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Uma visão crítica do crime de manutenção de depósitos no exterior

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22/06/2004 às 00:00
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3.EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE - ASPECTOS RELATIVOS À DENÚNCIA ESPONTÂNEA TRIBUTÁRIA

3.1 Da extinção da punibilidade

As características da ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade presentes ao fato, são suficientes para determinar sua punibilidade. Excepcionalmente, a punibilidade, que é eminentemente estatal, dependerá dos pressupostos: condições objetivas de punibilidade e fundamentos excludentes de pena. [92]

A punibilidade é, assim, uma das condições para o exercício da ação penal, nos termos do art. 43, II do Código de Processo Penal, podendo ainda ser definida como a possibilidade jurídica de o Estado aplicar pena ou medida de segurança. [93]

Todavia, existem causas que extinguem o direito de punir do Estado. Estas causas podem ser gerais ou especiais. As primeiras estão enumeração no art. 107 do Código Penal. [94]

Por não se tratar o artigo 107 de um rol taxativo, o Direito Penal Brasileiro admite causas especiais de extinção da punibilidade, que estão previstas nas legislações esparsas. Por exemplo, o pagamento do tributo ou da contribuição social antes do recebimento da denúncia, conforme prevê o art. 34 da Lei 9.249/95 é fato que extingue a punibilidade do agente.

Quanto aos efeitos, as causas de extinção da punibilidade podem ocorrer antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Nesta situação, na maior parte dos casos, a causa extingue o próprio jus puniendi estatal, apagando todos os efeitos do processo, diferentemente do perdão judicial e do indulto. [95]

Mas as causas que extinguem a punibilidade podem acontecer também depois do trânsito em julgado da sentença. Neste caso, a regra geral é que a condição extinga apenas o título executório ou a pena. Há casos porém que se extinguem todos os efeitos da sentença e o próprio delito, como por exemplo a abolitio criminis. [96]

3.2 do princípio da consunção

O princípio da consunção é mais um tema relevante a ser tratado no estudo do crime de manutenção de depósito no exterior sem declaração. Isto porque o principal objetivo da abertura e da manutenção de contas bancárias em outros países é o descumprimento das obrigações fiscais.

O agente mantém a conta não declarada no exterior com a finalidade de evadir-se do pagamento de impostos, ou seja, a manutenção é o meio pelo qual o agente pratica o crime de sonegação. A existência da conta que, obviamente, não é declarada, é o crime meio necessário para a prática do crime fim de sonegação previsto no art 1° da Lei 8.137/90. [97]

O princípio da consunção soluciona a questão do conflito de normas, determinando que o tipo de maior gravidade absorve o segundo tipo, que constitui o meio regular para a prática do primeiro. [98]

Neste sentido, deixa o agente de informar a conta ao Banco Central para fins de cometimento do crime de sonegação fiscal. A não informação deverá ser absorvida pelo crime mais grave, qual seja, o de sonegação fiscal. Cabe, nestes casos, a aplicação do princípio da consunção, pois não poderia sonegar os impostos se declarasse a existência da conta, assim como os depósitos nela realizados.

No mesmo sentido são os julgados relativos aos crimes de falsificação que precedem ao crime de estelionato: "Esgotando-se a potencialidade lesiva das falsidades, nos crimes de estelionato perpetrados, seja em sua modalidade tentada ou consumada, ficam aquelas condutas absorvidas pela conduta mais gravosa. Incidência da previsão do verbete da Súmula n° 17 do STJ e do princípio da consunção". [99]

Portanto, está claro que a manutenção de depósitos não declarados no exterior é o meio necessário para a prática do crime de sonegação fiscal. E com a aplicação do princípio da consunção, o agente responderá criminalmente só pelo delito de maior gravidade.

Assim, sendo o crime tipificado no art. 22 parágrafo único da lei 7.492/86 um crime meio para prática da sonegação fiscal, a extinção da punibilidade deste último será estendida ao primeiro. Ou seja, considerando que o pagamento do tributo antes do oferecimento da denúncia extingue a punibilidade do agente sonegador, também está extinta a punibilidade quanto à manutenção desses depósitos não declarada.

