Resumo: No presente estudo, serão avaliados os fundamentos jurídicos, legais, doutrinários e jurisprudenciais que autorizam ou repelem a responsabilização direta de administrador de órgão público pela ação ou omissão que contrarie ordem judicial de fazer ou não fazer, comprometendo a efetivação de tutela específica concedida pelo Poder Judiciário. É discutível a cominação de astreintes contra a Fazenda Pública, em prejuízo da coletividade. Quanto à alegação de impossibilidade de cominação diretamente na pessoa do agente público, os argumentos que a sustentam ofendem o direito fundamental à tutela executiva, o qual é inerente aos princípios da inafastabilidade de jurisdição e do devido processo legal. O agente público, apesar de não ser parte na relação originária, pode ser alvo de astreintes, desde que tenha oportunidade de se manifestar sobre os motivos do descumprimento, pois paralelamente à relação jurídica principal, em que se discute relação de direito material, tem-se uma relação jurídica acessória em que se discute apenas a aplicação de astreintes. A justificativa de que multa coercitiva deve se limitar ao réu, é entendimento que deve ser superado. O Direito Processual Civil deve ser interpretado em benefício do cidadão e não do mau administrador público.
Palavras-chave: Multa coercitiva. Astreintes. Agente Público. Fazenda Pública. Poder geral de efetivação. Tutela efetiva.
Sumário. Introdução. 1. Da multa coercitiva no modelo processual brasileiro. 1.1. A primazia da tutela específica. 1.2. Multa coercitiva: origem histórica e principais características. 1.3 Da mutabilidade e acessoriedade das astreintes: relação jurídica processual que não se confunde com a relação de direito material deduzida no processo. 1.4 Multa do art. 77, §2º do CPC/2015 (art. 14, parágrafo único do CPC/1973) e sua utilização nas execuções específicas, inclusive contra terceiros. 2. Do direito fundamental à tutela efetiva. 3. Da aplicação de multa coercitiva contra a administração pública. 4. Da responsabilidade direta e pessoal do agente público pela multa coercitiva que deu causa. 4.1. Visão da doutrina acerca da possibilidade de a Fazenda Pública ser sujeito passivo de multa coercitiva. 4.2 Posição da Jurisprudência, encabeçada pelo Superior Tribunal de Justiça. 5. Análise crítica do posicionamento do stj contrário à responsabilidade pessoal do administrador público por multa coercitiva. 5.1. Da fragilidade dos argumentos utilizados pelo STJ. 5.2. Multa coercitiva contra a Fazenda Pública: resistência custeada pela coletividade. 6. Da multa coercitiva aplicada diretamente contra agente público resistente: direito fundamental à tutela efetiva. Considerações finais.
INTRODUÇÃO[1]
A crescente “judicialização” dos conflitos sociais, em especial no que se refere ao controle judicial da atuação administrativa do Estado, resultante em grande medida da democratização do acesso à justiça, faz surgir a necessidade de uma ampliação dos poderes do juiz, para municiá-lo de meios executivos suficientes para garantir a efetividade de suas próprias decisões. Nessa discussão, insere-se o presente estudo, que visa abordar a dificuldade do Judiciário em dar executividade a suas decisões mandamentais em face do próprio Estado. Em casos concretos, em que o Estado é condenado a fazer, a decisão judicial fica, em certa medida, desarmada de seu atributo de imperium.
Então, quais os meios executivos a serem adotados quando determinado órgão estatal desafia a autoridade de uma decisão judicial e não cumpre sua obrigação de fazer determinada: multa coercitiva em prejuízo da Fazenda Pública ou aplicada direta contra o agente público responsável pela execução do ato? Essas e outras questões fazem parte do presente estudo, que tem o objetivo de enfrentar, em curto espaço, os problemas que redundam a execução de tutela específica em face do Estado.
Para melhor identificação do problema a ser enfrentado, convém ilustrá-lo com situações reais em que o Estado-administração se torna verdadeiro obstáculo à efetividade de uma decisão judicial. Uma primeira situação: quando o Poder Executivo resiste em fornecer medicamentos de uso contínuo à pessoa necessitada[2]. Outra situação recorrente é a recalcitrância em cumprir determinação judicial para nomear e dar posse a candidato, em virtude de preterição da ordem de classificação[3]. Vale destacar mais uma situação, que é a não implantação de reajuste salarial ordenado judicialmente[4].
