Fundamentos do Direito Penal de Empresa no Brasil: enfrentamento da criminalidade corporativa a partir das bases liberais

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Os delitos corporativos demandam uma releitura do direito penal econômico no Brasil, sugerindo a edificação de um direito penal de empresa a partir de fundamentos liberais do Estado Democrático de Direito.

1) ANÁLISE CRÍTICA

 

Originariamente, o Direito Penal societário teve como nascedouro a segunda metade do século XIX, época em que a empresa passou a usufruir de autonomia e liberdade econômica perante o Estado.[1]

Na França, a Lei de 24 de julho de 1867 despontou como marco inaugural desse ramo criminal. Já no Brasil, a Lei nº 3.150, de 4 de novembro de 1882, foi pioneira em regulamentar as normas penais endereçadas às sociedades por ações.[2]

Nessa senda, Hungria já prenunciava o advento do Direito Penal das sociedades por ações no cenário brasileiro, enquanto Pereira dos Santos identificou essa manifestação delitiva como objeto do Direito Penal comercial.[3] De igual arte, Pedrazzi e Costa Júnior conferiram dinâmica ao Direito Penal societário, definindo-o como o conjunto de normas penais destinado ao tratamento dos delitos no contexto das sociedades anônimas.[4]

Recentemente, na constelação da criminalidade econômica organizada, a distinção entre criminalidade de empresa (corporate crime) e criminalidade na empresa foi cunhada por Schünemann sob o prisma do direito penal alemão.[5] Também exsurgiram as empresas ilícitas, que atualmente ganham evidentes coloridos no direito pátrio com a Lei n. 12.850, de 02 de agosto de 2013 (“Nova Lei de Organização Criminosa”).

Seguindo essa tendência, insignes penalistas também perfilham dessas classificações, tais quais Faria Costa e Inês Fernandes Godinho (Portugal), Foffani e Venafro (Itália) e Heloisa Estellita (Brasil).

A partir dessa proposta, urgem reflexões sobre o delineamento de uma parcela do Direito Penal econômico como Direito Penal de empresa no Brasil, necessariamente de cunho garantista, em pari passu com um Direito Administrativo Sancionador, por força dos princípios da ultima ratio legis e da fragmentariedade.

Essa discussão revela-se salutar à luz do direito brasileiro, mormente com a edição da Lei n. 12.846, de 1º de agosto de 2013 (“Nova Lei Anticorrupção”), em que se optou pelo enfrentamento da corrupção por meio do Direito Administrativo Sancionador, a ponto de incidir a responsabilidade empresarial, bem como o fomento de compliance programs e de acordos de leniência, rechaçando-se qualquer resposta simbólica do direito penal neste viés.

No Direito Penal econômico europeu, Gracia Martín tem enfatizado importância da categorização da criminalidade empresarial para o robustecimento dos estudos criminológicos, concebendo o Direito Penal de empresa como o conjunto de regulações penais relativas aos delitos perpetrados no exercício da uma atividade empresarial.[6]

Assevera Reyna Alfaro que o Direito Penal de empresa tem sido equivocadamente empregado como sinônimo de Direito Penal econômico. Nada obstante, o Direito Penal empresarial é corolário do Direito Penal econômico, eis que existem apenas alguns elementos comuns entre ambas as categorias, dentre os quais a natureza universal ou coletiva dos bens jurídicos correlatos.

Assim, seria desarrazoado afirmar que o Direito Penal de empresa possui as seguintes nuances: (i) que é ramo reconhecido a partir de fatores criminológicos vinculados à personalidade do agente; e (ii) que consistiria no conjunto de normas penais que disciplina a responsabilidade penal das pessoas jurídicas.[7]

Para Raúl Cervini, o Direito Penal de empresa, a despeito de sua especialidade, submete-se aos condicionamentos sociais, normativos e metodológicos de sua categoria maior: o Direito Penal econômico. Logo, o Direito Penal econômico é gênero, do qual o Direito Penal de empresa é espécie.[8]

É dizer, o Direito Penal empresarial deve ter o mesmo alcance e natureza do Direito Penal econômico, cujo sincronismo é indispensável à luz do Estado Democrático de Direito, pois ambos os ramos tutelam bens jurídicos de projeção macrossocial e, concomitantemente, podem afetar bens individuais no contexto corporativo, seja em seu ambiente interno, seja externo.[9]