Especificamente sobre o crime meio de falsificação, o Desembargador Mário César Ribeiro do 1° Tribunal Regional Federal assim se manifestou: "Ocorrendo a extinção da punibilidade do crime-fim pelo pagamento do débito tributário antes do oferecimento da denúncia, impõe-se, conseqüentemente, o trancamento da ação penal instaurada para apurar a responsabilidade do crime de falsidade, por falta de justa causa. O falso, na sonegação fiscal, não é crime autônomo, mas meio fraudulento empregado para a prática desse último" [100]

Esta possibilidade de extinção da punibilidade corrobora com os argumentos da sistemática criminal, que serão tratados no próximo seguimento deste trabalho, referentemente à impossibilidade de o agente informar a manutenção de depósitos fora do prazo estabelecido pelas Circulares do Banco Central, totalmente contrária à política aplicada no art. 38 do Código Tributário Nacional que trata da possibilidade da realização da denúncia espontânea.

Está explícita a quebra da logicidade do nosso ordenamento jurídico, pois para que o agente não responda pelo crime de manutenção de depósitos não informado no exterior, é mais interessante que ele sonegue os impostos decorrentes destes valores depositados e realize o pagamento dos mesmos antes do oferecimento da denúncia. Esta é a única forma que o regramento jurídico-penal brasileiro possibilita ao agente que não informou o depósito no prazo estabelecido pelo Banco Central, não ser responsabilizado criminalmente com base no art. 22 parágrafo único segunda parte da Lei 7.492/86.

Ou seja, se o agente, por algum motivo, deixou de prestar a declaração relativa aos depósitos, a sua melhor opção é praticar o crime de sonegação fiscal, pois efetuando o pagamento antes do oferecimento da denúncia extinguirá a punibilidade tanto da sonegação como da manutenção de depósito não declarado, porque este foi o meio empregado para a sonegação.

3.3 A denúncia espontânea do art. 138 do Código Tributário Nacional como causa extintiva da punibilidade

O art. 138 do Código Tributário Nacional trata de uma causa extintiva da punibilidade penal do agente, dispondo:

Art. 138 – A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.

Parágrafo único: Não se considera espontânea denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração.

O presente dispositivo é uma causa especial de extinção da punibilidade, eis que não está entre as enumeradas no art. 107 do Código Penal.

O art. 138 do Código Tributário Nacional estatui que se o contribuinte, espontaneamente e antes do início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização relacionados com a infração, reconhece e confessa a infração cometida, efetuando, se for o caso, concomitantemente, o pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ficará excluído da responsabilidade (multa) pela infração à legislação tributária.

O Código Tributário Nacional, ao tratar da responsabilidade por infrações da legislação tributária, abre exceção, dispondo que a denúncia espontânea implica na exclusão dessa responsabilidade.

Inclusive, a exoneração da responsabilidade pela infração e da conseqüente sanção, assegurada, amplamente, pelo art. 138 do Código Tributário Nacional, compreende também a exclusão da multa de mora, em atenção e prêmio ao comportamento do contribuinte, que toma a iniciativa de denunciar ao Fisco a sua situação irregular, para corrigi-la e purgá-la, com o pagamento do tributo devido, juros de mora e correção monetária. [101]

A denúncia espontânea foi concebida não apenas para beneficiar o contribuinte, senão também para favorecer a Fazenda Pública, na medida em que, afastando penalidades, estimula o contribuinte a adimplir suas dívidas tributárias, causando o aumento da arrecadação.

Cuida-se de uma decisão política jurídica com a qual o legislador premia o cumprimento das obrigações tributárias.

Portanto, a denúncia espontânea da infração exclui qualquer penalidade, sendo devidos apenas juros de mora, que não possuem caráter punitivo, constituindo mera indenização decorrente do pagamento fora do prazo, ou seja, da mora, como aliás consta expressamente do citado artigo 138 do Código Tributário Nacional.

Em se tratando de infração à obrigação acessória, a confissão espontânea também afasta a multa punitiva.

A exclusão da responsabilidade criminal prevista no art. 138 do CTN tem conseqüências penais, ou seja, tem efeito retroativo, extinguindo punibilidade de todas as ações, inclusive com trânsito em julgado.

A exclusão da responsabilidade acontece tanto nas infrações que resultam como nas que não resultam no descumprimento de pagar o tributo. Segundo Alexandre Tavares:

(...) tratando-se de uma infração puramente formal, isto é, não decorrente da falta de pagamento do tributo (v.g., obrigação de prestar declarações, etc.), o simples cumprimento a destempo desse dever instrumental, desde que anterior a qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, configurará igualmente a denúncia espontânea.

