5. ANÁLISE CRÍTICA DO POSICIONAMENTO DO STJ CONTRÁRIO À RESPONSABILIDADE PESSOAL DO ADMINISTRADOR PÚBLICO POR MULTA COERCITIVA.
5.1 Da fragilidade dos argumentos utilizados pelo STJ.
Cumpre destacar os principais argumentos utilizados pela Corte Superior para justificar a impossibilidade de impor multa coercitiva diretamente ao próprio administrador público:
a) as autoridades coatoras que atuaram no mandado de segurança como substitutos processuais não são parte na execução, a qual dirige-se à pessoa jurídica de direito publico interno[12];
b) a norma que prevê a adoção da multa como medida necessária à efetividade do título judicial restringe-se ao réu, como se observa do § 4º do art. 461 do Códex Instrumental[13];
c) admite-se a aplicação da sanção prevista no art. 461, § 4º do CPC à Fazenda Pública para assegurar o cumprimento da obrigação, não sendo possível, todavia, estendê-la ao agente político que não participara do processo e, portanto, não exercitara seu constitucional direito de ampla defesa.[14];
d) para reprimir os atos do mau administrador, o sistema oferece alguns mecanismos que podem ser provocados na via própria, seja no âmbito criminal ou civil, além da possibilidade de intervenção federal, nos moldes do art. 34, inciso VI, da Carta da República[15];
e) o entendimento deste Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que as pessoas do representante e da entidade pública não se confundem e, portanto, não é possível aplicar multa cominatória a quem não participou efetivamente do processo[16].
Em síntese, o STJ utiliza como principal argumento o fato de que o administrador público não pode ser alvo de astreintes em processo do qual não é parte, bem como o art. 461 tem sua aplicação limitada ao réu.
Primeiramente, seria ilógico exigir que apenas quem fosse parte no processo deveria se submeter à ordem judicial. O Judiciário não tem poderes para simplesmente declarar direitos, mas efetivar suas tutelas jurisdicionais quando deferidas.
O administrador público, de fato, não é parte processual em uma Ação Civil Pública ou em um Mandado de Segurança, por exemplo, pois a relação jurídica processual discutida não envolve o patrimônio do agente público. Isso está correto, todavia a partir do momento em que o administrador se opõe ao cumprimento natural da obrigação pelo Estado-Administração de uma ordem exarada pelo Estado-Juiz, ele tem participação suficiente no processo para justificar a adoção das “medidas necessárias” pelo magistrado.
O respeito aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa independem da natureza de ser parte no processo, bem como independem de expressa previsão legal, vez que consistem em direito fundamental de todos os litigantes (art. 5º, LIV e LV, da CF), com aplicação imediata. Desta feita, a aplicação da multa prevista no art. 14, p. único, do CPC, expressamente aplicável a terceiros, deve ser precedida de oportunidade de contraditório para o infrator, embora não haja lei expressa.
Quanto ao “vácuo jurídico”[17], chega a ser uma aberração interpretativa proposta pelo STJ. Mesmo que houvesse previsão legal expressa proibindo a aplicação do art. 461 do CPC ao agente público, esta regra seria inconstitucional por afronta ao art. 5º, XXXV, da CF, vez que ela consubstancia um direito fundamental individual a uma tutela jurisdicional efetiva, inclusive em face do Poder Público, não devendo haver obstáculos a essa “efetivação de tutela”, ressalvados os próprios direitos fundamentais previstos na Carta constitucional.
5.2. Multa coercitiva contra a Fazenda Pública: resistência custeada pela coletividade.
Conforme já exposto nos itens anteriores, a jurisprudência por enquanto majoritária aceita a aplicação de astreintes contra a Fazenda Pública, por ser parte ré na relação processual. Essa posição encontra-se pacificada no STJ[18].
