INTRODUÇÃO
Conforme o tempo passa, o avanço social e intelectual evolui. Daí surgem estudos e conhecimentos acerca da história humana que levam o indivíduo a almejar uma sociedade mais justa e igualitária. Ideais que por vezes são deturpados e vistos como meio de vantagem por políticas sociais. Instaura-se então, um paradigma forte que passa por uma compreensão de como proteger o socialmente desfavorecido sem marginalizá-lo como inferior e nem desequilibrar a balança da justiça.
O Direito Administrativo exerce uma função constitucionalmente especial de garantir a execução dos serviços e políticas públicas. Para isso, são necessários recursos humanos com alto potencial intelectual e idôneo, são os chamados servidores públicos, os quais representam uma grande porcentagem dos gastos públicos.
Para ocupar um cargo público de forma legitimamente originária, os servidores submetem-se a concursos públicos para provimento efetivo. Estes servidores aprovados sujeitam-se ao regime estatutário, obtendo vantagens e valorizações diversas do regime celetista. Um ponto pertinente é relacionado a reserva de vagas para candidatos negros em concursos públicos, que após ser regulamentado pela lei nº 12.990/2014, trouxe algumas polêmicas e críticas quanto a sua real eficácia e relevância. Destarte, é necessário estudar seus impactos e adversidades que acarreta na sociedade.
1 HISTÓRIA NEGRA
A história brasileira remonta a tempos não muito distantes, onde sujeitos de pele escura foram usados para as mais diversas atividades pesadas. Eram os denominados escravos, cuja mão de obra comprada por cafeicultores, seja por meio do tráfico negreiro, seja no mercado interno, no qual proviam de engenhos e fazendas decadentes no Nordeste após o Ciclo do Açúcar, era usada em grande escala, construindo uma rotina desumana.
O escravo era colocado na posição de mercadoria, sendo alienável ao arbítrio do proprietário. Pelo direito que os tinham sobre eles, os senhores podiam exercer todos os direitos legítimos de um verdadeiro dono, como o poder de compra, venda, empréstimo etc. Ele somente era considerado como um bem vinculado quando fizesse parte da hipoteca, como acessório. Daí surgem duas definições ao negro: antes da vigência da Constituição, era visto como objeto e sujeito de direito, após 1988, era o negro cidadão.
O negro como objeto de direito era a classificação dada a ele como um bem móvel, ao lado dos semoventes. Dessa forma, o escravo poderia pertencer a mais de um proprietário, sendo inclusive parte de herança. O negro como sujeito era como abordava o Direito Penal Brasileiro, tratando-o de maneira especial ao puni-lo mais severamente que os cidadãos livres. Com tantas penas cruéis, absurdas e desproporcionais, a Constituição de 1988 cumpre a Lei Áurea e equipara o negro ao cidadão comum, nada mais justo quando se pretende elevar a sociedade ao grau máximo de humanidade.
2 CONCURSOS PÚBLICOS
A Constituição (CRFB) de 1988, em seu art.37, inciso II, tornou obrigatória a aprovação prévia em concurso público para preencher cargos efetivos e empregos públicos em toda a administração pública brasileira. Hely Lopes Meirelles repassa que “o concurso público é o meio técnico posto à disposição da administração para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, atender ao princípio da isonomia”. A exigência dele não abrange cargos em comissão nem contratação por tempo determinado, somente cargos ou empregos de provimento efetivo, exigindo-se que seja de provas ou de provas e títulos. Nota-se a exigência irrenunciável da realização de provas, seja acrescida ou não da análise de títulos.
O edital do concurso deve contar todas as instruções e requisitos para o cargo, bem como o número de vagas ofertadas e seu respectivo cadastro de reserva. Os servidores ocupantes desse cargo público submetem-se ao regime estatutário, o qual é um regime legal (e não contratual), portanto, qualquer alteração na lei altera o regime jurídico do ocupante de cargo público. Dessa forma, não existe direito adquirido à manutenção desse regime do servidor público, podendo ser alterado unilateralmente, com a mudança da lei que o rege.
2.1 A reserva de vagas a candidatos negros e a Lei nº 12.990/2014
A lei 12.990 de 2014, traz em sua ementa que:
Reserva aos negros vinte por cento das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
Essa reserva de vaga será aplicada sempre que o quantitativo de vagas for maior ou igual a 3, arredondando-se para o número inteiro subsequente quando a fração decimal resultar em maior que 0,5. Logo, a cada 3 vagas, uma é destinada a candidato negro.
O critério para um candidato concorrer nestes moldes é a autodeclaração. Portanto, aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição, poderão disputar com essa reserva de vagas, observados o quesito cor ou raça utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Curioso é que a lei utiliza a palavra “negro” para caracterizar os grupos que o IBGE classifica como pretos e pardos.
A lei traz também, em seu artigo 2º, que na hipótese de constatação falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, claro que em procedimento administrativo que lhe assegure o contraditório e a ampla defesa. É este afinal, um dos pontos mais polêmicos da lei.