Se o infrator da legislação tributária procura espontaneamente o fisco para regularizar sua situação, não fica sujeito a penalidade nenhuma. Assim, o contribuinte que confessa o cometimento de infração, não será punido.

Neste mesmo sentido concluímos que de nada adiantaria possibilitarmos a denúncia espontânea se o agente fosse penalizado pelo crime de depósito no estrangeiro não declarado. Assim como também, com a nova legislação, quebraria a unicidade do sistema, já que nos crimes tributários existe a possibilidade de o agente se eximir de toda a responsabilidade inclusive criminal, enquanto que nos crimes contra o sistema financeiro tal situação não é proporcionada ao agente infrator.

Importante ressaltar que as infrações podem até passar desapercebidas dos sujeitos ativos, e, mesmo no caso de sua ciência, podem não querer saná-las, colocando-se sob risco de ação fiscal; ou, ao contrário, podem os sujeitos ativos proceder à sua regularização, a fim de guardar plena obediência aos ditames legais.

Isto significa que a denúncia espontânea, além de afastar a penalidade da esfera administrativa, afasta também a responsabilidade criminal do agente, pois não haveria o menor sentido em criar uma legislação favorecedora num primeiro momento em que regulariza a situação do contribuinte junto ao fisco e como conseqüência disto, o agente respondesse criminalmente pela mesma ação irregular.

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Trata-se, pois, de um efeito inerente ao instituto da denúncia espontânea, emergente do fato inequívoco de que os delitos de fundo tributário são típicos "delitos de superposição", isto é, dependem da violação dolosa ou fraudulenta dos deveres materiais e formais minuciosamente descritos nas leis fiscais. [102]

Do que se conclui ser impossível admitir a existência de qualquer crime fiscal sem, simultaneamente, se configurar ilícito fiscal. Nas palavras de Alexandre Tavares:

Não fosse assim, estaríamos diante de uma camuflada "armadilha fiscal", através da qual o Poder Público acenaria com a mão direita para o prêmio da dispensa de sanções administrativas, aproveitando o ensejo para com a mão esquerda imputar-lhes as sanções pelo cometimento de delito de fundo tributário. desnecessário maiores digressões para se constatar que tal comportamento traduziria inominável deslealdade administrativa, incompatível com o postulado da moralidade pública e com a idéia de Estado de Direito. [103]

A análise feita do art. 138 do Código Tributário Nacional tem uma explicação bastante plausível para o presente estudo, pois o ato de não prestar informação de depósitos no exterior é uma conduta que afeta dois bens jurídicos diferentes, a Ordem Tributária e o Sistema Financeiro Nacional, protegidos por também normas diferentes.

Se numa mesma ação o agente pratica dois delitos, não resta dúvida que trata-se de um concurso formal de crimes.

O problema que depreendemos disto é que, no caso do crime tributário, o agente possui o direito subjetivo previsto do art. 138 do Código Tributário Nacional que é denunciar-se espontaneamente ao fisco, regularizando sua situação e pagando eventuais valores em atraso devidamente corrigidos monetariamente, tendo sua punibilidade extinta, ficando isento do pagamento de multa e de responder a processo criminal. Todavia, fazendo a denúncia, estará confessando o crime contra o Sistema Financeiro Nacional para o qual não vige o dispositivo da denúncia espontânea.

Também no ordenamento espanhol, a reforma do Código Penal em 1995 trouxe uma nova situação, abrindo a possibilidade ao defraudador de excluir sua responsabilidade penal regularizando espontaneamente sua situação tributária. A política criminal passa a utilizar um novo método, possibilitando a isenção penal ao criminoso tributário que regularizar sua situação espontaneamente. Segundo Sánchez Ostiz Gutiérrez, tal medida fundamenta-se na busca da atuação efetiva e eficiente do direito penal. [104]

Considerando a disparidade de tratamento dado pela legislação pátria relativamente ao reconhecimento da denúncia espontânea como causa extintiva da punibilidade do agente nos crimes de sonegação fiscal e não aplicação nos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, este estudo preocupou-se em trazer alternativas para solucionar o impasse.