E, segundo Anderson de Souza, o Direito Penal econômico não possui exclusivamente um talhe empresarial, quer dizer, não se cinge unicamente ao Direito Penal de empresa.[10]

Dessa forma, reconhece-se que, sob a égide do Estado Democrático de Direito, o Direito Penal empresarial é parte integrante do Direito Penal econômico e nuclear, de jaez liberal, possuindo meramente autonomia didática e metodológica, constituindo-se no conjunto de normas penais destinado ao tratamento da criminalidade de empresa.

Obtempera Terradillos Basoco que o Direito Penal econômico e empresarial devem adotar novos mecanismos de imputação, mas sem desvanecer dos direitos e garantias constitucionalmente consagrados.[11] Dessarte, a intervenção penal não pode se valer de uma desenfreada expansão punitiva, tampouco de uma nova disciplina empírica desvinculada do direito penal garantista.[12]

Para Zuñiga Rodríguez, o Direito Penal empresarial deve encontrar fundamentos materiais, ou seja, que recaiam nos fins da norma penal e na prevenção geral de condutas para a tutela de determinados bens jurídicos imprescindíveis à vida social (v.g., o meio ambiente; a Fazenda Pública; a liberdade de concorrência no mercado; a segurança; os direitos dos trabalhadores).[13]

De se ver, pois, que o âmbito de intervenção do Direito Penal de empresa é a criminalidade de empresa. Segundo Schünemann, a criminalidade corporativa se insere no campo dos delitos econômicos, em que, por meio de atuação em prol da empresa, gera-se lesão a bens jurídicos e a interesses externos e, também, a bens e a interesses próprios dos colaboradores da organização societária. Esse conceito tem o fito de distinguir aquela manifestação delitiva da criminalidade na empresa e das empresas ilícitas, despertando um novo pensar sobre a imputação penal, especialmente da responsabilidade e da ação.[14]

Para Godinho, a criminalidade de empresa é a soma dos crimes econômicos cometidos a partir de uma empresa ou por meio da atuação da empresa. Vale dizer, designa todos os crimes econômicos nos quais, por meio da atuação em benefício de uma empresa, são lesados bens jurídicos e interesses externos, incluindo os bens e interesses próprios dos colaboradores da empresa, no âmbito das atividades do negócio jurídico e econômico da corporação.[15]

Consoante Martínez-Buján Pérez, consiste na prática de delitos, geralmente crimes econômicos, por meio ou em benefício de uma empresa regularmente constituída.[16] A rigor, sua existência depende de uma reunião lícita dos sócios, porquanto devem eles constituir regularmente a sociedade empresária.[17]

Para Cervini, devem ser incluídos em tal conceito os delitos praticados pelos colaboradores da empresa contra o próprio ente societário, pois repercutem efetivamente sobre o patrimônio social e, por vezes, sobre bens jurídicos supraindividuais.[18]

Assevera Gracia Martín que, para restar configurada a criminalidade de empresa, devem ser levados em conta dois critérios: (i) a natureza do bem jurídico protegido, podendo incluir bens individuais; e (ii) que o delito seja cometido no exercício de uma atividade econômico-empresarial.

Para Gracia, o âmbito do Direito Penal econômico deve estender-se também aos delitos que, ainda que relacionados à salvaguarda de bens jurídicos essencialmente individuais, sejam praticados em conexão com uma atividade econômica (v.g, os crimes de falsidade documental; homicídio; vícios por responsabilidade pelo produto).[19]

Sem prejuízo, adverte Martínez-Buján Pérez que o critério de Gracia merece ser analisado detidamente, vez que expande consideravelmente o conceito da criminalidade empresarial, tornando-a também associada a delitos que não apresentam as mesmas características dos delitos econômicos (v.g., crimes patrimoniais clássicos).