Como identificar uma fraude, se o critério de enquadramento da lei é a autodeclaração? As declarações falsas seguem um processo de investigação social, é notório que uma fraude do tipo também pode ser descoberta através de uma denúncia. Daí inicia-se uma checagem de dados e informações prestadas pelo candidato com um cruzamento amplo que identifica a veracidade da declaração. Na realidade, a quantidade de fraudes existentes é imensa, desde os cargos públicos até às vagas em universidades públicas, de pessoas que tiram proveito de um programa de amparo aos desfavorecidos histórica e socialmente.
3 A AUTODECLARAÇÃO COMO ABUSO RECORRENTE
O objetivo principal na criação da lei, que tem vigência de 10 anos e aplicação somente no âmbito da administração pública, é reduzir as diferenças no quantitativo de servidores que ocupam cargos públicos federais, cuja representação era de 30% no Poder Executivo Federal. Junto a isso soma-se à vontade em reduzir as desigualdades sociais e o racismo que assola os indivíduos negros, sendo a lei de cotas uma política de responsabilidade social para os teoricamente menos favorecidos.
A legislação vem para trazer oportunidades a quem não possui perspectivas promissoras e a quem não pode competir igualmente com os demais. Trata-se não só de uma cota racial, mais tacitamente político-econômica, pois abrange negros que historicamente sofrem com as desigualdades, a pobreza, a falta de incentivo, de oportunidade ou diversas injustiças alarmantes nessa sociedade classista.
Agregando-se ao fato de que os autodeclarados negros disputam tanto as vagas da cota quanto da ampla concorrência, surgem oportunistas que tentam burlar a política de inserção social, contrariando todos os princípios de cidadania a qual protege-se. A adoção de tal medida vem ao encontro do entendimento acerca da necessidade de diversidade na administração pública, considerando seu papel na formulação e implantação de políticas públicas voltadas para todos os segmentos da sociedade, e conjuga, ainda, elevado potencial de incentivar a adoção de ações semelhantes tanto no setor público quanto no setor privado.
Estipula-se o prazo de 10 anos para acompanhar a persistência e efetividade da medida temporária no âmbito da administração pública federal. Relevante notar que com essa lei, diversos estados aderiram à iniciativa (ou já tinham antes dela), estipulando suas próprias porcentagens de reservas de vagas a candidatos negros e ainda com subcategorias de renda.
Declarações falsas e oportunistas crescem a todo momento, com o discurso de que a lei não é certa quanto à definição do que é ser negro. Daí surgem fatores de análises raciais, como o fenótipo e traços característicos, porém ser negro não pode se definir só por fatores externos. A autoidentificação revela uma identidade cultural. Um indivíduo considerado branco pode muito bem se autodeclarar negro pelo simples fato de ter nascido entre eles. Por isso, controlar esse quesito não é uma tarefa fácil.
CONCLUSÃO
A responsabilidade social deve ter relevância iminente nesse contexto, utilizando o bom senso para evitar injustiças graves. Com tudo isso, percebe-se que a vigência da lei nº 12.990 alterou significativamente o contexto em que se dava o regime estatutário. As nomeações agora não são predominantemente de brancos, pois criou-se uma maturidade intelectual fraterna quanto a ocupação desses cargos. A realidade social sofre alterações positivas e a perspectiva é que, mesmo com todas as dificuldade e críticas, possamos viver em uma sociedade melhor e mais humana.
Conclui-se que o debate quanto a urgência dessa lei é imediato e necessário, e com uma distribuição etnicamente mais diversificada, percebe-se a justiça sendo feita. Não só porque há negros historicamente prejudicados, como no auge da produção do Café, nem economicamente desfavorecidos, mas sim porque o Direito cumpre o seu papel de aproximar o cidadão de sua dignidade, exerce a sua parte em equilibrar uma balança que há tempos sofre com desmedidas caladas, um dever de equiparar cada indivíduo, pois no final das contas, a cor da pele é o que menos importa.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 24ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2016.
EVANGELISTA, Israel. Entenda como funciona a "cota racial" para concursos públicos no Brasil. Disponível em: <https://jurisrael.jusbrasil.com.br/artigos/243608268/entenda-como-funciona-a-cota-racial-para-concursos-publicos-no-brasil>. Acessado em: 15 de novembro de 2016.
G1, Globo – São Paulo. Candidato a concurso que se declarar negro terá de provar presencialmente. Disponível em: < http://g1.globo.com/economia/concursos-e-emprego/noticia/2016/08/candidato-concurso-que-se-declarar-negro-tera-de-provar-presencialmente.html>. Acessado em: 15 de novembro de 2016.
G1, Globo – São Paulo. Lei que cria cota de 20% para negros no serviço público entra em vigor. Disponível em: <http://g1.globo.com/politica/noticia/2014/06/lei-que-cria-cota-de-20-para-negros-no-servico-publico-entra-em-vigor.html>. Acessado em: 15 de novembro de 2016.
Lei nº 12.990/2014. Congresso Nacional.
LEITE, Carlos Roberto Saraiva da Costa. A escravidão no Brasil: do ciclo do café à abolição. Disponível em <http://www.geledes.org.br/escravidao-no-brasil-do-ciclo-do-cafe-abolicao/#gs.JLPlOFg>. Acessado em: 15 de novembro de 2016.
MARTINS, Amanda Arantes. O trabalho escravo e a evolução das leis na abolição da escravidão no Brasil. Artigo Jus Brasil.
PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. O negro na ordem jurídica brasileira. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo – USP.