3.4 Extinção da punibilidade no crime previsto no art. 22 parágrafo único segunda parte

O absurdo jurídico causado pelo conflito entre as legislações que atualmente dispõem sobre a matéria, que resultou na demonstrada ruptura do sistema jurídico nacional. Por essa razão, passaremos a analisar a denúncia espontânea como causa de extinção da punibilidade também no crime de manutenção de depósitos no exterior sem a devida informação à Repartição Federal, conforme dispõe o parágrafo único do art. 22, da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.

O ordenamento jurídico é constituído por um complexo de normas ordenadas e esta ordem é o elemento essencial do sistema. Por isso, segundo Miguel Polaino Navarrete, o Direito é um sistema de normas ordenado, unitário e coerente. [105]

As normas jurídicas contraditórias ferem a principal característica da dogmática penal que propugna pela criação de um sistema normativo, cuja perfeição sistemática facilite o conhecimento da lei e a sua aplicação proporcione as soluções mais justas nas questões jurídicas. [106]

Considerando o Direito como um sistema, a interpretação de um dispositivo de lei de forma isolada ou descontextualizada resultará incompleta e imprecisa. No ensinamento de Carlos Maximiliano, o processo sistêmico do Direito consiste "em comparar o dispositivo sujeito à exegese, com outros do mesmo repositório ou de lei diversas, mas referentes ao mesmo objeto". [107]

Segundo Giuseppe Bettiol, as normas não são isoladas, individualizadas. Fazem parte de um agrupamento com base em critérios superiores aos escopos singulares próprios de cada uma das normas. [108]

Por isso, sendo o mesmo bem jurídico tutelado pelas regras do art. 2° da Lei 8.137/90 e do art. 22, segunda parte do parágrafo único da Lei 7.492/86, o benefício da denúncia espontânea é aplicável em ambas, observando-se a unicidade do direito.

A aplicação da denúncia espontânea no art. 22 da Lei 7.492/86 trata-se da aplicação da analogia bonam partem, trazendo benefício ao réu, o que é amplamente admitido em Direito Penal.

A analogia é suscitada quando reconhecida a insuficiência legislativa em determinada matéria. Trata-se de uma lacuna na lei que deverá ser preenchida. A interpretação analógica baseia-se em critérios de proporcionalidade e semelhança, partindo-se da razoabilidade lógica do sistema jurídico. (109)

A justificativa da analogia como forma interpretativa encontra-se no princípio da legalidade, cuja função é a de limitar o jus puniendi estatal. Discute-se a aplicação da analogia em Direito Penal, todavia não há qualquer impedimento quanto a sua aplicação in bonam partem." [110]

Na discussão da aplicabilidade do art. 138 do Código Tributário Nacional no crime previsto na segunda parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86, há comprovada disparidade entre as normas jurídicas que regem a proteção do Sistema Financeiro Nacional (Lei 7.492/86) e os Crimes de Sonegação Fiscal (Lei 8.137/90).

Neste sentido, o Juiz, buscando a uniformização do Direito e a congruência do sistema de normas, deve aplicar ao caso a regra anteriormente fixada em caso semelhante [111], o que justifica a aplicação da analogia como forma interpretativa.

Segundo Carlos Maximiliano, a analogia está fundada na igualdade jurídica, exigindo que as espécies semelhantes sejam reguladas por normas também semelhantes, com o principal intuito de manter o rigor lógico do regramento jurídico. [112]

O processo da analogia prevalece há muito tempo no nosso ordenamento. Compete aos magistrados preencher as lacunas do Direito, mantendo a universalidade do sistema jurídico e reconhecendo sua verdadeira unidade. A analogia se fundamente na manutenção da harmonia entre as normas que compõem o sistema jurídico. [113]

Como os sistemas não são absolutamente fechados, o direito está em constante mutação, adaptando-se à realidade social, sempre na busca do equilíbrio e da estabilidade jurídica. [114] A aplicação da analogia se justifica por eliminar contradições, mantendo a unidade do próprio sistema jurídico.

Assim, o art. 138 do CTN é aplicado tanto no caso do art. 2° da Lei 8.137/90, referentemente ao crime de sonegação fiscal, quanto ao crime previsto no art. 22 parágrafo único da Lei 7.492/86, que trata da não informação ou prestação da informação falsa à autoridade competente.

Contrariamente ao defendido neste estudo, se, na seara tributária, um agente for beneficiado por ter optado pela denúncia espontânea da infração, mas pelo mesmo ato vier a ser considerado réu confesso de acordo com a legislação dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, restará claramente demonstrada a ruptura do sistema pela completa ilogicidade.

