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Uma visão crítica do crime de manutenção de depósitos no exterior

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22/06/2004 às 00:00
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No contexto da transformação no panorama mundial, ressalta-se a questão do fluxo de capitais entre os Estados. Não há dúvidas de que a evolução econômica dos países tem se mostrado bastante evoluída e presente nas relações sociais e comerciais.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1.DA PROTEÇÃO DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL- HISTÓRICO LEGISLATIVO, BEM JURÍDICO E COERÊNCIA SISTEMÁTICA, 1.1.EMBASAMENTO HISTÓRICO, 1.2 noção de bem jurídico, 1.2.1 Sistema financeiro nacional como bem jurídico tutelado pela lei 7.492/86; 2ALGUNS ASPECTOS DO CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL DE MANUTENÇÃO DE DEPÓSITOS NO EXTERIOR, 2.1 Norma penal em branco, 2.2 Tipo penal omissivo, 2.3 do erro, 2.4 Sujeito passivo e ativo, 2.4.1 Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 2.4.2 Sujeito ativo, 2.5 Prisão preventiva; 3EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE - ASPECTOS RELATIVOS À DENÚNCIA ESPONTÂNEA TRIBUTÁRIA, 3.1 Da extinção da punibilidade, 3.2 do princípio da consunção, 3.3 A denúncia espontânea do art. 138 do Código Tributário Nacional como causa extintiva da punibilidade, 3.4 Extinção da punibilidade no crime previsto no art. 22 parágrafo único segunda parte; CONCLUSÃO, OBRAS CONSULTADAS


INTRODUÇÃO

Depois da Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, nas duas últimas décadas do século XX, a comunicação e interdependência internacionais acentuaram-se de tal maneira que o mundo passou a funcionar como um sistema global.

As empresas multinacionais apresentaram significativa expansão, somando cerca de 37 mil empresas com mais de 170 mil filiais espalhadas pelo mundo. A maior parte da produção industrial e do comércio mundial passou a ser controlada por essas poderosas empresas multinacionais. [1]

Acordos político-econômicos, envolvendo os setores público e privado de diversas nações, deram origem a organizações econômicas macrorregionais como o Nafta, o Mercosul e a União Européia, que passaram a interligar determinadas regiões do mundo. O objetivo dessas organizações supranacionais é reduzir as barreiras alfandegárias e facilitar as trocas comerciais e financeiras, tornando cada vez mais livre a circulação de bens e serviços entre os países envolvidos.

O crescimento do intercâmbio internacional provocou enorme aumento dos fluxos financeiros, que, atualmente, atingem cifras astronômicas. O volume de dinheiro que diariamente gira pelos mercados financeiros do mundo alimenta operações estimadas entre 2 e 3 trilhões de dólares. [2] Esses capitais especulativos, sedentos de lucro rápido, voam e pousam em qualquer lugar do globo que lhe ofereça vantagens. Mas também decolam velozmente, assustados, quando se sentem ameaçados por problemas locais.

Nesse cenário internacional, um novo processo de divisão do trabalho está em desenvolvimento. Com filiais em diversas regiões do mundo, a empresa multinacional pode instalar as diversas fases de sua operação econômica em unidades situadas em diferentes países, escolhendo-os segundo critérios que lhe pareçam mais vantajosos em termos de salário, qualificação profissional, carga tributária, infra-estrutura urbana, etc. Assim, uma empresa pode optar por instalar sua fábrica na China, o departamento de vendas e contabilidade na Índia e a direção administrativa na Inglaterra. Um produto projetado na Alemanha pode conter peças italianas e ser montado no Brasil.

O fenômeno da globalização é um processo de amplas dimensões sociais, que atinge países, instituições e pessoas de todo o mundo. Suas conseqüências vão alterando o modo de vida desse final de século e, certamente, marcarão o mundo do século XXI.

