A possibilidade das uniões poliafetivas no vigente ordenamento jurídico brasileiro

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21/11/2016 às 11:12
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O presente trabalho monográfico tem como objeto demonstrar, pelo método dedutivo, a possibilidade das uniões poliafetivas no vigente ordenamento jurídico brasileiro.

“O Direito não é filho do céu. É um produto cultural e histórico da evolução humana.” (Tobias Barreto)

RESUMO

            O presente trabalho monográfico tem como objeto demonstrar, pelo método dedutivo, a possibilidade das uniões poliafetivas no vigente ordenamento jurídico brasileiro, por meio de dados históricos, científicos, estatísticos, jurisprudenciais e legais, tendo em vista o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, que oportuniza o direito à liberdade e à autonomia da vontade, todos devidamente amparados pela Carta Magna, os quais asseguram que o Estado deve proporcionar ao indivíduo os meios necessários para que este possa alcançar sua própria felicidade, de modo que o Estado não deve simplesmente impor um modelo familiar rígido, e interferir desnecessariamente na liberdade e autonomia da vontade de seus próprios subordinados, afinal, a imposição legal de um modelo rígido à uma sociedade em constante desenvolvimento desconstitui a razão de ser do próprio Direito, uma vez que, este deve estar atento às evoluções sociais, para que possa atender à sociedade a qual se destina.

PALAVRAS-CHAVES:

            Uniões poliafetivas; princípio da Dignidade da Pessoa Humana; felicidade; liberdade; autonomia da vontade.

INTRODUÇÃO

            É sabido que a sociedade tende a viver em constante evolução, afinal, se assim não o fosse, estaria totalmente estagnada. Além disso, sabe-se que cada indivíduo, conforme indica a própria palavra, é dotado de características próprias que o individualizam.

            Diante desta individualidade é que surge a necessidade do Direito de resguardar os interesses individuais antagônicos, de modo que haja um convívio harmônico entre os indivíduos em uma sociedade, atentando sempre às evoluções sociais.

            Ou seja, o Estado deve garantir e instituir meios pelos quais o indivíduo possa buscar a sua própria felicidade, devendo interferir apenas nos casos de falta de sua capacidade técnica de escolha. Tal é o entendimento adotado pelo vigente ordenamento jurídico, e expresso por meio do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, conforme disposto na Carta Magna.

            Neste aspecto, tendo em vista que a sociedade tende a estar em evolução, e sendo certo que cada ser humano é dotado de características e peculiaridades individuais, devendo o Estado instituir e garantir meios para que o indivíduo alcance seus objetivos, é que se passa a questionar a interferência do Estado na imposição de um modelo familiar rígido.

            É sobre tal ótica que o presente trabalho monográfico, ao utilizar-se do método dedutivo, passa a demonstrar, por meio de dados históricos, estatísticos, científicos e legais, a possibilidade das uniões poliafetivas no vigente ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista, que não afronta a nenhum princípio constitucionais, e nem mesmo ao modelo monogâmico, pelo contrário, o mesmo está devidamente resguardado pelo Princípio da Dignidade da pessoa humana.

CAPÍTULO II – RELATO HISTÓRICO DA FORMAÇÃO DAS FAMÍLIAS E A ATUAL MONOGAMIA

2.1. Formação das primeiras organizações familiares

Não há certeza quanto a origem da primeira família. Entretanto, estudos, como o de Adahyl Lourenço Dias, apontam que as primeiras organizações familiares ocorreram já nos primórdios onde os grupos primitivos se congregavam em clãs, a fim de se defenderem e buscarem alimentação.

Assim afirma o citado autor em sua obra “A concubina e o Direito Brasileiro”:

Os grupos primitivos, incipientes quanto à origem, congregaram-se em clãs, obedientes aos costumes determinados e em defesa do necessário à subsistência. A preocupação girava em torno da alimentação.[1]

Neste período, a humanidade era movida instintivamente pelos seus sentimentos, de modo que, tanto a mulher, quando o homem, poderiam ter tantos parceiros, quanto lhes fossem possíveis adquirir e manter.

Em seu estudo, Adahyl Lourenço Dias afirma que “dentre os elementos agregadores da família primitiva, destaca-se o da atração da espécie”[2], e que “o isolamento é repelido pela natureza humana”[3]. Portanto, conforme Vicente de Faria Coelho, “a família é um fato natural”[4].

Neste sentido, os agrupamentos dos clãs, naturalmente criaram a convivência entre as pessoas e estimularam sentimentos já existentes no homem primitivo, como por exemplo, o afeto. No valioso entendimento de Adahyl Lourenço Dias:

A voz do sentimento, a fala do coração, a ordem imperativa da afeição teriam forçado o entrelaçamento dos sexos e determinado na prole o maior aconchego ao recesso do grupo[5]

Em contrapartida, alguns estudiosos, tais como João Baptista Villela[6], e Jacques Lancan[7], afirmam que a família é um fato cultural e não natural, uma vez que não se trata de ligação biológica, e sim do posto que o indivíduo ocupe e como desempenha a sua função de pai, mãe ou filho.

Desta forma, se a família for considerada como fato natural, significa dizer que naturalmente as pessoas se unem por sentimentos próprios e inerentes da raça humana, como o afeto. Por outro lado, se considerada como fato cultural, entende-se que a família não surge de laços biológicos, não sendo o afeto a consequência de uma consanguinidade, mas da forma que o indivíduo ocupa e desempenha a sua função naquela organização familiar.

Outrora, não é objeto do presente estudo discutir a efetiva natureza da família, se fato cultural ou natural, uma vez que, isto já foi matéria de grandes estudos, não havendo necessidade de abordar novamente o tema em minúcias. Basta apenas indicar como surgiram as primeiras organizações familiares, a fim de que se entenda o atual modelo familiar. Neste aspecto, Rodrigo da Cunha Pereira, supera tal divergência da seguinte forma:

Em algumas tribos e em variados lugares, elas se apresentam de forma poligâmica ou monogâmica, patriarcal ou matrilinear. Seja no estado de natureza ou no estado de cultura, em qualquer tempo ou espaço, sempre como um grupo natural de indivíduos unidos por uma dupla relação biológica: por um lado a geração, que dá os componentes do grupo; por outro, as condições de meio, que postulam o desenvolvimento dos mais novos, enquanto os adultos garantem a reprodução e asseguram a manutenção do grupo. Mas será mesmo a família uma organização natural? O que verdadeiramente mantém e assegura a existência da família? Será a lei jurídica associada ao afeto e aos laços de consanguinidade? João Baptista Vilela em seu trabalho Desmobilização da Paternidade já demonstrou, referindo-se à paternidade que esta não é um fato da natureza e sim um fato cultural. Embora se refira, neste texto, especificamente à paternidade pode-se estendê-lo para a questão de família como um todo, consequentemente. [...] a família não é um grupo natural, mas cultural. Ela não se constitui apenas por homem, mulher e filhos. Ela é antes, uma estruturação psíquica, onde cada um dos seus membros ocupa um lugar, uma função [...] sem entretanto estarem necessariamente ligados biologicamente. É essa estrutura familiar, que existe antes e acima do Direito, que nos interessa investigar e trazer para o Direito. E é mesmo sobre ela que o direito vem regulando e legislando, sempre com o intuito de ajudar a mantê-la, para que o indivíduo possa, inclusive, existir como cidadão (sem essa estruturação familiar na qual há um lugar definido para cada membro, o indivíduo seria psicótico) e trabalhar na construção de si mesmo (estruturação do sujeito) e das relações interpessoais e sociais que remetem a um ordenamento jurídico.[8]

Conclui-se, portanto, que já nos tempos primitivos, a família era constituída com base no afeto, uma vez que, se considerada como fato natural, entende-se que está ligada por sentimentos naturalmente provocados, e se considerada como fato cultural, entende-se que está ligada não ao vínculo consanguíneo, mas ao afeto existente entre os membros do grupo, manifestado na forma que estes desempenham suas funções naquela família.

