“Aos amigos, tudo; aos inimigos, os rigores da Lei”, esta frase atribuída a Getúlio Vargas ajuda a compreender o Brasil do princípio do século XX. Naquela época, a legislação penal em vigor permitia condenações por suspeita e deportações forçadas para a Clevelândia, colônia penal insalubre em que a maioria dos detentos rapidamente morria de doenças tropicais. Mas os presos e deportados nem sempre eram “inimigos do Estado” ou “inimigos do regime”. De fato, policiais e juízes também usaram as Leis para se livrar de seus desafetos.
O adágio que caracterizou o Estado Novo começou a ser superado durante a vigência da CF/1946, mas a democratização do Brasil foi interrompida pelo golpe de 1964. Com medo de retroceder aos padrões civilizatórios do Estado Novo, os tiranos fardados aprovaram uma Constituição Federal que garantia a integridade física e moral dos detentos. As regras escritas eram, porém, ignoradas quando a ditadura lidava com seus adversários: muitos deles foram raptados, torturados e executados sem ter direito ao devido processo legal. Durante o período 1964/1985, portanto, o ditado getulista sofreu uma considerável modificação “Aos amigos da ditadura tudo; aos inimigos nem mesmo os rigores da Lei”.
Em 1988 foi promulgada a Constituição Cidadã, mas a herança maldita de ditadura foi empurrada para debaixo do tapete. O resultado está estampado nas manchetes dos jornais diários: a pena de morte é proibida, mas largamente praticada por soldados das Polícias Militares. A doutrina do “inimigo interno” continua sendo um limitador da atividade política livre da população. Em razão da anistia de policiais e militares que cometeram crimes durante a Ditadura, os policiais se sentem tranqüilos para cometer abusos iguais ou até maiores do que aqueles que correram no período de 1964/1985.
No período que antecede o golpe de 2016, o princípio em vigor nem sempre foi o da CF/88. De fato, por razões de estado ou em virtude do estado lastimável em que se encontrava o Estado de direito, o ditado em vigor foi “Aos amigos quase tudo; a alguns inimigos a Lei”.
A corrupção era um fenômeno corriqueiro e encoberto durante a ditadura. Ela continuou a existir após 1988, mas passou a ser debatida na imprensa (governos Sarney a FHC) e combatida intensamente (governos Lula e Dilma Rousseff). O novo rompimento da legalidade ocorreu justamente porque centenas de deputados e dezenas de senadores corruptos resolveram assaltar o poder para garantir a própria impunidade. A deposição da presidente eleita pelos brasileiros mediante uma farsa equivale, portanto, à remoção da fina camada de verniz civilizatório que recobria o Estado constitucional brasileiro.
Na fase atual o adágio getulista sofreu uma nova mutação. Michel Temer, corrupto que exigiu e recebeu propina de uma grande construtora, nomeou vários Ministros corruptos que, por sua vez, nomearam centenas de corruptos para ocupar os cargos de segundo e terceiro escalão. A nova tirania funciona como uma máfia, cujos princípios básicos são a desonestidade militante e a fidelidade canina ao cappo di tutti capi elevado à condição de presidente da república com ajuda dos juízes que traíram a soberania popular em troca de aumento salarial. Doravante no Brasil a regra será “Aos bandidos tudo; aos inimigos o simulacro da Lei”.
O Brasil tinha duas constituições: uma escrita (a CF/88) e outra costumeira (herdada da ditadura). Nem mesmo a constituição costumeira está em vigor, pois até mesmo a aparência de legalidade se desfez. Voltamos aos bons tempos da Colônia, período em que todos tinham o direito de não ter direitos e, portanto, alguns podiam desfrutar privilégios e impunidade e outros eram tratados como animais valiosos (negros-coisas) ou animais indesejáveis (índios).
Nesse sentido, ninguém deve estranhar a inevitabilidade da queda de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e o perdão a Eduardo Cunha, Michel Temer, José Serra, e quadrilha ilimitada dentro e fora do Congresso e do Poder Judiciário.