Hoje, com o extraordinário desenvolvimento dos meios de transporte e comunicação, a informação viaja velozmente, às vezes de forma instantânea, de um extremo do planeta ao outro. E, nesse mundo interligado, universaliza-se a consciência de que é imprescindível criar soluções internacionais em torno das grandes questões do planeta. Cresce a formação de uma opinião pública mundial interessada em discutir e propor medidas para um grande número de temas globais como: a defesa do meio ambiente, o respeito fundamental aos direitos humanos, a repressão ao narcotráfico e ao crime internacional organizado, o controle das epidemias, etc.

Nas relações comerciais, tem se verificado que os países subdesenvolvidos, com suas economias debilitadas, mostram-se incapazes de competir em pé de igualdade no mercado global. Assim, medidas globalizantes como a liberalização e a abertura do comércio mundial significou, para muitos países, a invasão de produtos importados em seus mercados internos sem a necessária contrapartida nas exportações. A ausência de proteção e incentivo à indústria e ao comércio dos países em desenvolvimento levou à desarticulação dos setores produtivos locais, provocando desemprego e desestabilização social.

No contexto desta grande transformação no panorama mundial decorrente do processo de globalização, ressalta-se a questão do fluxo de capitais entre os Estados, como uma das conseqüências. Não há dúvidas de que a evolução econômica dos países tem se mostrado bastante evoluída e presente nas relações sociais e comercias.

Em oposição a todo este processo globalizante, nos deparamos com um sistema jurídico ultrapassado e moroso, totalmente incapaz de solucionar as questões da modernidade.

São os efeitos econômicos da globalização versos uma política criminal que está apenas preocupada em regular o mercado financeiro e com a obtenção de respostas imediatas no combate à criminalidade, o que resulta, na maioria das vezes, em soluções contrárias ao Direito e à própria proteção jurídica dos sujeitos do processo penal. Hassemer refere com autoridade a problemática existente:

A atual política criminal é totalmente diferente do que era há vinte anos atrás. O Direito Penal é incapaz de solucionar os modernos problemas da criminalidade, e nós temos que refletir a respeito de algo que seja melhor, mais eficaz, que seja capaz de solucionar esses problemas. [3]

Por isso, mesmo sendo reconhecida a importância do Sistema Financeiro Nacional para o equilíbrio econômico do País, pode o Sistema Financeiro ser controlado por meio de outros mecanismos que não a norma penal, inclusive por via administrativa. Aliás, o Direito Penal, tal como tradicionalmente concebido, não dispõe de aparato técnico para conceituar e punir com eficácia as condutas lesivas do sistema financeiro. Para tanto, seria necessária a reformulação da teoria do delito, sobretudo no direito brasileiro.

Ou seja, os instrumentos penais que hoje temos não são capazes de solucionar questões econômicas, ainda mais reconhecendo o Direito Penal como ultima ratio.

Tanto é assim, que o controle de câmbio, aliado a uma política econômica efetiva, é a maneira mais rápida de se obter, no Brasil, o equilíbrio das disponibilidades em reservas cambiais, que hoje estão concentradas com os banqueiros internacionais. [4] E não com a criminalização de condutas relacionadas ao câmbio.

Da mesma forma, o mercado tem recebido com aplauso medidas liberalizantes do câmbio, que têm por fulcro dar maior transparência a essas operações, que antes, em decorrência das restrições, concentrava-se no mercado negro como economia informal.

E é como resultado deste contraste entre o direito penal arcaico (tradicional) e o sistema econômico atual, caracterizado pelo dinamismo, que o presente trabalho pretende fazer uma análise da aplicação do art. 22, parágrafo único, segunda parte, da Lei 7.492/86. Primeiramente, preocupando-se com a origem deste diploma legal e sua importância no atual ordenamento jurídico brasileiro.

Em seguida, passaremos ao estudo do tipo penal especificamente, no âmbito doutrinário e jurisprudencial.

Por último, faremos uma abordagem crítica relativa à extinção da punibilidade do agente quando da prática do crime previsto na segunda parte do parágrafo único do art. 22 da Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional.


