‘Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Ninguém se importou comigo’
(Bertolt Brecht, 1959)
Apesar da grande repercussão do movimento feminista nos últimos anos, e quando menciono repercussão englobo aceitação, ainda incomoda o tratamento diferenciado que a sociedade insiste em destinar à mulher.
E é nessa angústia que busco as palavras do poeta Bertold Brecht entendendo que em pleno século XXI a mulher ainda está longe de alcançar a tão sonhada igualdade. Afinal, quem se importa com as mulheres?
Deixamos nos séculos passados a ideia de submissão, de inferioridade, de aceitação às condições impostas pela família e sociedade. A mulher não se enquadra mais no modelo de “rainha do lar”. A legislação mudou, a religião de adequou, pelo menos boa parte delas, e a mulher ganhou espaço profissional.
Alguns acreditam que as tarefas domésticas deixaram de ser responsabilidade feminina. Prefiro entender que a sociedade passou a exigir “auxiliares”, mas o cargo ainda é feminino. Faz tempo que os meninos são educados para “auxiliar” nas tarefas domésticas, Por consequência temos homens que, sem qualquer problema “auxiliam” suas esposas.
No entanto, importante levar em consideração uma simples observação: quem é o alvo dos comerciais de produtos de limpeza? Procurei, mas não consegui identificar nenhuma campanha publicitária que coloque o homem como público alvo para tais produtos. Então, resta muito cristalino, que a responsabilidade por “manter limpo o lar” ainda é da mulher.
Mas, em pleno século XXI a mulher está inserida no mercado de trabalho, a mulher assumiu cargos de liderança, se tornou médica, advogada, engenheira, até Presidente da República. Com esse olhar acabamos nos convencendo que a igualdade foi atingida.
E as atividades domésticas como ficam? Permanecem sob responsabilidade feminina, afinal, a mulher não é uma guerreira? Ela consegue assumir tudo. Ela consegue ser mãe, esposa, profissional e doméstica.
Deixando de lado as constatações abstraídas das campanhas publicitárias, é engraçado como a cada dia observamos uma quantidade maior de homens, “pais de família” exercendo os encargos domésticos, enquanto a mulher vai galgando degraus no mercado de trabalho. Porém, logo aparecem as justificativas como, por exemplo, “ele assumiu a casa porque está desempregado”.
A situação obrigou a uma mudança naquilo que era tradicional, mas, a impressão é que se trata de algo momentâneo, para resolver os momentos de crise econômica, não uma conquista realmente aceita. Sinceramente, não enxergo mudança de mentalidade.
Revendo a História, enxergamos as mulheres nas fábricas europeias do século XVII não por vontade, mas por necessidade, porque o salário do homem não era mais suficiente para o sustento da família. Também observamos a mulher assumindo cargos nas fábricas durante as guerras, porque os homens estavam morrendo nos campos de batalha.
No início do século XX Simone de Beauvoir já apontava que apesar da opressão social, a mulher era a grande responsável, diante de sua inércia com a situação, afinal, segundo a ilustre escritora, todas as classes oprimidas tendiam a se organizar, enquanto a mulher permanecia buscando a competição.
Algumas décadas antes, Lou Salomé escreveu:
Ouse, ouse... ouse tudo!!
Não tenha necessidade de nada!
Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!
Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!
(Lou Salomé - Reflexões sobre o problema do amor).
Entramos no século XXI e não aceitamos negar a evolução, o progresso e a discussão de temas anteriormente reprimidos. O feminismo ganha espaço. No Brasil, afinal, em 1988 a Constituição já determinava, “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
As famílias se modificaram, ou melhor, passamos a expandir nossos conceitos de família, as escolas se libertam de amarras na educação, introduzindo discussões sobre temas sociais polêmicos.
Enfim, o ser humano começa a sentir o gosto da liberdade de pensamento, nos deixamos “ousar” e entendemos o significado de “ser você mesmo”. Uma análise de alguns escritos, legislações e até acontecimentos, com certeza, levará as gerações futuras ao entendimento de que vivemos hoje um período de plenas conquistas.
Contudo, na contramão de todo esse desenvolvimento, nos deparamos com críticas extremamente fortes quando o tema “feminismo” é abordado em questão do ENEM. Deparamos-nos com um “Estatuto da Família”, nos deparamos com a “Escola sem Partido”. Tudo no século XXI!
Mas não apenas isso, temos logo no início do século, na maior cidade do país, uma estudante sendo verbalmente agredida em uma Universidade, por usar um vestido curto, considerado ofensivo.
Temos inúmeros casos de jovens sendo estupradas e, ao invés de vítimas, sendo consideradas culpadas pela sociedade, porque afinal, “se vestindo e agindo desse jeito, ela estava querendo”, ou “foi ela quem procurou”.
Portanto, volto ao apelo inicial do poeta, “ninguém se importou comigo”. Precisamos muito mais do que uma Lei Maria da Penha para acabar definitivamente com as diferenças. O homem não deveria ser punido pela agressão, simplesmente porque a ideia de agressão não deveria lhe ocorrer.
Enquanto existirem casos, e não são poucos, de mulheres sofrendo violência doméstica, sofrendo as mais absurdas formas de humilhação, a concepção “rainha do lar” não passa de uma maquiagem para o termo verdadeiro, “escrava do lar”.
Porém, apesar da condição extremamente triste diante das chocantes histórias de vida de algumas mulheres, não é possível deixar de levar em consideração que talvez uma boa parcela de culpa seja das próprias mulheres.
Os escravos se uniram pela libertação, os trabalhadores se unem por direitos, os homossexuais se unem pelo reconhecimento. E as mulheres? As mulheres competem pelo corpo mais bonito, pelo cabelo e pela maquiagem. Enfim, as chances que a sociedade proporciona sempre foram tão limitadas que as mulheres permanecem “disputando” espaços e, porque não dizer, “disputando aceitações”.
Imprescindível que o feminismo alcance todas, não necessariamente como militantes, mas como conhecedoras do seu papel na sociedade. A mulher não é superior ao homem, mas a mulher gera uma nova vida, apenas isso já a torna especial.
A mulher precisa se importar com a mulher. A mulher precisa respeitar a mulher. Ou fazemos isso agora nesse momento em que o mundo decidiu aceitar o fim das diferenças, nesse momento em que a sociedade e a legislação se mostram favoráveis à igualdade, ou estamos condenadas a uma eternidade de submissão e humilhação.
Encerro com palavras da imortal Simone Beauvoir.
“Que nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substância”.