Até o momento, não existe dispositivo de lei no ordenamento brasileiro que expressamente atribua a administrador público responsabilidade pessoal pelo pagamento de multa diária (ou astreintes ou multa coercitiva) por descumprimento judicial.
Não havendo o cumprimento espontâneo pelo Estado, surge a pergunta: qual medida deve ser tomada pelo magistrado para compelir o Poder Público a cumprir a decisão mandamental exarada? A resposta a esta indagação é o objetivo principal do presente estudo, porém, não sendo possível esgotar o tema, que seja ao menos suficiente para despertar o senso crítico para os variados aspectos que o cercam.
1. DA MULTA COERCITIVA NO MODELO PROCESSUAL BRASILEIRO.
1.1 A primazia da tutela específica.
No direito brasileiro, a introdução de mecanismos de tutela específica deu-se gradativamente, primeiro em leis isoladas até se chegar ao Código de Processo Civil com a reforma de 1994. Com efeito, antes do final do século XX, o cumprimento das obrigações de fazer, não fazer ou entregar coisa, resolvia-se em perdas e danos caso o devedor não quisesse cumprir sua obrigação.
Conforme lição de Fredie Didier Jr. et al (2013), antes da reforma do CPC em 1994, o ordenamento já previa outros casos de tutela específica, como o DL n. 58/37, o art. 213 do Estatuto da Criança e Adolescente, o art. 84 do Código de Defesa do Consumidor e o art. 11 da Lei de Ação Civil Pública.
Com a reforma efetuada pela Lei 8.952/94, inseriu-se no Código de Processo Civil o regramento da tutela específica. Sintetizando os comentários sobre essa importante modificação, Fredie Didier Jr. et al (2013) sintetiza:
“Inverteu-se, portanto, o quadro: em vez de o devedor ter o poder de dizer se iria, ou não, cumprir o dever, o credor que passou a poder optar, em caso de descumprimento, entre a exigência específica do cumprimento ou a exigência de ressarcimento pecuniário. A partir de 1994, estabeleceu-se o que se convencionou chamar de primazia da tutela específica.” (DIDIER JR. et al, 2013, p. 435)
Especificamente quanto ao art. 461 do CPC, que é objeto central desta monografia, após a reforma passou vigorar nos seguintes termos:
Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. (Redação dada pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
§1º. A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
§2º. A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287). (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
§3º. Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
§4º. O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
§5º. Para a efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial. (Incluído pela Lei nº 8.952, de 13.12.1994)
Posteriormente, a Lei 10.444/02 modificou o parágrafo quinto e acrescentou o parágrafo sexta, passando a ter a redação atual:
§5º. Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial. (Redação dada pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)
§6º. O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva. (Incluído pela Lei nº 10.444, de 7.5.2002)
Esta nova redação do art. 461 veio facilitar e tornar mais efetivo o uso da execução específica nas obrigações de fazer e não fazer. Com a nova redação, tornou-se prioritária a tutela específica, ficando em segundo plano a conversão em perdas e danos e a adoção de medidas que assegurem o resultado prático equivalente. Maior relevância se dá nas hipóteses de obrigação de fazer infungíveis, vez que “armou-se” o magistrado com diversos mecanismos para dar efetividade à tutela jurisdicional. Dissertando sobre o tema, Luiz Fux (2003) esclarece que:
“ao credor somente interessa o cumprimento pelo devedor, porque contraída intuito personae, isto é, em razão das qualidades pessoais do obrigado e não em função pura e simplesmente do resultado. (...) Nessa hipótese, advindo o inadimplemento, é impossível a utilização de meios de sub-rogação para alcançar o mesmo resultado, porque o “atuardo solvens é insubstituível”. Nesse caso, se o credor não se contentar em receber de imediato o ‘equivalente’ em perdas e danos, terá de aguardar a atuação do devedor. Visando a compeli-lo a cumprir a prestação entram em cena os meios de coerção, in casu, a multa diária ou astreintes, que surgiram exatamente para vencer a recalcitrância do devedor, substituindo as perdas e danos, nas denominadas obrigações com prestação infungível.” (FUX, 2004, p.1376).