Noutro viés, Yacobucci sustenta que o Direito Penal de empresa demanda a ruptura com os critérios tradicionais de imputação, perfazendo um novo molde da teoria do delito frente à organização societária.[20]

Para Gómez-Jara Díez, há de se erigir uma teoria do delito empresarial, alicerçada no modelo construtivista de culpabilidade empresarial, a fim de viabilizar dois pontos fulcrais do Direito Penal de empresa: (i) o reconhecimento da autonomia da responsabilidade penal da pessoa jurídica em relação às pessoas físicas que integram seu quadro; e (ii) a liberdade de (auto)organização da empresa, a partir da qual se estabelece o fundamento da competência da pessoa jurídica sobre o seu próprio âmbito organizacional, possibilitando o desenvolvimento de compliance programs como forma de profusão de uma cultura ética e de prevenção de riscos.[21]

E, segundo Fernando Torrão, a criminalidade de empresa abrange tanto a punição das pessoas físicas como da pessoa jurídica – conquanto esta deva incidir apenas em caráter residual.[22]

Nesse contexto, entende-se que o Direito Penal de empresa é marcado por duas facetas: (i) predominantemente por mecanismos tradicionais de imputação penal, destinando-se à responsabilidade individual no âmbito societário, contanto que observados os princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade; e (ii) pela ponderação da responsabilidade da organização societária e de compliance programs, mas sem se desguarnecer do cerne material e antropocêntrico do direito penal clássico.

Também traz à baila a reflexão sobre a cegueira deliberada, consubstanciada em um conceito cognitivo-normativo de dolo, assim como as ações neutras dos dirigentes e assessores no quadro corporativo, no que ganha expressão a Lei n. 12.683, de 09 de julho de 2012 (“Lei de Lavagem de Capitais”), em que se exclui a responsabilidade penal dos advogados por seus deveres genéricos.[23]

 

2) TOMADA DE POSTURA

Em síntese, a noção conceitual de Direito Penal de empresa ainda encontra-se em fase de lapidação dogmática, embora já tenha contornos minimamente delineados, pois prevalece que a intervenção penal empresarial se insere no universo do Direito Penal econômico. De toda sorte, a legitimidade do Direito Penal empresarial deve advir apenas em ultima ratio, com baluarte na função instrumental do Direito Penal de cariz liberal e democrático, evitando-se um expansionismo meramente simbólico e ineficaz neste âmago. Eis a nova era do Direito Penal empresarial[24].

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


[1] PEDRAZZI, Cesare; COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Tratado de direito penal econômico: direito penal das sociedades anônimas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 04.

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[2] Ibidem., pp. 04 e 24.

[3] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. Vol. VII (arts. 155 a 196). Rio de Janeiro: Forense, 1955, p. 274; SANTOS, Gérson Pereira dos. Direito penal econômico. São Paulo: Saraiva, 1981, pp. 128-129.

[4] PEDRAZZI, Cesare; COSTA JÚNIOR, op. cit., pp. 03-04.

[5] Sobre os motivos de tradução de “criminalidade de empresa” do alemão para o espanhol, cf.: MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Derecho penal económico. Madrid: Iustel, 2012, p. 86.

[6] GRACIA MARTÍN, Luis. Prolegómenos para la lucha por la modernización y expansión del derecho penal y para la crítica del discurso de resistencia: a la vez, una hipótesis de trabajo sobre el concepto de derecho penal moderno en el materialismo historico del orden del discurso de criminalidad. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, pp. 83-86.

[7] Segundo Reyna Alfaro, a empresa, enquanto objeto do direito penal empresarial, não deve ser entendida como sinônimo de pessoa jurídica, mas como atividade desenvolvida no contexto empresarial, ou seja, a organização de capital e de trabalho destinada à produção ou à mediação de bens e serviços para o mercado (REYNA ALFARO, Luis Miguel. Delimitación conceptual del objeto de estúdio del derecho penal económico y de la empresa. In: REYNA ALFARO, Luis Miguel (Coord.). Derecho penal y modernidad. Lima: Ara, 2010, pp. 270-271).

[8] CERVINI, Raúl; ADRIASOLA, Gabriel. El derecho penal de la empresa: desde una visión garantista: metodologia, critérios de imputación y tutela del patrimonio social. Buenos Aires: Julio César Faira, 2005, pp. 103-104; CERVINI, Raúl. Derecho penal económico democrático: hacia una perspectiva integrada. In: VILARDI, Celso Sanchez; PEREIRA, Flávia Rahal Brasser; DIAS NETO, Theodomiro (Coord.). Direito penal econômico: análise contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2009, pp. 04-05.

