativo, Civil e Trabalhista. Contatos: 32551259 / 80324300 / 88715751; SITE: www.ncaconsultoria.com e email: [email protected]

Laura Helena Barros da Silva

Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (1997), especialização em Produção Familiar Rural e Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará (1999) e mestrado em Sociologia Geral pela Universidade Federal do Pará (2004). Atualmente é professora titular do Centro Federal de Educação Tecnológica do Pará.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Artigo apresentado para a banca examinadora do curso de pós-graduação em educação para as relações étnico-raciais, organizado pelo Centro Federal de Educação Tecnológica do Pará.

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