1.DA PROTEÇÃO DO SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL – HISTÓRICO LEGISLATIVO, BEM JURÍDICO TUTELADO E COERÊNCIA SISTEMÁTICA

1.1 embasamento histórico

As forças políticas que assumiram o poder em 1964 tinham como prioridade o crescimento acelerado da econômica brasileira. Esse modelo baseava-se no seguinte tripé: concentração de renda, ampliação do crédito ao consumidor e a abertura da economia brasileira aos investimentos estrangeiros no país.

O primeiro eixo da política econômica foi proporcionado pela redução do poder aquisitivo dos assalariados. Contribuiu também para a sustentação desta premissa a organização do sistema de tributação nacional, composto por impostos diretos e indiretos. Foram criados, então, os impostos IPI (Impostos sobre Produtos Industrializados), o ICM (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias) e, ainda, o Imposto sobre o Patrimônio e a Renda das pessoas físicas e jurídicas.

O segundo pilar do tripé da política econômica serviu para ampliar a demanda de bens duráveis, possibilitando a participação da classe média nesse patamar de consumo. Porém, esse esquema gerou conseqüências para as camadas populares, pois aumentou rapidamente a quantidade de dinheiro em circulação, elevando as taxas dos juros e da inflação.

O terceiro eixo da política econômica do país foi a abertura do mercado aos investimentos externos. O incentivo às exportações e aos investimentos externos no Brasil aumentou extraordinariamente o crescimento de pequenas e médias indústrias no país. Foi nesta fase do modelo econômico brasileiro que começaram a aparecer as primeiras manifestações legislativas no sentido de proteção do sistema financeiro nacional, tendo como causa a o aumento do intercâmbio de moedas entre os países.

A preocupação com a ordem econômica no Brasil só aconteceu a partir de 1964, no governo Castelo Branco, quando a economia brasileira passou a se adequar às regras da economia capitalista mundial. Até o início da década de 60, não se cogitava falar em Sistema Financeiro, pois se tratava de uma estrutura desajustada e desordenada, totalmente desatualizada em relação às exigências determinadas pelo crescimento industrial. [5]

Foi através de Atos Institucionais que acabaram entrando em vigor na Constituição de 1967 com as alterações impostas pela Emenda Constitucional n° 1, de 1969, que se tratou, pela primeira vez no ordenamento jurídico brasileiro, da proteção do Sistema Financeiro. [6]

A Constituição de 1969, em seu título III, tratou da ordem econômica e social, definindo como finalidade o desenvolvimento nacional e a justiça social. A Constituição Federal de 1988 seguiu no mesmo sentido, estabelecendo a normatização do que chamou de ordem econômica e financeira. [7]

A Constituição Federal de 1988 tratou no Título VII, "Da Ordem Econômica Financeira" e no Capítulo IX "Do Sistema Financeiro Nacional" e, especificamente no art. 192, com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 13 (DOU de 22/8/96), fixou as regras para o Sistema Financeiro Nacional. [8]

Nesse sentido, a principal diferença entre as Constituições de 1964 e de 1988 é que, a última, explicita a importância do Sistema Financeiro Nacional como um dos instrumentos de intervenção estatal na economia do país. [9]

Na época, foram criados o Sistema Financeiro de Habitação [10], o Banco Central [11] e o Conselho Monetário Nacional [12], destacando-se a Reforma Bancária [13] e a Reforma de Mercado de Capitais. [14]

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O Sistema Financeiro Nacional foi regulado pela Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964, sendo recepcionada pela Constituição de 1988. [15]

Por conseguinte, a lesão a essas instituições que compõem o Sistema Financeiro Nacional poderá subsumir aos tipos penais previstos na Lei 7.492/86 que define os crimes contra o Sistema Financeiro. Sobreleve-se que há de se observar os princípios de direito penal amplamente aceitos pelos doutrinadores e aplicados pelos Tribunais.