Atualmente, com o advento do Código de Processo Civil de 2015, a matéria veio tratada nos artigos 536 e 537, os quais mantiveram a omissão legislativa, não regulando a expressamente a possibilidade de aplicação de multa contra agente público, in verbis:
Art. 536. No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, o juiz poderá, de ofício ou a requerimento, para a efetivação da tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente, determinar as medidas necessárias à satisfação do exequente.
§ 1o Para atender ao disposto no caput, o juiz poderá determinar, entre outras medidas, a imposição de multa, a busca e apreensão, a remoção de pessoas e coisas, o desfazimento de obras e o impedimento de atividade nociva, podendo, caso necessário, requisitar o auxílio de força policial.
§ 2o O mandado de busca e apreensão de pessoas e coisas será cumprido por 2 (dois) oficiais de justiça, observando-se o disposto no art. 846, §§ 1o a 4o, se houver necessidade de arrombamento.
§ 3o O executado incidirá nas penas de litigância de má-fé quando injustificadamente descumprir a ordem judicial, sem prejuízo de sua responsabilização por crime de desobediência.
§ 4o No cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer, aplica-se o art. 525, no que couber.
§ 5o O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao cumprimento de sentença que reconheça deveres de fazer e de não fazer de natureza não obrigacional.
Art. 537. A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito.
§ 1o O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que:
I - se tornou insuficiente ou excessiva;
II - o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.
§ 2º O valor da multa será devido ao exequente.
§ 3º A decisão que fixa a multa é passível de cumprimento provisório, devendo ser depositada em juízo, permitido o levantamento do valor após o trânsito em julgado da sentença favorável à parte. (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016)
§ 4º A multa será devida desde o dia em que se configurar o descumprimento da decisão e incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado.
§ 5º O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao cumprimento de sentença que reconheça deveres de fazer e de não fazer de natureza não obrigacional.
1.2 Multa coercitiva: origem histórica e principais características.
A concepção de multa coercitiva remonta ao advento do Código Civil francês, vigente a partir de 21 de março de 1804, que fixou no ordenamento jurídico, o princípio ideológico nemo potest cogi ad factum[5]. Desde então, o emprego de constrições pessoais na execução de qualquer facere estava nitidamente vedado, restando, em consequência, comprometido o alcance da específica prestação devida ao credor.
Essa situação de vulnerabilidade do titular do crédito começou a ser modificada para que este não precisasse trilhar a tantas vezes insatisfatória via das perdas e danos, dando-se início à aplicação de medidas gravosas em face do devedor. Em termos mais precisos, os tribunais da França passaram a fixar multas de valor extraordinário que teriam seu montante aumentado indefinidamente caso o réu mantivesse a recusa em cumprir a obrigação tutelada no provimento jurisdicional[6].
Enrico Tullio Liebman (1968), discorrendo sobre o tema, conceitua astreintes da seguinte forma:
"Chamam-se ‘astreintes’ a condenação pecuniária proferida em razão de tanto por dia de atraso (ou qualquer unidade de tempo, conforme as circunstâncias), destinada a obter do devedor o cumprimento da obrigação de fazer pela ameaça de uma pena suscetível de aumentar indefinidamente.
(...)
Caracterizam-se as ‘astreintes’ pelo exagero da quantia em que se faz a condenação, que não corresponde ao prejuízo real causado ao credor pelo inadimplemento, nem depende da existência de tal prejuízo. Constitui na realidade uma pena imposta com a finalidade cominatória, tendo como objetivo primeiro o cumprimento da obrigação no prazo fixado pelo juiz.” (LIEBMAN, 1968, p. 169).
Por meio do mecanismo da multa diária por atraso no cumprimento da obrigação, compele-se o devedor a prestá-la, antes de convertê-la em perdas e danos. Isso porque a multa coercitiva é
“meio executivo primordial à disposição do órgão judiciário consistente na pressão psicológica sobre o vencido, colocando-o perante dois termos de alternativa: ou atende o comando judiciário ou sofrerá a imposição de multa de valor exorbitante (astreinte).” (ASSIS, 2004, p.221).