Esse posicionamento dos tribunais desvirtua a finalidade originária das astreintes. Com efeito, segundo ensinamentos de Guilherme Rizzo Amaral (2004) a multa coercitiva visa exercer pressão psicológica no obrigado, para que este cumpra o comando judicial, justamente para evitar a excussão de seus bens particulares, de modo que "a violência que as astreintes exercem naturalmente sobre o réu, como medida coercitiva, é de caráter psicológico e, portanto, não contra seus bens, mas contra a pessoa do devedor"
Ora, mas se o devedor é compelido a agir para proteger seus bens, como aplicar multa coercitiva contra a Fazenda Pública, que não tem vontade própria já que é um ente abstrato. Além disso, não existem propriamente bens da Fazenda Pública, pois em análise mais apurada, seus bens são de toda coletividade. Nesse sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO MONOCRÁTICA. IMPLANTAÇÃO DE REAJUSTES SALARIAIS. EXPEDIÇÃO DE OFÍCIO. JUNTADA DE DOCUMENTOS NECESSÁRIOS AO CÁLCULO. DESCABIMENTO DE FIXAÇÃO DE MULTA DIÁRIA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. Astreintes - Não se mostrou razoável a aplicação de multa diária contra o ente público. Existem outras medidas mais eficazes, no caso de haver descumprimento da ordem judicial, para garantir o resultado do processo. A aplicação da penalidade de forma indiscriminada acarreta prejuízo aos cofres públicos e a sociedade como um todo. (...) (TJ-RS - AI: 70046546768 RS , Relator: Helena Marta Suarez Maciel, Data de Julgamento: 19/12/2011, Terceira Câmara Especial Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 16/01/2012)
E ainda há decisões que fundamentam a aplicação de astreintes contra a Fazenda Pública no princípio da isonomia, pois se o particular responde pela multa, não há motivos para o Estado ser processualmente privilegiado. Descabida esta argumentação. A Fazenda Pública diferencia-se em vários aspectos do particular, sendo um desses casos a possibilidade de pagar multa coercitiva.
Contra a Fazenda Pública, a multa coercitiva perde seus atributos, pois o administrador que desafia ordem judicial está tranquilo quanto a seus bens. Além disso, não há perigo iminente de pagamento dos valores da multa, pois o pagamento de quantia certa decorrente de decisão judicial segue o longo e custoso rito de precatórios. Assim, a multa perde sua natureza coercitiva e ganha natureza reparatória, pois os valores destinam-se ao autor da demanda.
6. DA multa coercitiva DIRETAMENTE contra AGENTE público RESISTENTE: DIREITO FUNDAMENTAL à TUTELA EFETIVA.
A aplicabilidade da multa coercitiva contra agente público, mesmo sem ser parte, encontra fundamento direto no art. 5º, XXXV, da CF, vez que traz em seu conteúdo verdadeiro direito fundamental a uma tutela jurisdicional efetiva, inclusive em face do Poder Público, não devendo haver obstáculos a essa “efetivação de tutela”, ressalvados os próprios direitos fundamentais previstos na Carta constitucional.
Nessa esteira, oportuno destacar a visão de Daniel Roberto Hertel (2006) em obra sobre técnica processual e tutela jurisdicional:
“O Estado, ao avocar para si a atividade jurisdicional, vedando a autotutela, avocou também o dever de solucionar os conflitos intersubjetivos, o qual deve ser realizado de modo eficaz, sob pena de se consagrar um verdadeiro descrédito em relação ao Estado de Direito. É nesse contexto que se insere a atividade de prestar a tutela jurisdicional, ou seja, não apenas como um poder, mas, sobretudo, como um dever estatal.” (HERTEL, 2006, p. 60)
Quando se trata de efetividade de tutela específica, o Judiciário deve desestimular e reprimir com veemência os desafios que qualquer pratique contra a autoridade conferida constitucionalmente a suas decisões.
Essa situação nada mais é que a interpretação técnico-jurídica em benefício do mau gestor, em verdadeiro retrocesso hermenêutico. Chega a ser inimaginável uma interpretação totalmente contrária ao interesse público, que agregue argumentos em benefício de agente público que, além de demonstrar desinteresse com a coisa pública, atenta contra a dignidade da Jurisdição [entendimento pacífico] e comete lesão ao erário, tudo isso aos olhos do poder Judiciário, que parece ignorar essa situação totalmente contrária aos ditames de um Estado de Direito.
Bruno Carrilho Tabaio (2014) ressalta, com razão, que a interferência na esfera jurídica do terceiro, titular do órgão público, deverá ser precedida de contraditório:
“Ora, o titular do órgão incumbido de execução não intervém no processo jurisdicional de nenhuma das formas jurídicas possíveis (nem como parte, nem como contra-interessado, nem através do instituto da intervenção).
(...)Deverá assim ser sempre garantida a possibilidade de exercício do direito ao contraditório aquando do incidente da instância.”
Quanto à possível ofensa ao art. 472, do CPC/73 (atual art. 506), que diz que a coisa julgada não pode prejudicar nem beneficiar terceiros, a multa coercitiva, como já foi tratado, é medida processual que não está integrada aos efeitos materiais da coisa julgada. A multa coercitiva em nada tem a ver com a relação material discutida no processo, tanto que poderá ser cominada a qualquer tempo, mesmo após a sentença e de ofício pelo magistrado.