2.1.1. Período de promiscuidade

Acreditou-se, até o início do Século XIX, conforme afirma Rodrigo da Cunha Pereira[9], que houve uma época de promiscuidade, ou seja, que não havia regra quanto à prática de relações sexuais, de modo que as relações eram desordenadas como a dos animais, onde haveria a possibilidade de pais se relacionarem com filhos e de irmãos com irmãs. Todavia, trata-se apenas de uma hipótese, e não de um fato real, e que, conforme Jacques Lancan, é incoerente, uma vez que, já nos primórdios existiam leis que regiam a convivência daquela sociedade. Neste sentido, o mesmo afirma que “a promiscuidade presumida não pode ser afirmada em parte alguma, nem mesmo nos casos ditos de casamento grupal: desde a origem existem interdições e leis.”[10]

Quando a isso, Freud[11], em seu texto “Totem e Tabu”, afirma que os primitivos tinham totens, que eram as divindades adoradas pelos clãs, e em respeito a essa divindade, os membros dos clãs respeitavam os tabus, que eram as proibições impostas, havendo, inclusive, proibição quanto ao incesto.

Portanto, as relações praticadas entre diversos homens e diversas mulheres, tais como os ditos casamentos grupais, não podem ser considerados como promíscuos e comparados às relações praticadas entre os animais irracionais, afinal, não eram desordenados, pois, já nos primórdios o homem estava submetido às regras de convivência.

2.1.2. O Concubinato na antiguidade

Conforme o dicionário Aurélio, a palavra ‘concubinato’ se refere ao ‘estado do homem e da mulher que vivem como casados’, sendo entendido também como mancebia, que nada mais é que a comunhão do leito sem aprovação legal.

Etimologicamente, a palavra “concubinato” vem do latim: cum (com); cubare(dormir): concubinatos, significando, portanto, a comunhão do leito. Ademais, conforme Moura Bittencourt[12], o concubinato pode ser entendido como a união paralela ao casamento, ou a convivência de pessoas como se casadas fossem.

Percebe-se que a palavra concubinato pode ser interpretada de duas formas: (i) como o estado de pessoas que vivem como se casados fossem, entretanto, tal estado não é formalizado pelo casamento; e (ii) como a comunhão do leito com pessoa diversa daquela ao qual há uma relação formalizada pelo casamento.

Conclui-se que independente dos dois significados da palavra “concubinato”, ambos apontam para um mesmo sentido, qual seja: ligações livres das formalidades da lei que perduram por um determinado período de tempo. Entretanto, o estudo do presente tópico se limita apenas ao segundo sentido da palavra (comunhão do leito).

Assim, conforme apontam os estudos de Rodrigo da Cunha Pereira, tais uniões sempre existiram e sempre existirão:

A união livre entre homem e mulher sempre existiu e sempre existirá. Entende-se aqui por união livre aquela que não se prende as formalidades exigidas pelo Estado, ou seja, uniões não oficializadas pelo selo do casamento. Podemos denomina-las também de concubinato. Essas uniões, registra a história, as vezes acontecem também como relações paralelas as relações oficiais. Muitas vezes, a história do concubinato é contada como uma história de devassidão, ligando-se o nome concubina à prostituta, a mulher devassa ou a que se deitava com vários homens, ou mesmo a amante, a outra.[13]

Neste aspecto, Adahyl Lourenço Dias, ao tratar do concubinato na antiguidade em sua obra “A Concubina e o Direito Brasileiro”, demonstra que este tipo de relação estava presente nos relatos históricos dos antigos gregos:

A velha história grega está crivada de concubinatos célebres, na devassidão da vida íntima dos filósofos, escultores, poetas, notadamente Friné, belíssima entre as belas, que arrastou Praxíteles, servindo-lhe de modelo as suas arquiteturas de Vênus, ao mesmo tempo que se tornava amante de Hipérides, notável orador que defendeu no pretório, por acusação de impudícia [...]. Destacam-se em a voz da história, célebres concubinas, que tiveram nobre atuação na cultura dos gregos, notadamente Aspásia, que ensinou retórica em aulas próprias, a grande número de alunos, inclusive velhos gregos [...]. Antes de viver com Péricles, Aspásia tornara-se concubina de Sócrates, e depois da morte deste, de Alcebíades[...].[14]

Em sequência, o referido autor narra o concubinato (no sentido de comunhão do leito) em diversos lugares do mundo, tais como entre os babilônicos, caldeus, persas, chineses, hindus, fenícios, sírios, grego e romanos, havendo relatos de concubinato, inclusive, na Bíblia, tais como Abraão, apoiado por sua esposa Sara, Davi e Salomão que possuíam haréns, chegando a possuir centenas de concubinas.

O concubinato não ficou apenas como relato na antiguidade, estando presente ainda na Idade Média e Idade Moderna, mesmo que evitado e repudiado pela igreja. Em sua obra “Concubinato: sua moderna conceituação”, Caio Mário da Silva Pereira expõe tal fato histórico da seguinte maneira:

Apesar de combatido pela igreja, nunca foi evitado, nunca deixou de existir. E se os canonistas o repudiavam de iure divino, os juristas sempre aceitaram de iure civile. Quem rastrear a sua persistente sobrevivência por tantos séculos, verá que em todas as legislações em todos os sistemas jurídicos ocidentais houve tais uniões produzindo seus efeitos mais ou menos extensos.[15]

Por fim, o concubinato não se limitou em ficar na história, e mesmo tendo sido evitado, ou não ter sido protegido e regulado por lei, continuou existindo mesmo após séculos, estando presente na atual sociedade.

2.1.3. O Concubinato na atualidade

Sabe-se que a palavra concubinato traz consigo um preconceito enraizado por um passado não muito distante, em que o homem possuía a sua esposa principal, possuidora de todos os direitos decorrentes do casamento e então do direito de herança, e paralelamente uma amante, fruto do ‘concubinato adulterino’, denominada concubina, a qual não possuía direito algum, havendo inclusive discriminação entre seus filhos e os filhos oriundos do casamento.

Tal preconceito se dava pelo fato do sistema jurídico adotar como estrutura familiar, àquela época, apenas a família constituída sob o regime do casamento, sendo, portanto, naqueles tempos, desconhecidos juridicamente os demais tipos de entidades familiares constituídos sem as formalidades legais.

Entretanto, ocorre que atualmente o vigente sistema brasileiro não adota apenas a família constituída sob as formalidades do casamento como a única protegida pelo Estado, contudo, por conta desta carga de preconceito, fez-se necessário que a palavra concubinato fosse substituída por outra que não mais trouxesse tal herança preconceituosa.

Assim, a comunhão entre duas pessoas, de forma duradoura, com a finalidade de constituir família, sem as formalidades legais exigidas para o casamento, passou a ser denominada União Estável, e devidamente protegida pelo Estado, conforme preceitua o Aritgo 226, §3º.