A propósito, Alexandre Freitas Câmara (2004) não concorda com o termo multa diária. Para ele, o correto seria se falar em multa periódica, visto que elas podem ser fixadas com periodicidade diversa da diária:
“Denomina-se astreintes a multa periódica pelo atraso no cumprimento de obrigação de fazer ou de não fazer, incidente em processo executivo (ou na fase executiva de um processo misto), fundada em título executivo judicial ou extrajudicial, e que cumpre a função de pressionar psicologicamente o executado, para que cumpra sua prestação.” (CAMARA, 2004, p. 261).
A multa coercitiva visa exercer pressão psicológica no obrigado, para que este cumpra o comando judicial, justamente para evitar a excussão de seus bens particulares, de modo que "a violência que as astreintes exercem naturalmente sobre o réu, como medida coercitiva, é de caráter psicológico e, portanto, não contra seus bens, mas contra a pessoa do devedor" (AMARAL, 2004, p. 69).
A multa prevista no art. 461 do CPC/1973, segundo lição de Fredie Didier Jr. et al (2013), é medida coercitiva indireta, de natureza processual, cujo valor é fixado pelo magistrado em decisão mandamental (sem limite máximo legal), podendo ser fixo ou periódico. Além disso, tem a parte adversa como beneficiária dos numerários.
Quanto ao dies a quo da multa coercitiva, havia divergência nos tribunais, prevalecendo que o marco era a data do descumprimento da decisão. Quanto à exigibilidade, também existiam divergências, sendo majoritária a posição de que o termo a quo era o trânsito em julgado da decisão favorável ao autor[7]. Com o Novo CPC,
1.3 Da mutabilidade e acessoriedade das astreintes: relação jurídica processual que não se confunde com a relação de direito material deduzida no processo.
A multa coercitiva tem caráter acessório, pois consiste em uma técnica destinada ao alcance de determinado fim, que só é cabível enquanto este fim ainda é almejado e possível. Desta forma, pode-se concluir que a natureza da multa é processual e não um atributo da obrigação, mas sim um ato da autoridade da justiça (AMARAL, 2004).
Ora, se a multa coercitiva não decorre da relação de direito material, ela não segue a regra rígida da imutabilidade da coisa julgada. Apesar de seu valor ser destinado ao autor da ação, o quantum não transita em julgado. O mesmo vale da periodicidade, que nada mais é do que o quantum por unidade de tempo.
Dado o caráter acessório da multa coercitiva, pois existe para dar efetividade ao processo principal, se este for julgado improcedente ou extinto sem resolução do mérito, a multa deixa de ser devida. Não cabe afetar o patrimônio de quem tinha razão na demanda[8]. Então, se a multa não transita em julgado, por si só, pois depende da definitividade do processo principal, seu valor pode ser modificado pelo juiz quando se mostrar excessivo ou insuficiente. A fixação definitiva da multa ocorre quando, após a coisa julgada do processo principal, é cumprida a obrigação pelo devedor ou quando esta se torna inútil para o credor.
1.4 Multa do art. 77, §2º do CPC/2015 (art. 14, parágrafo único do CPC/1973) e sua utilização nas execuções específicas, inclusive contra terceiros.
Com o advento da Lei 10.358/2001, o art. 14 do CPC/73, teve modificado seu caput para ampliar os possíveis destinatários de multa por ato contrário ao exercício da jurisdição. Ainda foi acrescentado o inciso V e a multa do parágrafo único, demonstrando a intenção do legislador em fornecer mecanismos no sistema processual para a efetividade das decisões judiciais mandamentais.
Conforme dispõe Fredie Didier Jr. et al (2013), a multa prevista no parágrafo único tem natureza administrativa, finalidade punitiva, cujo quantum não excederá a 20% do valor da causa e será revertido à Fazenda Pública. Em suma, trata-se de punição ao contempt of court, aplicado pelo magistrado em seu atípico exercício do poder de polícia.