Quando da edição da Lei 7.492/86, embora presente a preocupação com a criminalização dos atos lesivos ao Sistema Financeiro Nacional, revelou um atraso legislativo na seara penal, valendo-se o legislador, mais uma vez, do concurso exclusivo de técnicos do setor econômico-financeiro, prescindindo da colaboração de juristas especializados em matéria penal.

Manoel Pedro Pimentel refere com propriedade a origem da lei, apresentada como projeto de Lei em 1983 pelo Dep. Nilson Gibson na Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional foi aprovado na Câmara, sendo apresentado no Senado Federal com a emenda n° 1 de autoria do Senador José Lins. [16]

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado propôs a aprovação do Projeto, nos termos da emenda n° 1, concluindo seu parecer no sentido de que a aprovação era necessária e atendia a urgente reivindicação nacional.

Aprovado o substitutivo, retornou o Projeto à Câmara dos Deputados para apreciação. O Projeto foi aprovado, tendo o Relator votado no seguinte sentido:

O projeto sai imperfeito e reclamará a curto prazo nova legislação para revisar alguns de seus pontos. Infelizmente, não nos é mais dada a possibilidade de correção pelo estágio em que se encontra o processo legislativo. [17]

Ou seja, desde o seu nascedouro, a Lei 7.492/86 já tinha problemas. À Câmara dos Deputados restou optar pela aprovação da Lei na forma como estava, aceitando as modificações do Senado Federal, ou não aprová-la. O Relator Deputado João Gilberto dizia ainda:

Infelizmente, fazemos este registro porque o Projeto suscitou debates amplos na comunidade jurídica do País e pela Imprensa e muitas das contribuições ou críticas apresentadas não mais podem ser resolvidas. É o caso, dentre outros, dos seguintes pontos: - A omissão quanto a que organismo exercerá a polícia judiciária nos crimes previstos neste Projeto; a matéria não foi tratada nem pela Câmara, nem pelo Senado, não mais pode ser abordada. – A prisão preventiva provocada pelo clamor público, prevista no projeto nas suas duas versões, e criticadas por alguns juristas como um passo para o reconhecimento ao direito ao linchamento... – A prisão administrativa pelo Ministério da Fazenda. [18]

As impropriedades do novo diploma foram sanadas, em parte, pelo o veto presidencial. Destaca-se o veto parcial do art. 30, que trazia como justificativa para a decretação da prisão preventiva o clamor público provocado pelo crime e a prisão administrativa do art. 32.

Mesmo sancionando a lei, o Presidente da República, deixou consignado na Mensagem n° 252 que:

As críticas ao resultado dos trabalhos da Comissão de Justiça, feitas por quantos desejaram trazer-lhe aperfeiçoamentos, estão em fase final de catalogação e avaliação, para eventual incorporação ao anteprojeto, o qual, tão logo esteja em condições de ser apreciado pelo Congresso Nacional, encaminharei como projeto de lei à apreciação de VV. Exas. [19]

Este breve histórico da criação da Lei 7.492/86 demonstra que a real intenção do legislador foi proteger a integridade do Sistema Financeiro Nacional. Todavia, a legislação que não foi eficiente em 1986 quando da sua criação, hoje, dezessete anos depois, percebemos que a ela sequer permanece com os mesmos objetivos.

1.2 noção de bem jurídico

Como conseqüência do Princípio da Reserva Legal ou Princípio da Legalidade, insculpido no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil e no art. 1º do Código Penal Brasileiro, é necessário que existam bens jurídicos ou valores socialmente relevantes, subsumidos nas normas incriminadoras como objeto de proteção do tipo penal.

O conceito de bem jurídico deverá estar consubstanciado no conteúdo material que legitime a criação de normas, transcendendo o sistema normativo jurídico-penal, orientado pela política criminal. [20] É fator político-criminal de relevante significação no sistema penal, ao apresentar um conceito limite entre o Direito Penal e a Política Criminal. [21] Para a análise do presente trabalho, adotou-se a concepção de bem jurídico como valor social relevante, sendo o objeto de proteção da norma.