Quanto a isso, o Supremo Tribunal Federal em julgamento não tão antigo se posicionado da seguinte maneira:

Sabido que, nos insondáveis domínios do amor, ou a gente se entrega a ele de vista fechada ou já não tem olhos abertos para mais nada? Pouco importando se os protagonistas desse incomparável projeto de felicidade a dois sejam ou não, concretamente, desimpedidos para o casamento civil? Tenham ou não uma vida sentimental paralela, inclusive sob a roupagem de um casamento de papel passado? (vida sentimental paralela, que tal como a referência sexual, somente dizem respeito aos respectivos agentes)? [...] ainda que não haja tal desimpedimento, nem por isso o par de amantes deixa de constituir essa por si mesma valiosa comunidade familiar? [...] Minha resposta é afirmativa para todas as perguntas [...] porque a união estável se define por exclusão do casamento civil e da formação da família monoparental. É o que sobra dessas duas formatações, de modo a constituir uma terceira via: o tertium genus do companheirismo, abarcante assim dos casais desimpedidos para o casamento civil, ou, reversamente, ainda sem condições jurídicas para tanto [...] Sem essa palavra azeda, feia discriminadora, preconceituosa, do concubinato [...] à luz do Direito Constitucional brasileiro o que importa é a formação em si de um novo e duradouro núcleo doméstico. A concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isto é família, pouco importando se um dos parceiros mantém uma concomitante relação sentimental a dois.[16]

Neste mesmo sentido, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em julgamento em data próxima ao julgado supracitado assim entendeu:

DIREITO DAS FAMÍLIAS. UNIÃO ESTÁVEL CONTEMPORÂNEA A CASAMENTO. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO FACE ÀS PECULIARIDADES DO CASO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Ao longo de vinte e cinco anos, a apelante e o apelado mantiveram um relacionamento afetivo, que possibilitou o nascimento de três filhos. Nesse período de convivência afetiva - pública, contínua e duradoura - um cuidou do outro, amorosamente, emocionalmente, materialmente, fisicamente e sexualmente. Durante esses anos, amaram, sofreram, brigaram, reconciliaram, choraram, riram, cresceram, evoluíram, criaram os filhos e cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família. O que no caso é polêmico é o fato de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente. Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e preconceito em matéria de Direito de Família. No caso dos autos, a apelada, além de compartilhar o leito com o apelado, também compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela não é concubina - palavra preconceituosa - mas companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo fim da união estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurídica e de igualdade social. Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro DERAM PROVIMENTO PARCIAL.[17]

Ainda, o Estatuto da Família (Projeto de Lei n. 2.285/2007), no Parágrafo único do Artigo 64, dispõe que “A união formada em desacordo aos impedimentos legais não exclui os deveres de assistência e a partilha de bens.”

Diante disto, é notório que o direito de família tem se posicionado de maneira favorável às relações familiares existentes, independente da forma pela qual ela é constituída, entendendo e admitindo que ainda que constituídas de forma diferente do previsto em lei, é unidade familiar e deve estar resguarda pelos direitos inerentes às demais unidades familiares constituídas sob as formalidades legais.

2.2. A origem da Monogamia

Conforme anteriormente narrado, o homem sempre se relacionou com mais de uma pessoa, tratando-se de uma questão natural e instintiva. Desta forma, a monogamia vai de encontro aos próprios instintos e à própria natureza humana, não sendo, portanto, algo natural, e sim algo imposto. É o que afirma  Drauzio Varela em seu artigo “O enigma da Monogamia”, por meio de dados estatísticos:

Monogamia social é uma coisa, monogamia genética é outra. A social acontece quando dois indivíduos de sexo oposto se unem para formar um casal. Já a genética é a monogamia sexual; para ocorrer, cada membro do par precisa garantir exclusividade de acesso sexual ao outro. Monogamia social é fenômeno raríssimo entre os animais. Monogamia genética, então, nem se fala. Até nos pássaros que formam pares amorosos, como o joão-de-barro (acusado injustamente de emparedar no ninho a fêmea infiel), o DNA dos filhos muitas vezes não bate com o do pai social. Na evolução, o enorme esforço exigido na construção do ninho conferiu vantagens reprodutivas aos pássaros que dividiam essa tarefa com suas fêmeas. Os folgados, que deixavam a fêmea trabalhar sozinha, podiam não ter o ninho pronto no momento propício ou serem preteridos por machos mais cooperativos. Por isso, os cientistas acreditavam que um macho só investiria energia na arrumação do ninho na certeza de que seus genes seriam transmitidos aos descendentes. Estudos recentes de DNA abalaram essa convicção, entretanto.

            Como prova do alegado, continua o médico, cientista e escritor Drauzio Varela, a fim de demonstrar por meio de dados estatísticos apresentados pela Universidade da Geórgia, que a monogamia não é um fato natural nem mesmos nos pássaros:

Um trabalho conduzido na Universidade da Geórgia com 180 espécies diferentes de pássaros cantores acasalados mostrou que apenas 10% deles eram sexualmente monogâmicos. Para a surpresa dos pesquisadores, nem os pássaros azuis americanos, tradicionais modelos de fidelidade conjugal, escaparam: 15% a 20% dos filhotes são concebidos em encontros fortuitos das fêmeas com machos da vizinhança. Nos mamíferos, diferentemente do que ocorre com os pássaros, a própria monogamia social é um acontecimento inusitado: apenas 3% a 10% formam casais que repartem os cuidados com a prole. No entanto, os estudos de DNA mostram que, mesmo entre estes, casamento não é sinônimo de monogamia sexual. Para usarmos um exemplo próximo da espécie humana, vejamos o caso dos chimpanzés, animais que formam grupos sociais e possuem cerca de 99% de genes iguais aos nossos. Em todas as comunidades de chimpanzés já estudadas, os testes de DNA demonstram que boa parte dos filhotes é concebida por machos de comunidades alheias. A discordância genética entre pais sociais e genéticos chega a mais de 60%, em alguns casos. O fato é relevante não apenas pela proximidade genética conosco, mas pelos riscos que as fêmeas correm nessas escapadas às comunidades vizinhas numa espécie machista como a dos chimpanzés. [...] Embora faltem pesquisas sobre a dissonância entre monogamia social e genética em seres humanos de diferentes culturas, os laboratórios que estudam a incidência de doenças hereditárias nos países ocidentais têm demonstrado que pelo menos 10% das crianças não foram concebidas por aqueles que se consideram pais delas.[18]

Nesse mesmo sentido, Noely Montes Moraes, doutora em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, afirma que:

a etologia (estudo do comportamento animal), a biologia e a genética não confirmam a monogamia como padrão dominante nas espécies, incluindo a humana. E, apesar de não ser uma realidade bem recebida por grande parte da sociedade ocidental, as pessoas podem amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo[19]

            Prova disto é a pesquisa realizada pelo jornal “O Globo” e publicada em seu site, que revelou que dentre os homens brasileiros, 70,6% dizem já ter traído pelo menos uma vez na vida, e dentre as brasileiras, a porcentagem é de 56,4%. A pesquisa demonstrou ainda que apenas 36,3% dos brasileiros afirmam nunca terem traído um parceiro. Ainda, a pesquisa revela que “só a Colômbia consegue ter um número ainda menor de fiéis convictos: 33,6%”.[20]

Todavia, se é natural na espécie humana o envolvimento com mais de uma pessoa, provocando inclusive a traição e/ou adultério, qual seria o motivo da atual sociedade adotar a monogamia?

Alguns estudos afirmam que houve um período de matriarcado, e posteriormente o patriarcado, e que foi este último que instituiu a monogamia. No matriarcado havia submissão à mulher, uma vez que ao homem primitivo era desconhecida a sua participação na gravidez, atribuindo à mulher toda responsabilidade pela procriação. Tal é o entendimento de Adahyl Lourenço, baseando-se em outros estudiosos:

De início, desconhecia-se a importância da cooperação masculina para a procriação. Os conhecimentos dos homens, pondera Armando Samico, eram de tão pequena largueza, que não se podia pensar na exata maneira de formação de novo ser, daí apontar-se a mulher como única responsável pela geração, Almeida Júnior, citando Frazer, acrescentou ‘como pode a inteligência pueril do selvagem primitivo compreender que a criança que sai das entranhas de sua mãe é fruto de um germe ali depositado nove longos meses antes.[21]

Neste entendimento, acredita-se que passado esse período, pelo fato das mulheres se relacionarem com diversos homens, começaram a surgir dúvidas quanto a legitimidade dos filhos. Motivo pelo qual, a mulher passa a se relacionar com apenas um homem, sendo que este passa a ter poderes de vida e morte sobre a mulher. Deste modo, continua Adahyl Lourenço:

O matriarcado, porém, não podia exercer atividade de supremacia por longo tempo, em razão da repulsa natural à comunidade de ligações entre a mulher e muitos homens, pondo em dúvida a legitimidade da prole, dificultando a defesa dos clãs. Elemento naturalmente mais forte, o homem teria que exercer o controle, substituindo o matriarcado. A autoridade do chefe, no grupo matriarcal, não mantinha órbita de ação, tanto empregava o castigo, como dispunha das relações civis, normas próprias adestradas aos costumes, tudo isso sem limites de controle.[22]

De encontro a este entendimento, alguns estudiosos desconhecem a existência do período de matriarcado, e afirmam que sempre houve somente o patriarcado, por conta das condições de força corporal e consequente liderança que o homem possuía por conta disto. Dentre estes está Clóvis Beviláqua que afirma o seguinte:

É certo que, entre a dispersão e incoerência dos primeiros tempos e o rígido familismo patriarcal, medeou uma forma de transição – a família materna, de que alguns escritos quiseram fazer um tipo, distinto e completo, mas que só aparece, na realidade, como apresentando um modo de determinar o parentesco e as relações oriundas da filiação [...]. Em vários clãs da África, da Oceania e da América, encontra-se a filiação com caráter e relação puramente feminil. Nas tribos tupis, pode-se afirmar que o parentesco unilateral uterino existiu em tempo anterior à conquista [...]. Fundados nestes e em outros fatos análogos, muitos escritores pressupuseram a preponderância da mulher na família primitiva e fantasiaram o matriarcado [...]; porém não é possível negar o caráter excepcional desses fatos, sobre os quais é mais que aventuroso construir qualquer generalização [...]. O patriarcado já constitui uma forma familial mais consistente e definida.[23]

No mesmo sentido, Camille Paglia, ex-feminista americana, em sua obra Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite e Emily Dickinson, assim expõe:

Embora a mulher estivesse no centro do simbolismo primitivo, as mulheres de fato eram impotentes. Uma fantasia que obseda a literatura feminina é que houve outrora um matriarcado pacífico, derrubado pelos homens belicosos, fundadores da sociedade patriarcal [...]. Nem um fiapo de prova apoia a existência do matriarcado em parte alguma do mundo, em qualquer época. Matriarcado, domínio político das mulheres, não deve ser confundido com matrilinhagem, transmissão passiva de autoridade ou propriedade pelo lado feminino [24]

Contudo, além das divergências, há entre ambas as correntes um ponto em comum, o qual é destacado por Adahyl Lourenço, citando Batista de Melo, da seguinte maneira:

Todas as correntes que se divorciam em torno do magno assunto, num ponto comum elas se amarram, algumas reconhecem e outras não negam a evolução da célula social propulsionada pela tendência da conservação da prole. É o que ensina Batista de Melo, que os fatores da constituição da família foram, em primeiro lugar, o instinto sexual e em segundo, a conservação da prole.[25]

Ou seja, havendo ou não matriarcado, o que houve foi a necessidade de proteção da prole. Como já mencionado anteriormente, as relações sexuais poderiam ser praticadas com quantas pessoas desejassem, entretanto, tais relações acabaram por gerar dúvidas sobre a legitimidade dos filhos, trazendo dificuldades em delimitar a prole, o que gerava dificuldade em  identificar também a propriedade e a herança.

Percebe-se, portanto, que a monogamia foi a solução que, achou-se mais adequada à época, pois impunha que as pessoas somente se relacionassem com uma pessoa após o casamento, para que não houvesse dúvida quanto a legitimidade dos filhos. É o que também afirma Frederich Engels em sua obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” ao tratar da Família Monogâmica:

Surge,[...], da família pré-monogâmica, no período de transição entre a fase média e a fase superior da barbárie. Seu triunfo definitivo é uma das características da civilização nascente. Baseia-se no domínio do homem com a finalidade expressa de procriar filhos cuja paternidade fosse indiscutível e essa paternidade é exigida porque os filhos deverão tomar posse dos bens paternos, na qualidade de herdeiros de direitos.[26]

Ademais, a imposição da monogamia ganha apoio religioso, uma vez que traz consigo o temor reverencial a um ser ou força superior que possa punir o indivíduo por sua conduta ‘pecaminosa’, impulsionando assim, os indivíduos a manterem sua fidelidade monogâmica não só por uma questão social, mas também por uma questão religiosa.

É o que explica o Professor e Mestre em Direito Constitucional, Dr. Marcelo Santoro Pires de Carvalho Almeida, em seu artigo :

As ideias romanas acerca do matrimônio monogâmico foi introduzido no direito canônico, tendo a Igreja muitas vezes intervindo sobre a temática familiar. O conceito romano de matrimônio monogâmico continua muito similar ao atual, presente no artigo 1.511 do código civil brasileiro, sendo inegável que o conceito moderno de matrimônio é o mesmo que se apresentou há quase dois mil anos com a mesma fundamentação sócio religiosa[27]

Destarte, é notório que o modelo monogâmico atual deriva simplesmente de um período em que a melhor opção encontrada para proteger a prole foi a de evitar os casamentos grupais, e desta maneira, os desejos humanos primitivos, a fim de que se pudesse delimitar a propriedade.

Quanto a isso, brilhantemente conclui o ilustre filosofo Frederich Engels:

Essa foi a origem da monogamia, tal como pudemos observá-la no povo mais culto e desenvolvido da antiguidade. Ela não foi, de modo algum, fruto do amor sexual individual, com o qual nada tinha a ver, já que os casamentos continuavam sendo, como antes, casamento de conveniência. Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições natural, mas em condições econômicas e, de modo específico, no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva que havia surgido espontaneamente. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram o domínio do homem na família e a procriação dos filhos que só pudessem ser seus e que estavam destinados a herdar suas riquezas. De resto, o casamento era para eles um dever que estavam obrigados a cumprir.[28]

Assim, evidencia-se que foi sobre esta base histórica que se constituiu o que hoje se vive e se entende como monogamia, e que é, inclusive, resguardado pela vigente Constituição Federal.

2.3. As Constituições brasileiras e as famílias

A vigente Constituição Federal resguarda os direitos de família, e dedica a ela proteção especial do Estado, é o que dispõe o seu artigo 226: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”.

Entretanto, ainda que a vigente Constituição Federal resguarde tais direitos, as constituições anteriores sequer abordavam sobre a família.

Inicialmente, a primeira Constituição Federal, de 1824, fazia referencia apenas à família imperial, enquanto a segunda, de 1891, apenas reconhecia o casamento civil como forma de constituição de família, em seu artigo 72 §4º, que assim dispunha: “A República só reconhece o casamento civil, cuja a celebração será gratuita”

Em seguida, a constituição de 1934 se importou apenas em tratar das regras do casamento indissolúvel, dedicando a isso os artigos 144 a 147, que assim regulamentavam:

Art 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado.

Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex officio , com efeito suspensivo.

Art 145 - A lei regulará a apresentação pelos nubentes de prova de sanidade física e mental, tendo em atenção as condições regionais do País.

Art 146 - O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que, perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no Registro Civil. O registro será gratuito e obrigatório. A lei estabelecerá penalidades para a transgressão dos preceitos legais atinentes à celebração do casamento.

Parágrafo único - Será também gratuita a habilitação para o casamento, inclusive os documentos necessários, quando o requisitarem os Juízes Criminais ou de menores, nos casos de sua competência, em favor de pessoas necessitadas.

Art 147 - O reconhecimento dos filhos naturais será isento de quaisquer selos ou emolumentos, e a herança, que lhes caiba, ficará sujeita, a impostos iguais aos que recaiam sobre a dos filhos legítimos.

Em prosseguimento, as constituições de 1937, 1946, 1967 e 1969 simplesmente deram sequência ao que já abordava à Constituição de 1834, abordando somente sobre o casamento como única forma de constituição de família. Os textos pouco se diferenciavam:

CF 1937:

Art. 124. A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proposição dos seus encargos.

CF 1946:

Art. 163. A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado.

CF 1967:

Art. 167. A família é constituída pelo casamento e terá direito a proteção dos Poderes Públicos.

§1º O casamento é indissolúvel.