[9] Para Cervini, os diversos desafios por que passa o direito penal econômico, também passa o direito penal empresarial. Contudo, para um setor da doutrina, o direito penal econômico e o direito penal de empresa não são um mesmo ramo do direito penal, embora apresentem íntima relação entre si (Ibidem., 2005, pp. 103-104; Ibidem., 2009, pp. 04-05).

[10] SOUZA, Luciano Anderson de. Direito Penal Econômico: fundamentos, limites e alternativas. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 46.

[11] TERRADILLOS BASOCO, Juan M. Cuestiones actuales de derecho penal económico y de la empresa. Lima: Ara, 2010, p. 18.

[12] Ibidem., p. 19.

[13] ZUÑIGA RODRÍGUEZ, Laura. Modelos de imputación penal para sancionar la criminalidad de empresa en el CP español de 1995. In: Revista Peruana de Ciencias Penales, p. 961-996, Lima, 1999, p. 990.

[14] Essa definição afasta da criminalidade de empresa os delitos cometidos pelos colaboradores da empresa contra ela própria (SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la criminalidad de empresa. In: Anuario de derecho penal y ciencias penales, v. 41, n. 2, p. 529-558, Madrid, mai./ago. 1988, pp. 529-531; SCHÜNEMANN, p. 531 apud CERVINI, Raúl; ADRIASOLA, Gabriel, Op. cit., 2005, p. 105; ROJAS SALAS, Manuel. La criminalidad empresarial. In: Ciencias Penales: Revista de la Asociación de Ciencias Penales de Costa Rica, v. 10, n. 15, p.83-90, San José, dez. 1998, p. 83).

[15] GODINHO, Inês Fernandes. A actuação em nome de outrem em direito penal económico: entre a narrativa e a dogmática ou o outro lado do espelho. In: COSTA, José de Faria (Coord.). Temas de direito penal económico. Coimbra: Coimbra, 2005, p. 210; FOFFANI, Luigi. Criminalidad Organizada e Criminalidad Económica: la experiência italiana. In: Ciências Penais Contemporáneas. Revista de Derecho Penal, Procesal Penal y Criminologia. Mendoza: 2001.

[16] MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos, Op. cit., p. 84.

[17] Para maiores detalhes, cf.: ESTELLITA, Heloisa. Criminalidade de empresa, quadrilha e organização criminosa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 293.

[18] CERVINI, Raúl; ADRIASOLA, Gabriel, Op. cit., 2005, p. 105.

[19] GRACIA MARTÍN, Luis, Op. cit., pp. 82-88; MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos, Op. cit., pp. 88-89.

[20] YACOBUCCI, Guillermo Jorge. Algunas cuestiones sobre la responsabilidad penal al interno de la empresa. In: Pensamiento penal e criminológico: Revista de derecho penal integrado, v 4, n 7, p. 201-259, Córdoba, 2003, pp. 210-224.

[21] Para maiores detalhes, cf.: GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. O conceito construtivista de culpabilidade empresarial para a responsabilidade penal das pessoas jurídicas: exposição e resposta às críticas formuladas. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 21, n. 100, p. 416-451, São Paulo, jan./fev. 2013.

[22] TORRÃO, Fernando. Societas delinquere potest?: da responsabilidade individual e colectiva nos “crimes de empresa”. Coimbra: Almedina, 2010, p. 133.

[23] SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. Fundamentos del derecho penal de la empresa. Montevideo: B de F, 2013, pp. 22-27.

[24] Para maiores detalhes, cf. VALENTE, Victor Augusto Estevam. Direito penal de empresa & criminalidade econômica organizada: responsabilidade penal das pessoas jurídicas e de seus representantes face aos crimes corporativos. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2015.

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Sobre o autor
Victor Augusto Estevam Valente

Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professor em Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Ex-professor assistente e atual professor convidado do Curso de Pós-graduação (Lato sensu) em Direito Penal e Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP - Cogeae).

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