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Prevalência da filiação socioafetiva e/ou biológica nas relações parentais

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07/09/2016 às 19:10
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3 Filiação socioafetiva

A socioafetividade como fenômeno jurídico tem sistematização recente no ordenamento jurídico brasileiro.

No Direito de Família, a afetividade vem sendo reconhecida e valorizada para fins de reconhecimento da filiação e parentalidade. Segundo Paulo Lôbo (2012, p.29):

A família é sempre socioafetiva, em razão de ser grupo social considerado base da sociedade e unida na convivência afetiva. A afetividade, como categoria jurídica, resulta da transeficácia de parte dos fatos psicossociais que a converte em fato jurídico, gerador de efeitos jurídicos. Todavia, no sentido estrito, a socioafetividade tem sido empregada no Brasil para significar as relações de parentesco não biológico, de parentalidade e filiação, notadamente quando em colisão com as relações de origem biológica [...] O termo socioafetividade conquistou as mentes dos juristas brasileiros, justamente porque propicia enlaçar o fenômeno social com o fenômeno normativo. De um lado há o fato social e de outro o fato jurídico, no qual o primeiro se converteu após a incidência da norma jurídica. A norma é o princípio jurídico da afetividade. As relações familiares e de parentesco são socioafetivas, porque congrega o fato social (socio) e a incidência do princípio normativo (afetividade).

A filiação socioafetiva pode se manifestar em várias hipóteses como no caso da reprodução humana assistida heteróloga; na posse do estado de filho oriundo da adoção à brasileira ou da adoção informal (adoção de fato). Em todas estas situações não existe relação biológica ou consanguínea entre as partes envolvidas, mas estando presentes vínculos de afeto, podem defluir direitos e deveres inerentes a esta forma de relação parental.

Em síntese, a filiação socioafetiva nas palavras de Chaves (2005, p.150): “tem como premissa que pai/mãe é quem cria e não quem gerou/concebeu. Quem se preocupa, cuida, orienta, se envolve na vida da prole, é genuinamente pai/mãe”.

Consoante Maluf e Maluf (2014, p.134-135) a parentalidade socioafetiva pode ser classificada em duas espécies: parental por afinidade e parental registral. Sobre o assunto explicam os referidos autores:

Configura-se o parentesco socioafetivo por afinidade, quando existe afetividade nas relações de paterno/materno-filiais, mas não há parentesco biológico, nem registro civil do menor, como nos casos que envolvem a relação entre o padrasto ou a madrasta com o enteado, filho de seu cônjuge ou companheiro, sendo este, aquele quem criou e educou o menor [...]. Na outra hipótese de paternidade socioafetiva, a parental registral é aquela onde o homem registra como seu,  filho de outro homem, casa-se com mulher ou vive em união estável com ela criando e educando filho alheio como se fosse seu. É a chamada adoção à brasileira.

Pode-se concluir que a expressão “outra origem” empregada pelo art.1593 do Código Civil foi utilizada de maneira abrangente de modo a incluir outras formas de parentesco, além do consanguíneo e do civil. Diante da pluralidade de novos arranjos familiares, a citada expressão passou também a incluir a paternidade e a maternidade socioafetivas.

Neste sentido, o art. 1597, V, do Código Civil presume a paternidade do marido que consente que sua esposa seja inseminada artificialmente com gameta de terceiro doador, sendo que o filho nascido à partir de tal técnica, deve ter o vínculo de parentesco reconhecido não somente com relação aos pais, mas também, com os demais parentes. Nestes casos, a existência de laços de afetividade passa a dar origem ao vínculo parental e, por consequência, atribuir direitos e deveres oriundos dessa nova parentalidade.

 Já a adoção à brasileira segundo Fornaciari Júnior ((2015,106): “Consiste ela, simplesmente, no registro, por quem sabe não ser o pai, de uma criança em seu nome, como se seu pai realmente fosse”.

Neste caso, os problemas passam a surgir por ocasião da dissolução do casamento ou da união estável, quando arrependido de ter registrado filho de outrem, o cônjuge ou companheiro procura anular o registro civil, ou mesmo após a sua morte, quando os demais herdeiros consanguíneos contestam seus direitos hereditários. Desta forma, não pode ter havido dolo da mãe no sentido de ter enganado o pai registral, fazendo-o pensar que o filho é seu, quando não o é. Em outras palavras, a pessoa que registra filho como seu deve ter consciência de que se trata de filho alheio, para que reste caracterizada a paternidade socioafetiva. (MALUF; MALUF, 2014, p.135).

 O art. 1601 do Código Civil prescreve: “Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível”.

Esse comando trata da denominada ação negatória de paternidade que despreza a paternidade socioafetiva, privilegiando o vínculo biológico. Desta forma, no caso de paternidade socioafetiva, se o marido, anos depois ter reconhecido como seu filho que sabia ser de outrem, resolve entrar com a ação negatória de paternidade, não poderá quebrar tal vínculo, pois a afetividade deve prevalecer sobre o vínculo biológico.

Nesse sentido, numerosas são as decisões dos Tribunais Estaduais. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no Processo 70009804642, da Comarca de Tupanciretã, em 17.02.2005,  8ª Câmara Cível, rel. Juiz Alfredo Guilherme Englert, assim decidiu, in verbis:

 Apelação cível. Ação anulatória de registro civil. Conforme precedentes desta corte, o reconhecimento espontâneo no ato registral estabelece uma filiação socioafetiva, com os mesmos efeitos da adoção, e como tal irrevogável. Impossibilidade jurídica do pedido reconhecida. Recurso desprovido.