CF 1969:

Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos.

§1º O casamento é indissolúvel (modificado pela Emenda Constitucional n. 9/77, que instituiu o divórcio no Brasil).

Assim, curiosamente, é possível notar que o legislador, a partir da constituição de 1891 se importou em fazer constar na Carta Magna que a família só poderia ser constituída pelo casamento. Tal fato é precisamente explicado por Rodrigo da Cunha Pereira da seguinte forma:

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O momento em que o texto constitucional passou a mencionar a família e dizer que ela se constitui pelo casamento civil é sinal de que o contexto talvez apontasse outras direções. É certo que há imposições da própria cultura, mas se os elementos culturais fossem tão determinantes, não haveria necessidade de se legislar sobre eles, pois seriam leis naturais. [...] Podemos verificar, portanto, que a lei, ao dizer que a forma de constitui família é o casamento civil e que este é indissolúvel, estava cerceando algo que se lhe contrapunha. Ou seja havia necessidade de se impor o casamento civil é porque deveria haver ouras formas de constituir família que iriam, ou queriam, surgir a partir do Brasil República.

Finalmente, a vigente Constituição Federal passou a resguardar e ampliar as interpretações quando à família. Passando a resguardar, por exemplo, as uniões não constituídas pelo casamento, bem como as uniões homoafetivas, de modo que se pode entender que a família é “um gênero que comporta várias espécies’, ou seja, “a família não é mais singular, é plural”[29].

Quanto a isso, o Superior Tribunal de Justiça já se posicionou da seguinte maneira:

DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO (HOMOAFETIVO). INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA AQUE SE HABILITEM PARA O CASAMENTO PESSOAS DO MESMO SEXO. VEDAÇÃO IMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA CONFERIDA PELO STF NO JULGAMENTO DA ADPF N. 132/RJ EDA ADI N. 4.277/DF. 1. Embora criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, vigorante a fase histórica da constitucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as celeumas que lhe aportam "de costas" para a Constituição Federal, sob pena de ser entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale dizer, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja constitucionalmente aceita. 2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto da ADPF n.132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de 2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. 3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado "família", recebendo todos eles a "especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. 4. O pluralismo familiar engendrado pela Constituição -explicitamente reconhecido em precedentes tanto desta Corte quanto do STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos. 5. O que importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes recebam efetivamente a "especial proteção do Estado", e é tão somente em razão desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor protege esse núcleo doméstico chamado família. 6. Com efeito, se é verdade que o casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo múltiplos os"arranjos" familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser negada essa via a nenhuma família que por ela optar,independentemente de orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por casais heteroafetivos,quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o afeto. 7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra consentânea comum ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar,nesse ponto, que o planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união. 8. Os arts. 1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar. 9. Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria,mediante seus representantes eleitos, não poderia mesmo"democraticamente" decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel contra majoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos. 10. Enquanto o Congresso Nacional, no caso brasileiro, não assume,explicitamente, sua coparticipação nesse processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal predicativo resista a uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis. 11. Recurso especial provido.[30]

Ante o exposto, é possível perceber as modificações do Direito de Família devido à evolução social. Ademais, é perceptível também, que o Direito de Família, ao se tornar Direito das Famílias, cumpre a sua razão de ser, pois resguarda as relações familiares movidas pelo afeto, independente da forma pela qual esta seja constituída, não se estagnando a um modelo arcaico por conta de preconceitos.

CAPÍTULO III - A FAMÍLIA NO CENÁRIO BRASILEIRO ATUAL

3.1 O atual conceito de família

A vigente Constituição Federal prevê que a família é “base da sociedade”, e ainda, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em seu artigo XVI, § 3º determina que: “A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do estado”.

Percebe-se que atualmente existe um interesse estatal na proteção da família. Neste sentido, é possível indagar-se sobre o conceito de família, a fim de que se possa entender o que o Estado pretende proteger.

O conceito de família tem se mantido, com o passar do tempo, em significante modificação, afinal, trata-se de um fato social, assim, tende-se a continuar em mudança.

Tal afirmação pode ser facilmente comprovada pela simples análise etimológica da palavra “família”, a qual, o Professor Dr. Marcelo Santoro, citando Frederich Engels assim explica:

Etimologicamente o vocábulo família deriva do latim famulus, que significa escravo doméstico e, então, a família romana originalmente dizia respeito tão somente aos escravos. Segundo Engels, 'Nos tempos de Gaio, a família 'id est patrimonium' (isto é, herança) era transmitida por testamentos. A expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre eles[31]

Conforme supracitado, o conceito originário de família deriva da família romana, a qual, significava todos os bens móveis e imóveis, bem como todas as pessoas que se achavam subordinadas ao poder do denominado pater famílias, ou seja, a mulher, os descendentes, os escravos e os libertos.[32]

Assim, todos os integrantes da família se resumiam a propriedade do pater família, que possuía direito de vida e morte[33] sobre seus subordinados, afinal, estes eram sinônimo de propriedade. Tal providência, conforme anteriormente exposto, assumia caráter político e religioso, uma vez que assegurava o direito de herança, e ainda seguia princípios religiosos, onde, a mulher, ao ser admitida na nova família, era obrigada a cultuar o deus adorado pelo novo pater famílias, dando origem à ‘coisificação’ da mulher, fato cultural herdado e visível na atual sociedade.

Passada esta fase, Carlos Roberto Gonçalves, de forma sucinta, resume a evolução histórica da família da seguinte forma:

Com o tempo, a severidade das regras foi atenuada, conhecendo os romanos o casamento sine manu, sendo que as necessidades militares estimularam a criação de patrimônio independente para os filhos. Com o imperador Constantino, a partir do século IV, instala-se no direito romano a concepção cristão da família, na qual predominam as preocupações de ordem moral. Aos poucos foi então a família romana evoluindo no sentido de se restringir progressivamente a autoridade do pater, dando-se maior autonomia à mulher e aos filhos, passando estes a administrar os pecúlios castrenses (vencimentos militares).[...] entendiam os romanos necessária a affectio não só no momento de sua celebração, mas enquanto perdurasse. A ausência de convivência e o desaparecimento da afeição era, assim, causa necessária para a dissolução do casamento pelo divórcio. Os canonistas, no entanto, opuseram-se à dissolução do vínculo, pois consideravam o casamento um sacramento, não podendo os homens dissolver a união realizada por Deus [..] Durante a Idade Média as relações de família regiam-se exclusivamente pelo direito canônico.[34]

Diante da demonstração história do conceito de família, tem-se que a atual conceituação de família, conforme expresso no texto Constitucional, sofreu influência da família romana e canônica.

Neste aspecto, ao definirem o conceito de família, os grandes juristas não mais o relacionam ao sentido etimológico do vocábulo, mas ao vínculo existente entre os integrantes da família por meio do casamento, devido a herança da família romana e canônica. Dentre estes ilustres juristas, está, Clóvis Beviláqua, que definia a família como:

Um conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo de consanguinidade, cuja eficácia se estende ora mais larga, ora mais restritamente, segundo as várias legislações. Outras vezes, porém, designam-se, por família, somente os cônjuges e a respectiva progênie[35]

            No mesmo sentido, Orlando Gomes, citando Mazeaud, definia o seguinte:

somente o grupo oriundo do casamento deve ser denominado família, por ser o único que apresenta os caracteres de moralidade e estabilidade necessários ao preenchimento de sua função social[36]

            Ressalte-se, que a lei nunca definiu o conceito de família, cabendo aos doutrinadores defini-la, e conforme demonstrado anteriormente, apenas a relacionava ao casamento, por conta de fatos históricos que acabaram se atrelando ao conceito de família de um passado não tão distante.