Até a edição da Resolução 2.911 do Conselho Monetário Nacional, o agente prestava apenas uma declaração para não cometer os crimes de sonegação e o de manutenção de depósitos não declarados. Mesmo que a falta de declaração resultasse na prática de dois crimes tipificados em diferentes normas penais, a denúncia espontânea do art. 138 do Código Tributário Nacional, nestes casos, extinguia a responsabilidade penal e/ou administrativa do agente, tanto para o crime de sonegação fiscal da Lei 8.137/90, como também para o crime de manutenção de depósito não declarado ao Banco Central da Lei 7.492/86.

Atualmente, com a edição dessa Resolução, as declarações para o Imposto de Renda e para fins de apuração de crime contra o Sistema Financeiro passaram a ser realizadas de forma totalmente independentes. [115] Tal fato resulta na possibilidade da existência de crime contra o Sistema Financeiro Nacional e não contra a Ordem Tributária e vice e versa.

De forma exemplificativa, se hoje o agente declara depósitos no exterior para fins do crime contra o Sistema Financeiro Nacional e não faz o mesmo na declaração de Imposto de Renda, estará cometendo crime contra a Ordem Tributária, tendo a possibilidade de ver sua responsabilidade administrativa e criminal extinta se optar, livremente, pela denúncia espontânea do art. 138 do Código Tributário Nacional.

Mas se o agente fizer a declaração para fins fiscais e não para a Repartição Federal competente para receber as declarações para fins de proteção do Sistema Financeiro, a legislação pátria não prevê de forma explícita a possibilidade para faze-lo através da denúncia espontânea. Ou seja, se antes da Resolução 2.911 não existia qualquer dúvida quanto à aplicabilidade do disposto no art. 138 do Código Tributário Nacional também no crime previsto na segunda parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86, por que a simples diferenciação na forma de realização da declaração tornaria a regra inaplicável?

Neste sentido, se espontaneamente o agente opta pela regularização de sua situação junto ao fisco e ao próprio Banco Central, não será incentivado a faze-lo porque estará confessando um crime, pois o agente não se beneficiaria da denúncia espontânea no caso previsto na segunda parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86.

O não reconhecimento de que continuam aplicáveis os efeitos da denúncia espontânea do art. 138 do Código Tributário Nacional, mesmo que de forma implícita, no crime previsto na segunda parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86, gera uma incongruência normativa no nosso sistema, pois o mesmo ato de declarar passa a ser tratado de forma diferenciada pela legislação. O resultado disso é que, com relação ao crime tributário, o agente tem a possibilidade de ter sua punibilidade extinta, enquanto que no crime contra o Sistema Financeiro, o único incentivo do agente é o benefício previsto no art. 16 do CP que trata do arrependimento posterior, podendo reduzir a pena em até dois terços.

Se, no âmbito fiscal o agente tem a possibilidade de fazer a denúncia espontânea, regularizando sua situação junto ao fisco, o mesmo acontece com relação ao crime do art. 22, parágrafo único da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro, embora não exista previsão explícita da lei neste sentido. Até porque, sendo o mesmo bem jurídico tutelado pelas normas, qual seja, a Ordem Tributária, a não aplicação do art. 138 do Código Tributário Nacional resultaria na quebra de toda uma sistemática lógica.

A não aceitação da aplicação da denúncia espontânea também em relação à segunda parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86 apresenta problemas, como, por exemplo, no caso de um agente que tenha mantido desde 1998 uma conta bancária no exterior sem declarar ao Imposto de Renda, ou seja, durante cinco anos sonegou impostos e cometeu crime contra o Sistema Financeiro Nacional.

Em 2003, o agente pretende regularizar sua situação. Em relação aos créditos tributários, apresenta denúncia espontânea e recolhe os valores referentes ao tributo devido, correção monetária e multa de mora, extinguindo sua punibilidade. É também a intenção do agente declarar seus depósitos à Receita Federal, mas com a resolução 2.911 do Conselho Monetário Nacional deverá optar por não faze-lo, pois estaria realizando uma "denúncia espontânea" com caráter de "confissão espontânea", pois a legislação em vigor, neste caso, trás como único incentivo a diminuição de pena do arrependimento eficaz prevista no art. 16 do Código Penal Brasileiro.