No Código de Processo Civil existe caso em que terceiro pode ser condenado a pagar, mesmo não tendo nenhuma relação de direito material com o autor da demanda, não tendo sequer participado da fase cognitiva. Trata-se de execução de prestação de fato por terceiro a custa do executado. Na hipótese de o terceiro contratante não prestar o fato no prazo ou prestá-lo de modo defeituoso ou incompleto, o juiz, a requerimento do exequente, pode permitir que o próprio exequente conclua ou repare o fato por conta do terceiro contratante (art. 636 do CPC/73; atual art. 819).
Forma-se então um processo incidente, sob contraditório, entre o exequente e o terceiro que participou suficientemente da execução. A respeito do art. 636, parágrafo único do CPC/73, Theodoro Júnior (2011) leciona que:
Estabelece-se, assim, um incidente processual com contraditório entre exequente e o contratante, para cuja solução, geralmente, o juiz terá de recorrer a uma vistoria. Comprovada a inexecução, total ou parcial, procede-se-á a uma perícia para avaliar o custo das despesas a serem efetuadas para a conclusão ou reparo da obra, condenando o contratante a pagá-la. (THEODORO JR., 2011, p. 255)
Dessa forma, visualiza-se que nada impede que uma decisão judicial possa alcançar terceiro, mesmo não sendo parte da relação jurídica deduzida no processo. Basta que o terceiro tenha papel relevante na prestação da tutela específica para poder ser alcançado por decisão judicial em uma relação jurídica processual paralela.
Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro não veda que administrador de pessoa jurídica seja pessoalmente responsabilizado, até mesmo para proteger os bens da pessoa jurídica. Não há motivos para que o agente público disponha de todos os privilégios e sobreponha-se até mesmo contra a autoridade de uma decisão mandamental.
Dando sinais de mudança de entendimento, a 1ª turma do STJ decidiu no ano de 2015 pela possibilidade de incidência de multa coercitiva sobre autoridade coatora em sede de Mandado de Segurança, tendo em vista a aplicação do CPC como fonte subsidiária. Confira-se:
PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. IMPOSIÇÃO DE MULTA DIÁRIA À PRÓPRIA AUTORIDADE COATORA. POSSIBILIDADE. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO ART. 461, §§ 4º e 5º DO CPC. RECURSO ESPECIAL DO ESTADO DESPROVIDO.
1. É pacífica, no STJ, a possibilidade de aplicação, em mandado de segurança, da multa diária ou por tempo de atraso prevista no art. 461, §§ 4º e 5º do CPC. Precedentes.
2. Inexiste óbice, por outro lado, a que as astreintes possam também recair sobre a autoridade coatora recalcitrante que, sem justo motivo, cause embaraço ou deixe de dar cumprimento a decisão judicial proferida no curso da ação mandamental.
3. Parte sui generis na ação de segurança, a autoridade impetrada, que se revele refratária ao cumprimento dos comandos judiciais nela exarados, sujeita-se, não apenas às reprimendas da Lei nº 12.016/09 (art. 26), mas também aos mecanismos punitivos e coercitivos elencados no Código de Processo Civil (hipóteses dos arts. 14 e 461, §§ 4º e 5º).
4. Como refere a doutrina, "a desobediência injustificada de uma ordem judicial é um ato pessoal e desrespeitoso do administrador público; não está ele, em assim se comportando, agindo em nome do órgão estatal, mas sim, em nome próprio" (VARGAS, Jorge de Oliveira.
As consequências da desobediência da ordem do juiz cível. Curitiba: Juruá, 2001, p. 125), por isso que, se "a pessoa jurídica exterioriza a sua vontade por meio da autoridade pública, é lógico que a multa somente pode lograr o seu objetivo se for imposta diretamente ao agente capaz de dar atendimento à decisão jurisdicional" (MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica processual e tutela dos direitos. São Paulo: RT, 2004, p. 662).
5. Recurso especial a que se nega provimento.
(REsp 1399842/ES, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 03/02/2015)
Ante todo o exposto ao longo do presente artigo, propõe-se que ao ser proferida decisão condenatória mandamental em face do Estado, primeiro deve ser dado prazo para que o Estado, pessoa jurídica, cumpra voluntariamente a determinação. Em não sendo cumprida, o credor deve individualizar os agentes públicos responsáveis pelo descumprimento. Dessa vez os agentes serão intimados pessoalmente para cumprimento da obrigação em prazo fixado pelo juiz, com a expressa cominação de multa coercitiva após o encerramento do prazo. Nesse prazo, o agente público poderá justificar que não é o responsável pelo cumprimento, hipótese que deverá indicar o responsável, ou outra razão que torne impraticável o cumprimento da obrigação. O agente apenas se eximirá da multa cominada se o juiz julgar que ele não é o responsável pela pratica do ato.