Em julgamento do REsp. 1.244.957/SC, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça avaliou que, mesmo na ausência de ascendência genética, o registro realizado de forma consciente e espontânea, consolida a filiação socioafetiva, que deve ter reconhecimento e amparo jurídico. (PEREIRA, 2015, p.400).

Neste recurso a relatora Ministra Nancy Andrighi destacou que:

Em processos que lidam com o direito de filiação, as diretrizes determinantes da validade de uma declaração de reconhecimento de paternidade devem ser fixadas com extremo zelo e cuidado para que não haja possibilidade de uma criança ser prejudicada por um capricho de pessoa adulta que, conscientemente, reconhece paternidade da qual duvidava, e que posteriormente se rebela contra a declaração autoproduzida, colocando a menor em limbo jurídico e psicológico.

O Enunciado 520 do CJF/STJ confirma o teor dos julgados anteriormente apontados ao estabelecer: “O conhecimento da ausência de vínculo biológico e a posse do estado de filho obstam a contestação da paternidade presumida”.

Não se pode olvidar que o filho nesta situação pode pretender anular o registro de nascimento em que consta pai socioafetivo, para buscar o reconhecimento de sua paternidade biológica. Neste caso, devem ser levados em conta os interesses das partes envolvidas, para que prevaleça ou não a paternidade socioafetiva em detrimento da biológica.

No caso em que o padrasto ou a madrasta não registra como seu o filho de seu cônjuge ou companheiro, mas convive com ele durante grande parte de sua vida, fazendo o papel de genitor e criando fortes laços afetivos diante da omissão do pai ou da mãe biológica, pode também restar caracterizada a filiação socioafetiva. Estaria presente, neste caso, a denominada posse do estado de filho e, diante de uma eventual separação do casal, o padrasto ou a madrasta poderia pleitear o direito de continuar a ver o menor, ainda que haja discordância dos pais biológicos, tendo em vista que o elo de afinidade não se desfaz com o fim do relacionamento. Conclui Maria Berenice Dias (2011, p. 71):

O afeto não e fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim, a posse do estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado.

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O Enunciado 06/2013 aprovado no IX Congresso Nacional de Direito de Família, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Famílias estabelece: “do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental”.

O reconhecimento da filiação socioafetiva produz, portanto, todos os efeitos pessoais e patrimoniais que lhe são inerentes. Assim, o juiz deverá diante de cada caso concreto analisar o pedido de reconhecimento de relação parental socioafetiva levando em conta o efetivo benefício para o desenvolvimento psíquico do filho e sempre no seu melhor interesse, evitando estabelecer a filiação com o fim de atender interesses patrimoniais escusos.


4 Multiparentalidade

Também vem sendo debatida a possibilidade do reconhecimento da filiação socioafetiva sem afastar a filiação biológica. Tal situação tem sido denominada de multiparentalidade e tem dividido a doutrina, sobretudo no que se refere à produção de efeitos desse duplo reconhecimento.

Por multiparentalidade deve-se entender a possibilidade de uma pessoa possuir mais de um pai ou mais de uma mãe simultaneamente reconhecidos pelo direito, produzindo efeitos jurídicos com relação a todos eles.

Em decisão inovadora, a Juíza de Direito Ana Maria Gonçalves Louzada, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ao julgar o Processo 2013.06.1.001874-5, reconheceu a possibilidade da existência da multiparentalidade. Trata-se de um caso de adoção à brasileira, onde a criança desenvolveu laços de afetividade com o pai registral, vindo, posteriormente, a conhecer o pai biológico. Na decisão, a juíza considerou que o reconhecimento da multiparentalidade tem fundamento nos direitos da personalidade e autorizou que da certidão de nascimento constasse o nome dos dois pais, com as demais consequências jurídicas daí advindas, notadamente em relação ao parentesco, nome, pensão alimentícia, convivência, guarda e direito sucessório.( PEREIRA, 2015, p. 416).

Em acórdão inédito o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu no recurso de Apelação 0006422-26.2011.8.26.0286, da 1ª Câmara de Direito Privado, da Comarca de Itu, Rel. Des. Alcides Leopoldo e Silva Junior, j. 14.08.2012, pelo registro de madrasta como mãe civil do enteado, mantendo-se a mãe biológica que havia falecido no parto. Segue a ementa da decisão, in verbis:

Preservação da maternidade biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família. Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes. A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido.

Os Tribunais têm reconhecido essa possibilidade de multiparentalidade em alguns casos, mas as consequências daí advindas são muito controversas, pois na prática podem gerar situações bastante complexas, envolvendo direitos e deveres tais como: parentesco, impedimentos matrimoniais, direito de convivência e guarda, direito ao nome, alimentos, administração de bens, direitos sucessórios, poder familiar, dentre outros, com a relação a dois pais ou a duas mães.           

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Sobre a autora
Rosiane Sasso Rissi

Advogada, mestre em Direito Privado, Professora efetiva do Curso de Direito do Instituto Municipal de Ensino Superior de Bebedouro na área de Direito Civil. Possui vários artigos publicados na área jurídica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RISSI, Rosiane Sasso. Prevalência da filiação socioafetiva e/ou biológica nas relações parentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4816, 7 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/51101. Acesso em: 29 mar. 2024.

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