Ou seja, responder processo-crime conforme previsto na segunda parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86, embora com a diminuição de pena, certamente não será motivo suficiente para que o agente regularize sua situação junto ao fisco.

Além de não incentivar o agente a apresentar as declarações não prestadas nos anos antecedentes, a Resolução 2.911 ainda condiciona o agente a permanecer na ilegalidade, pois a regularização fiscal acarretará, obrigatoriamente, na confissão do crime de manutenção de depósito do art. 22 da Lei 7.492/86. Este descompasse legislativo também acaba por descaracterizar a figura da denúncia espontânea, que tem como cerne um benefício para o agente, incentivando-o a praticá-la.

Trata-se aqui de uma incongruência legislativa, eis que a denúncia espontânea beneficia o agente por um lado, mas pune por outro. Como um mesmo fato poderia eximir o agente da aplicação de penalidade numa determinada ação e criminalizá-lo noutra?

É inadmissível que o Estado oportunize ao agente a regularização de seus atos junto ao fisco, abrindo mão de seu poder de punir e, como conseqüência disso, puna o agente por outro crime. Tal situação caracteriza um verdadeiro descompasso jurídico que o Direito Penal e o Estado não podem tutelar.

Com a evolução legislativa e a autonomia das declarações, o autor de um ilícito fiscal, que deixando de informar na declaração de Imposto de Renda o seu patrimônio no exterior, pode, agora, informar tais quantias junto à Repartição Federal se eximindo da prática criminosa prevista no art. 22 parágrafo único da Lei 7.492/86. Ou, ao contrário, praticar o crime contra o Sistema Financeiro Nacional e não contra a Ordem Tributária, conforme já visto nos parágrafos anteriores.

O que se pretende demonstrar com esta análise é que, num primeiro momento, a denúncia espontânea dos delitos tributários perde sua eficácia quando o autor da denúncia assume a prática de outro delito não beneficiado pela extinção da punibilidade. Num segundo, referente a atual legislação, que mesmo não tratando de forma explícita, admite a aplicação da denúncia espontânea também nos crimes contra o Sistema Financeiro, conforme demonstrado por seu histórico legislativo, defesa de um sistema lógico-normativo e sobretudo, porque estamos tratando de dois tipos penais que protegem o mesmo bem jurídico, qual seja, a "Ordem Tributária Nacional".

Esta questão de extrema complexidade é tratada pela política-criminal. Se considerarmos o Direito Penal como Direito de ultima ratio chegaremos à conclusão de que a possibilidade da denúncia espontânea, também nos Crimes contra o Sistema Financeiro, é uma forma de proteção ao bem jurídico "Ordem Tributária", proporcionando ao infrator uma condição benéfica para que denuncie sua infração, dispensando toda a movimentação do aparato jurídico-penal estatal.

E mais, se fizermos uma breve análise do caso concreto, veremos que além da defesa de um sistema jurídico lógico e coerente, sequer existe o dolo do agente na referida atividade criminosa, pois ao fazer a declaração, mesmo a destempo, ficarão totalmente descaracterizadas a consciência e vontade [116] de realizar objetivamente o tipo.

Quando o agente declara espontaneamente que possui depósitos no exterior, essa conduta passa a ser atípica, já que o tipo em comento não prevê a forma culposa.

As próprias circulares do Banco Central fazem a previsão do pagamento fora do prazo determinado, com a aplicação de multa como penalidade. Ou seja, se por algum motivo o agente não conseguiu efetuar a declaração no prazo estabelecido, poderá faze-lo quando em qualquer momento, respondendo pela multa fixada.

Além do mais, se o agente enviou licitamente as quantias para o exterior, cumprindo a determinação da primeira parte do parágrafo único do art. 22 da Lei 7.492/86, que dolo terá o agente em não prestar informação anual de manutenção desta conta?

Salvo entendimentos contrários, por uma questão de eficácia das normas penais e logicidade do sistema, principalmente no que se refere a proteção do bem jurídico "Ordem Tributária", cabe a aplicação da denúncia espontânea do art. 138 do Código Tributário Nacional ao art. 22, parágrafo único, segunda parte, da Lei 7.492/86.

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Sobre a autora
Camila Tagliani Carneiro

Advogada – Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARNEIRO, Camila Tagliani. Uma visão crítica do crime de manutenção de depósitos no exterior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 350, 22 jun. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5389. Acesso em: 26 abr. 2024.

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