Para Miguel Polaino, o bem jurídico se caracteriza pela configuração de valores dignos da tutela penal frente a concretas lesões sobre estes valores. [22] O bem jurídico penal limita o legislador, uma vez que só os valores mais relevantes são merecedores de tutela penal. Portanto, bem jurídico é conteúdo primário do injusto típico e constitui um dos pilares da teoria do delito.

A noção de bem jurídico constitui o marco que delimita as matérias que, estritamente, serão criminalizadas. Para a política criminal, é a tutela dos bens jurídicos que simultaneamente define a função do direito penal e marca os limites da legitimidade da sua intervenção. [23]

Toda e qualquer sociedade, de acordo com determinado momento histórico, tendo em vista os costumes sociais, sua cultura e os seus princípios, acaba por selecionar valores cuja preservação torna-se imprescindível para o equilíbrio e o desenvolvimento sociais. Assim, a sociedade seleciona aqueles valores que considera fundamentais, exigindo que o Estado ofereça proteção intensa, mediante a tutela penal a tais bens. [24]

Conclui-se, assim, que, a sociedade, de acordo com os seus anseios atribui a determinados valores o título de bem jurídico, uma vez que eles se mostram indispensáveis para a manutenção da harmonia social, exigindo que o Estado passe a defendê-los, inclusive, com a privação da liberdade do infrator. [25]

A definição e classificação de bens jurídicos estão implícitas ou explicitamente descritas na Constituição. Assim, a atividade legislativa deverá determinar os bens jurídicos tendo por base vinculativa os preceitos constitucionais, devendo-se aduzir que "a Constituição Federal deve impor contornos inequívocos ao direito de punir". [26]

Desta forma deve ficar claro que o legislador penal, ao definir os bens jurídicos, deverá levar sempre em consideração as diretrizes contidas na Constituição e, principalmente, os valores nela consagrados, os quais emanam dos ideais sociais. [27]

O fato de termos um bem jurídico a ser tutelado pelo Direito não quer dizer que tenhamos, desde logo, que recorrer ao Direito Penal. Nem todos os bens jurídicos necessitam de proteção penal, a qual só deverá ser aplicada quando os outros instrumentos, que podem ser jurídicos ou não, não forem capazes de produzir a efetiva tutela pretendida. Tratamos aqui do princípio da ultima ratio. [28]

É importante que sempre se questione o bem jurídico protegido, não apenas no momento da criação da norma, pois seu caráter social e limitador deverão se prolongar até o final da vigência da norma.

Eduardo Caparrós defende que o direito penal não poderá se constituir exclusivamente sobre uma realidade social sem um mínimo de formalização, pois quando o legislador for criminalizar uma conduta, esta regra jurídica deverá satisfazer níveis mínimos exigidos de segurança, ainda mais quando falamos em matéria criminal. A simples constatação da realidade social poderá nos conduzir a um Direito Penal espontâneo, sem estruturação, lesando as garantias individuais. [29]

Importante ressaltar que a preexistência de um bem jurídico não é suficiente para justificar o direito de punir do Estado. Num Estado personalista a pena aplicada só será legítima quando os demais meios de controle social tenham sido ineficazes. [30]

1.2.1 Sistema financeiro nacional como bem jurídico tutelado pela lei 7.492/86

A Lei 7.492, de 16 de junho de 1986, norma especial, foi criada para a proteção do sistema financeiro. Os crimes contra o Sistema Financeiro mereceram atenção maior do legislador, pois a legislação penal existente não era eficiente para puni-los.

Há uma grande preocupação em proteger o Sistema Financeiro Nacional, pois os crimes cometidos contra ele atingem também a economia nacional. Portanto, o Sistema Financeiro é um bem jurídico importantíssimo que mereceu a proteção penal definida na Lei 7.492, de 16 de junho de 1986, que é uma norma infraconstitucional.