Entretanto, ocorre que a noção de família constituída pelo casamento, a qual possui a imagem do homem como centro da estrutura familiar, modificou-se, por conta de diversos fatores sociais, tais como a emancipação feminina e a desvinculação do Estado à Igreja. Nas palavras de Maria Berenice Dias:

Essa visão hierarquizada da família, no entanto, sofreu, com o tempo, enormes transformações. Além de significativa diminuição do número de seus componentes, também começou a haver um embaralhamento de papéis. A emancipação feminina e o ingresso da mulher no mercado de trabalho levaram-na para fora do lar. Deixou o homem de ser o provedor exclusivo da família, sendo exigida a sua participação nas atividades domésticas. O afrouxamento dos laços entre Estado e Igreja acarretou profunda evolução social e a mutação do próprio conceito de família, que se transformou em verdadeiro caleidoscópio de relações que muda no tempo de sua constituição e se consolida em cada geração. Começaram a surgir novas estruturas de convívio sem terminologia adequada que as diferencie. Nas famílias formadas por pessoas que saíram de outras relações, seus componentes não têm nem nomes que os identifique e nem lugares definidos. Os novos contornos da família estão desafiando a possibilidade de se encontrar uma conceituação única para sua identificação.[37]

Neste sentido, diante de tais circunstâncias sociais, tem-se que a vigente Constituição Federal ampliou a definição de família, conforme prevê o §4º do Artigo 226, quando expressa que, entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, bem como reconhece a união estável como entidade familiar no §3º do mesmo artigo.

Assim, faz-se necessário destacar que a família não se constitui tão somente por meio do casamento, e não pode ser conceituada como o vínculo unicamente consanguíneo, porém afetivo, questão inclusive, incontroversa, conforme se pode demonstrar por meio da ADPF nº 132 e ADI 142, em que o Ministro Luiz Fux assim se posiciona:

O que faz uma família é a comunhão, a existência de um projeto coletivo, permanente e duradouro de vida em comum. O que faz uma família é a identidade, a certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade. Presentes esses três requisitos, tem-se uma família, incidindo, com isso, a respectiva proteção constitucional.

            Percebe-se que “o conceito de família se abriu, indo em direção a um conceito mais real, impulsionado pela própria realidade”[38]. É notório, portanto, que o conceito de família não mais se relaciona à propriedade, ou valores econômicos e religioso, mas sim a uma relação afetiva e real, com base no amor, no respeito, companheirismo, reciprocidade e etc. É o que define Rodrigo da Cunha Pereira:

A família hoje não mais tem seus alicerces na dependência econômica, mas muito mais na cumplicidade e na solidariedade mútua e no afeto existente entre seus membros. O ambiente familiar tornou-se um centro de realização pessoal, tendo a família essa função em detrimento dos antigos papéis econômico, político, religioso e procriacional anteriormente desempenhados pela 'instituição'[39]

            Por fim, pode-se resumir a mudança sofrida, e o atual conceito de família com a simples afirmação de que “a família não é mais nó, é ninho”[40].

3.2. Monogamia como função ordenadora da família[41] e seus efeitos

Conforme demonstrado anteriormente, o conceito de família se modificou e continua em constante modificação. Viu-se também que a imposição do modelo monogâmico apoiado pela religião, como forma encontrada pelos antepassados, para que não houvesse dúvida sobre a paternidade, e consequentemente a quem seriam herdados os bens.

Ainda, pode-se perceber que a família brasileira, como hoje é conceituada, está enraizada pela influência da família romana e canônica. Tanto é que a atualmente, caso a fidelidade monogâmica não seja cumprida, haverá punição tanto no âmbito cível como penal.

Inicialmente, cumpre esclarecer ser a monogamia não um princípio constitucional, porém, uma função ordenadora da família, afinal, não consta expresso no texto constitucional nenhuma menção à monogamia. É o que afirma Maria Berenice Dias citando Carlos Eduardo Pianovski:

Uma ressalva merece ser feita com relação à monogamia. Não se trata de um princípio do direito estatal de família, mas sim de uma regra restrita à proibição de múltiplas relações matrimonializadas, constituídas sob a chancela do Estado. Ainda que a lei recrimine de diversas formas quem descumpre o dever de fidelidade, não há como considerar a monogamia como princípio constitucional, até porque a Constituição não a contempla. Ao contrário, tanto tolera a traição, que não permite que os filhos se sujeitem a qualquer discriminação, mesmo quando se trata de prole nascida de relações adulterinas ou incestuosas. O Estado tem interesse na mantença da estrutura familiar, a ponto de proclamar que a família é a base da sociedade. Por isso, a monogamia é considerada função ordenadora da família.[42]

Assim, a monogamia como função ordenadora está expressa no Artigo 1.521, VI do Código Civil, que prevê como impedidas ao casamento, as pessoas já pessoas casadas. Ademais, o seu efeito, e consequente sanção no caso de descumprimento, estão previstas no Artigo 1.548, II, também do Código Civil, que determina que serão nulos os casamentos contraídos por infringência de impedimento.

Não obstante, o Artigo 235 do Código Penal estabelece pena de reclusão de dois a seis anos àquele que contrair novo casamento sendo casado, e pena de um a três anos àquele que, não sendo casado, contrai casamento com pessoa casada, conhecendo tal circunstância.

Note-se que a imposição da monogamia está totalmente ligada ao casamento, afinal, como já demonstrado, a família brasileira sofreu influência da família canônica, a qual considerava o casamento um sacramento e única forma de constituição de família, não devendo ser dissolvido pelo homem.

Entretanto, atualmente não é o casamento a única forma de constituição de família, havendo diversas formas, dentre elas a união estável, a qual é também devidamente resguardada pelo Código Civil, especificamente no Artigo 1.723 que assim dispõe: "É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família".

Ainda, o parágrafo 1º do mesmo artigo dispõe que a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do Artigo 1.521 do Código Civil, não sendo aplicado o previsto no inciso VI, para as pessoas casadas que se acharem de separadas de fato ou judicialmente.

Ou seja, percebe-se, novamente que o casamento será impedimento também para a união estável, exceto se houver separação de fato ou judicialmente. Entretanto, é notório que não existe nenhuma previsão legal que trate do impedimento ao casamento de pessoa que vive anteriormente e paralelamente em união estável, nem mesmo que esta viva em duas uniões estáveis simultaneamente.

É o que Marcelo Santoro explica claramente:

O impedimento para a união de duas pessoas só existe para aqueles que pretendam se casar, já sendo casados [...] O mesmo não ocorre com as chamadas uniões estáveis, que não estando engessadas por tal impedimento. Ao contrário, na forma do parágrafo único do artigo 1723 do Código Civil, pode constituir união estável o indivíduo casado, desde que se encontre separado de fato ou judicialmente. E, ainda, a lei não faz nenhuma menção quanto ao fato da pessoa que constitui uma união estável, já ter constituído outra. Também não cria impedimentos para uma pessoa que, estando em união estável, se case, já que no taxativo rol no artigo 1521 das pessoas impossibilitadas de contrair matrimonio não se encontra elencado ao ermo 'as pessoas que constituem união estável'. Pelo mesmo fundamento, nem mesmo se encontram engessadas as relações homoafetivas, recentemente admitidas no Direito Brasileiro. Logo, facilmente se percebe que o princípio da monogamia só existe nas relações matrimoniais, quando o indivíduo que deseja casar novamente já é formalmente casado.[43]

Portanto, a monogamia, conforme previsto no Código Civil, produz efeitos àqueles que, casados desejem contrair novo matrimônio, ou casados, queiram viver em união estável, ainda que não divorciados de fato ou judicialmente. Não havendo efeito, entretanto, àqueles que em anterior união estável queiram contrair matrimônio e manter a união estável anteriormente constituída, nem mesmo àqueles que desejarem manter duas uniões estáveis simultaneamente.

3.2. Das diversas formas de constituição de família resguardadas no vigente ordenamento jurídico brasileiro e o rol exemplificativo do Artigo 226 da CRFB/88.

            Conforme anteriormente exposto, a vigente Constituição Federal prevê em seu Artigo 226 que a família tem proteção especial do Estado, neste sentido, conforme se passa a demonstrar, diversas são as formas de constituição de família.