O contempt of court é o principal mecanismo de coerção nos países que adotam o common law. Ele consiste em métodos de coagir à cooperação, ainda que indireta, aplicando sanções às pessoas envolvidas no processo. Sendo um dos mais antigos procedimentos judiciais, o contempt of court envolve o poder do juiz de proteger a dignidade de sua corte ou de punir a desobediência a suas ordens[9].
Esclarecedor o trecho do artigo de Paula Sarno Braga sobre o art. 14 do CPC, a autora faz referência à obra do casal Wambier[10], os quais defendem que a norma deve ter o maior rendimento possível no sentido de garantir a probidade e efetividade processual, sendo que citações a este ou aquele participante da relação jurídica processual são meramente exemplificativas, pois a lei generaliza de modo absoluto[11].
Dessa forma, entende-se plenamente possível a aplicação da multa punitiva do art. 14, p. único, do CPC, a administrador público renitente. Assim já decidiu o TRF da 2ª Região:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECALCITRÂNCIA NO DESCUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL. MULTA SANCIONATÓRIA. ART. 14, V, E § ÚN., DO CPC. POSSIBILIDADE DE ATINGIMENTO DA FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE DE ATINGIMENTO DE AGENTE PÚBLICO PRESENTANTE. AUSÊNCIA DE INTERESSE DE RECORRER. I. Se resta configurada recalcitrância no cumprimento de decisão judicial, é possível a aplicação de multa sancionatória, na forma do art. 14, V, e § ún., do CPC, mesmo que em desfavor da Fazenda Pública. II. A extensa amplitude subjetiva de tal multa sancionatória, justificada por seu caráter peculiar, pode abarcar o próprio agente público presentante da entidade pública pertinente, na qualidade de indivíduo que, de alguma forma, participa do processo. III. Como, nessa hipótese, a obrigação no sentido de pagar multa cominatória é imposta àquele agente público, transparece a ausência de interesse em recorrer por parte daquela entidade pública, pois a sanção ora atacada atinge seu alvo subjetivo de modo personalíssimo.
(TRF-2 - AG: 201202010015150 RJ 2012.02.01.001515-0, Relator: Desembargadora Federal VERA LUCIA LIMA, Data de Julgamento: 06/06/2012, OITAVA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: E-DJF2R - Data::01/08/2012 - Página::167/168)
Com o advento do novo CPC/2015, a multa punitiva veio tratada no art. 77, da seguinte forma:
Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo:
(...)
IV - cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação;
(...)
§ 1º Nas hipóteses dos incisos IV e VI, o juiz advertirá qualquer das pessoas mencionadas no caput de que sua conduta poderá ser punida como ato atentatório à dignidade da justiça.
§ 2º A violação ao disposto nos incisos IV e VI constitui ato atentatório à dignidade da justiça, devendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa de até vinte por cento do valor da causa, de acordo com a gravidade da conduta.
Nos termos do §4º do art. 77, a multa punitiva ao contempt of court independe da incidência da multa coercitiva do art. 536, §1º. Logo, podem ser cumuladas, vez que possuem natureza distintas, in verbis:
§ 4º A multa estabelecida no § 2º poderá ser fixada independentemente da incidência das previstas nos arts. 523, § 1º, e 536, § 1º.
Daniel Amorim Assumpção Neves, embora seja contrário à aplicação de astreintes contra o próprio agente público, entende ser plenamente aplicável a multa do art. 77, §2º de forma direta contra agente público recalcitrante, confira-se:
Essa preocupação que tenho, entretanto, não é suficiente para legitimar a aplicação das astreintes ao próprio agente público. Parcela da doutrina entende que nesse caso a pressão psicológica aumentaria significativamente, porque o agente público passaria a temer pela perda de seu patrimônio particular. Não se duvida de que a pressão aumentaria, mas as astreintes só podem ser dirigidas ao obrigado, reconhecido como tal na decisão que se executa. O agente público não é parte no processo, e dirigir as astreintes a ele caracteriza afronta aos princípios da ampla defesa e do contraditório, o que o Superior Tribunal de Justiça não admite, podendo o agente público, entretanto, ser sancionado com a multa prevista no art. 77, § 2º, do Novo CPC por ato atentatório à dignidade da justiça. (NEVES, 2016)