Os tipos penais na referida lei, quando realizados, lesam o Sistema Financeiro Nacional, que deve ser entendido em seu sentido amplo de mercado financeiro, mercado de capitais, inseridos aí os seguros, o câmbio, os consórcios, a capitalização ou qualquer outro tipo de poupança compreendida na área do Direito Econômico. [31]

O art. 1º da Lei n.º 7.492/86 [32] ampliou o conceito de Instituição Financeira, sendo criticado por Manoel Pedro Pimentel, por tratar o referido artigo de forma muito extensiva o conceito de instituição financeira. Para o autor, tal ampliação, ainda que de forma eventual, cria dificuldades de interpretação quando se tratar da responsabilidade penal estruturada nos termos do art. 25 e parágrafo único da lei 7.492/86. [33]

Considerando que a matéria referente às operações de câmbio na Lei 7.492/86 adquiriu nos últimos anos tamanha relevância financeira e jurídica, o presente estudo preocupou-se exclusivamente com a manutenção de depósitos não declarados à repartição pública competente, previsto na segunda parte do parágrafo único do art. 22 da Lei que trata dos Crimes Contra o Sistema Financeiro.

Tal relevância evidencia-se nas operações de câmbio de nosso País, cujo regime permite que a taxa de câmbio [34] seja fixada pelo mercado. Os níveis da oferta e da demanda de moeda estrangeira, isto é, o mercado de câmbio, determinará a taxa cambial aplicável. Os agentes responsáveis pela oferta de moeda estrangeira são os turistas estrangeiros, os exportadores de bens e serviços, os receptores de investimentos externos e os tomadores de empréstimos e financiamentos do exterior. Pela demanda respondem os turistas brasileiros, importadores de bens e serviços, as empresas que repatriam investimentos externos ou pagam lucros e dividendos sobre eles, aquelas que amortizam ou pagam juros sobre empréstimos e financiamentos captados no exterior e os investidores no exterior.

A relevância jurídico-penal das operações de câmbio decorre da expressiva quantidade de negócios jurídicos de valores exorbitantes, com a aquisição escritural dessas divisas no exterior, originárias de negociações internacionais envolvendo bens e serviços ou a troca de recursos em moeda nacional por estrangeira, que envolva compra e venda de papéis por especuladores internacionais, poupadores, turistas e empresários. [35]

As operações cambiais refletem tanto na política cambial do Estado quanto na balança comercial, nas reservas internacionais e, inclusive, no equilíbrio econômico do País. Por isso, até mesmo as operações de câmbio realizadas por particulares sujeitam-se ao estrito controle governamental, evitando o êxodo de divisas e a sonegação fiscal. [36] E todas estas questões são reguladas pelo direito pátrio, tanto na esfera administrativa como na esfera criminal, todavia, entendemos que a segunda parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86 não tem como objeto de sua tutela o bem jurídico Sistema Financeiro Nacional.

Se a remessa de valores foi efetuada na forma estabelecida em lei, a obrigação de o agente prestar a informação da "manutenção de depósito no exterior" não tutela o bem jurídico Sistema Financeiro Esta informação só teria importância para o Sistema Financeiro Nacional se existisse um limite individual para manutenção de depósitos, ou seja, cada manutenção de depósito não poderia ultrapassar determinado valor. Tratar-se-ia de um rígido controle do Sistema Financeiro Nacional.

Sendo assim, se a segunda parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7;492/86 não tutela o bem jurídico Sistema Financeiro Nacional, como acabamos de concluir, entendemos que seu único objetivo no nosso ordenamento jurídico é tutelar o bem jurídico Ordem Tributária, pois o quantum depositado só interessa para fins de cobrança de impostos.

Nas palavras de Hassemer: "Não podemos esquecer que a política criminal e o Direito Penal têm um aspecto normativo, o aspecto da Justiça, o equilíbrio da proteção jurídica dos atingidos pelo processo penal." [37]

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Sobre a autora
Camila Tagliani Carneiro

Advogada – Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARNEIRO, Camila Tagliani. Uma visão crítica do crime de manutenção de depósitos no exterior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 350, 22 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5389. Acesso em: 22 nov. 2024.

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