            Tem-se que a vigente Constituição Federal não mais tutela apenas os direitos das famílias constituídas somente sobre a formalidade do casamento entre homem e mulher, porém, agora merece também especial proteção do Estado a família em si, independente de sua forma.

            Isso se dá pelo fato do Artigo 226 da Constituição Federal não estabelecer um rol taxativo, porém exemplificativo. Ou seja, ainda que os parágrafos 3º e 4º do referido dispositivo constitucional trate da família constituída sob a forma da união estável e da família monoparental, a proteção especial do Estado não se limita a estas, pois não seria possível ao constituinte estabelecer exaustivamente as inúmeras formas de constituição familiar.

Não é outro o entendimento, Paulo Netto Lôbo assim afirma:

Os tipos de entidade familiares explicitados nos parágrafos 226 da constituição são meramente exemplificativos, sem embargos de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referencia expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida, conduzindo a tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade[44]

No mesmo sentido, Cristiano Chaves de Farias se posiciona da seguinte maneira:

Fica claro, portanto, que a interpretação de todo o texto constitucional deve ser fincada nos princípios da liberdade e igualdade, despida de qualquer preconceito, porque tem como "pano de fundo" o princípio da dignidade da pessoa humana, assegurado logo pelo art. 1º, III, como princípio fundamental da República (motor de impulsão de toda a ordem jurídica brasileira). Sem dúvida, então, a única conclusão que atende aos reclamos constitucionais é no sentido de que o rol não é, e não pode ser nunca – taxativo, por deixar sem proteção inúmeros agrupamentos familiares, não previstos no texto constitucional, até mesmo por absoluta impossibilidade. Não fosse só isso, ao se observar a realidade social premente, verificando-se a enorme variedade de arranjos familiares existentes, apresentar-se-ia outro questionamento: seria justo que os modelos familiares, não previstos em lei, não tenham proteção legal?[45]

Ainda, tal é o entendimento Maria Berenice Dias, exposto em seu Manual de direito das famílias:

A Constituição Federal, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de reconhecer a existência de outras entidades familiares, além das constituídas pelo casamento. Assim, enlaçou no conceito de família e emprestou especial proteção à união estável (CF 226 §3º) e à comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes (CF 226 §4º), que começou a ser chamada de família monoparental. No entanto, os tipos de entidades familiares explicitados são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. [...]. Dita flexibilização conceitual vem permitindo que os relacionamentos, antes clandestinos e marginalizados, adquiram visibilidade, o que acaba conduzindo a sociedade à aceitação de todas as formas que as pessoas encontram para buscar a felicidade.[46]

            Deste modo, resta claro posicionamento doutrinário acerca do referido tema, não sendo outro também o entendimento do Supremo Tribunal Federal em ADPF 132 e ADI 4.277.

            Assim, ante o exposto, é possível concluir que a Carta Magna resguarda a família em sua atual essência, com o seu sentido puro em simples de convivência contínua com base no afeto, e não mais a vincula pura e simplesmente a um aspecto econômico, e nem estabelece um único modelo familiar, admitindo a pluralidade de famílias, uma vez que são incontáveis as possibilidades de formas de constituição de família.

CAPÍTULO IV - A POSSIBILIDADE DAS UNIÕES POLIAFETIVAS NO VIGENTE ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

4.1. Conceito de Poliafetividade;

            Inicialmente, para que se possa analisar devidamente o tema, ora objeto do presente estudo, faz-se necessário entender o conceito da “poliafetividade”, também denominada como “poliamor”, “poliamorismo” ou “poliafeto”.

            Neste sentido, pelo próprio prefixo dos sinônimos supracitados: “poli”, do grego: “polus”, termo que compõe diversas palavras para designar número indefinido ou elevado, e pelo morfema lexical (radical): “afet” e “amor”, é possível perceber que tais termos se referem à pluralidade de afeto e amor.

            Especificamente, tais sinônimos se referem à existência de múltiplas e abertas relações afetivas paralelas, as quais os companheiros possuem total conhecimento e concordância. Nas palavras de Pablo Stolze Gagliano, Juiz Substituto do Tribunal de Justiça da Bahia:

O poliamorismo ou poliamor, teoria psicológica que começa a descortinar-se para o Direito, admite a possibilidade de co-existirem duas ou mais relações afetivas paralelas, em que os seus partícipes conhecem e aceitam uns aos outros, em uma relação múltipla e aberta .[47]

            Ou seja, a poliafetividade nada mais é que o vínculo existente entre mais de duas pessoas, oriundo de relações afetivas existentes entre elas, capazes de formar uma unidade familiar.

            O termo utilizado ainda não faz parte do dicionário brasileiro, contudo, conforme publicação da British Broadcasting Corporation – BBC Brasil[48], o termo em inglês “poliamory” já integra o dicionário em Oxford desde 2006. Inclusive, a própria emissora, no mesmo artigo publicado, expõe a definição do referido termo, dada por um integrante de uma relação poliafetiva, o qual assim explica:

Tive muitas conversas com colegas nas quais eu comecei a explicar e eles só chegaram até (o ponto onde falam) 'então todo mundo trai todo mundo' e nunca consegui passar disso. Eu disse que não, todo mundo está bem com isso, todo mundo sabe o que está acontecendo, ninguém está enganando ninguém.[49]

            Novamente, resta demonstrado, não por um jurista, psicólogo, jornalista, etc, mas por quem efetivamente vive em uma união poliafetiva, que a mesma se refere à uniões afetivas existentes entre determinadas pessoas (independente do sexo ou opção sexual) de forma consentida por todos.

            Ademais, ressalte-se que, ainda que tenha sido apontado um caso de poliafetividade em Sheffield, na Grã-Bretanha, o poliamorismo ou poliafetividade é algo presente no mundo, inclusive no Brasil.

            Prova disto tem-se, dentre os diversos casos de poliafetividade existentes do no Brasil, conforme se pode verificar por relatos expostos em sites, blogs e páginas de redes sociais, um caso específico chamou atenção, causando grande repercussão nas mídias, quando em 2012 um homem e duas mulheres fizeram escritura pública de união poliafetiva na cidade de Tupã, localizada no estado de São Paulo[50].

            Tal foi a repercussão social do referido caso, que a Drª Maria Berenice se manifestou com a publicação de um artigo denominado: “Poliafetividade, alguém tem dúvida que existe?”, o qual afirmava o seguinte:

Repercutiu como uma bomba! Como verdadeira afronta à moral e aos bons costumes! O fato de o relacionamento de um homem com duas mulheres ter sido objeto de uma escritura pública, foi recebido como manifestação nula, inexistente, indecente. Sabe-se lá quantas outras adjetivações mereceu. Mas alguém duvida da existência desta espécie de relacionamento? Ainda que alvo do repúdio social – com denominações sempre pejorativas: concubinato adulterino, impuro, impróprio, espúrio, de má-fé , concubinagem – vínculos afetivos concomitantes nunca deixaram de existir, e em larga escala. Batizados mais recentemente de poliamor ou uniões poliafetivas, sempre foram alijados do sistema legal, na vã tentativa de fazê-los desaparecer. [51]

            Não obstante, a Tabeliã Fernanda de Freitas Leitão, do 15º Tabelionato de Notas do Rio de Janeiro em entrevista dada ao site de notícias UOL[52], defendeu a possibilidade jurídica das uniões poliafetivas sob o argumento de que tais relações não são inventadas, elas simplesmente existem, ademais, não são vedadas por lei.[53]

            Neste aspecto, entende-se que a poliafetividade, poliamor, poliamorismo, poliafeto, ou qualquer sinônimo que possa surgir neste sentido, são termos que rotulam a constituição de um relacionamento (i) aberto, ou seja, constituído por tantas pessoas quanto se possa ter afeto; e (ii) sincero entre os companheiros, afinal, não há obscuridade entre seus membros quanto às relações múltiplas, de forma a estreitar os caminhos da traição e/ou adultério.

4.2. A diferença entre as famílias plúrimas e as famílias poliafetivas;

            Há de se ressaltar ainda, a fim de obstar eventual confusão, a diferença existente entre as famílias plúrimas e as poliafetivas.

            Conforme exposto anteriormente, as famílias poliafetivas possuem uma estrutura aberta, sendo composta por mais de duas pessoas que vivem em uma relação sincera de afeto, de modo que todos os integrantes da relação são esclarecidos quanto às diversas relações afetivas existentes.

            Desta relação aberta possibilitada pelo poliafeto podem surgir as denominadas famílias púrimas, também conhecidas como múltiplas ou simultâneas, nas quais são constituídas estruturas familiares de forma paralela.

            Ou seja, a poliafetividade possibilita que haja a coexistência de relações afetivas com diversos companheiros, podendo dar ensejo a uma estrutura familiar constituída por três ou mais membros, ou até mesmo duas estruturas familiares simultâneas de dois ou mais integrantes.

            Assim, por meio do poliafeto, poderia existir, por exemplo uma união estável constituída por duas pessoas e paralelamente uma união estável com três, quatro, cinco ou mais pessoas, desde que todas elas sejam esclarecidas e aceitem a coexistência de tais relações.

            Ressalte-se ainda que no exemplo acima todos não precisariam, necessariamente, viverem sob o mesmo teto, afinal, conforme entendimento sumulado pelo STF, por meio do Verbete nº 382[54], não constitui requisito indispensável à constituição da união estável.

            Ocorre que, nem todas as estruturas familiares paralelas são constituídas de forma esclarecida e consentida em relação aos demais companheiros. Tais relações poderiam ser denominadas como poliafetivas apenas no sentido lato, pois existe poliafeto em um ou mais companheiros, entretanto, não poderia ser considerada poliafetiva no sentido estrito pois inexiste consentimento em relação aos demais companheiros.

            Assim, tais estruturas são denominadas como plúrimas, múltiplas, simultâneas ou paralelas, pois existem estruturas familiares concomitantes que podem ou não viverem sob o mesmo teto, havendo ou não consentimento de todos os companheiros.

            Tais relações, inclusive, são ainda mais comuns na atualidade, e estão presente na realidade brasileira também, prova disto são as diversas ações de reconhecimento de união estáveis propostas, a exemplo, destacam-se as seguintes:

Direito civil. Família. Paralelismo de uniões afetivas. Recurso especial. Ações de reconhecimento de uniões estáveis concomitantes. Casamento válido dissolvido. Peculiaridades. Sob a tônica dos arts. 1.723 e 1.724 do CC⁄02, para a configuração da união estável como entidade familiar, devem estar presentes, na relação afetiva, os seguintes requisitos: (i) dualidade de sexos; (ii) publicidade; (iii) continuidade; (iv) durabilidade; (v) objetivo de constituição de família; (vi) ausência de impedimentos para o casamento, ressalvadas as hipóteses de separação de fato ou judicial; (vii) observância dos deveres de lealdade, respeito e assistência, bem como de guarda, sustento e educação dos filhos. - A análise dos requisitos ínsitos à união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, a fidelidade, entre outros. - A despeito do reconhecimento – na dicção do acórdão recorrido – da “união estável” entre o falecido e sua ex-mulher, em concomitância com união estável preexistente, por ele mantida com a recorrente, certo é que já havia se operado – entre os ex-cônjuges – a dissolução do casamento válido pelo divórcio, nos termos do art. 1.571, § 1º, do CC⁄02, rompendo-se, em definitivo, os laços matrimoniais outrora existentes entre ambos. A continuidade da relação, sob a roupagem de união estável, não se enquadra nos moldes da norma civil vigente – art. 1.724 do CC⁄02 –, porquanto esse relacionamento encontra obstáculo intransponível no dever de lealdade a ser observado entre os companheiros. - O dever de lealdade “implica franqueza, consideração, sinceridade, informação e, sem dúvida, fidelidade. Numa relação afetiva entre homem e mulher, necessariamente monogâmica, constitutiva de família, além de um dever jurídico, a fidelidade é requisito natural” (Veloso, Zeno apud Ponzoni, Laura de Toledo. Famílias simultâneas: união estável e concubinato. Disponível em http:⁄⁄www.ibdfam.org.br⁄?artigos&artigo=461. Acesso em abril de 2010). - Uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade – que integra o conceito de lealdade – para o fim de inserir no âmbito do Direito de Família relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a busca da realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade. - As uniões afetivas plúrimas, múltiplas, simultâneas e paralelas têm tornado o cenário fático dos processos de família, com os mais inusitados arranjos, entre eles, aqueles em que um sujeito direciona seu afeto para um, dois, ou mais outros sujeitos, formando núcleos distintos e concomitantes, muitas vezes colidentes em seus interesses. - Ao analisar as lides que apresentam paralelismo afetivo, deve o juiz, atento às peculiaridades multifacetadas apresentadas em cada caso, decidir com base na dignidade da pessoa humana, na solidariedade, na afetividade, na busca da felicidade, na liberdade, na igualdade, bem assim, com redobrada atenção ao primado da monogamia, com os pés fincados no princípio da eticidade. - Emprestar aos novos arranjos familiares, de uma forma linear, os efeitos jurídicos inerentes à união estável, implicaria julgar contra o que dispõe a lei; isso porque o art. 1.727 do CC⁄02 regulou, em sua esfera de abrangência, as relações afetivas não eventuais em que se fazem presentes impedimentos para casar, de forma que só podem constituir concubinato os relacionamentos paralelos a casamento ou união estável pré e coexistente. Recurso especial provido.[55]

APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. AUSÊNCIA DE PROVA DOS REQUISITOS INDISPENSÁVEIS À CARACTERIZAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL. COMPANHEIRO CASADO. IMPEDIMENTO PARA CONFIGURAÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL. Impossibilidade de reconhecimento de união estável concomitante ao casamento. Há regra proibitiva expressa em nosso ordenamento jurídico, qual seja o § 1º do art. 1.723 do CCB, segundo o qual "a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521", somente excepcionando essa circunstância diante da comprovada separação de fato do casal matrimonial, o que não se verifica no caso. APELAÇÃO PROVIDA. [56]

            Ressalte-se que, conforme exposto, a jurisprudência tem se mantido em sentido contrário a aceitação das uniões plúrimas. Note-se ainda que em tais ações havia o impedimento do casamento. Entretanto, o reconhecimento jurídico ou não do vínculo afetivo efetivamente existente entre os companheiros não deixa simplesmente de existir pelo fato do não provimento judicial.

            Neste sentido, cumpre esclarecer que não é matéria do presente estudo tratar das famílias plúrimas, mas apenas esclarecer que a multiplicidade de afeto existente entre diversas pessoas pode dar ensejo a este tipo de estrutura familiar, como a diversas outras.

            Ainda, requer-se demonstrar que não existe possibilidade de se rotular as diversas hipóteses de estruturas familiares capazes de serem constituídas, pois se trata de um fato natural, cultural e social, que de modo algum pode ser imposto. E ainda que venha a ser imposto um modelo, este não será cumprido em sua integralidade, pois as relações afetivas despidas das formalidades legais continuarão a existir como sempre existiram.

4.3. A Poliafetividade e a monogamia como função ordenadora da família.

            Conforme anteriormente exposto, a monogamia produz efeitos sobre aqueles que possuem matrimônio. Assim, o indivíduo casado não pode constituir união estável, nem mesmo outro matrimônio sob pena de nulidade do casamento no âmbito civil, bem como constituição de crime de bigamia no âmbito penal.

            Entretanto, a monogamia em nada produz efeito àquele que estando em união estável constitui matrimônio, uma vez que a união estável preexistente não é impedimento para um posterior casamento, e nem mesmo para outra união estável.

            Isso se dá pelo fato do Artigo 1.521, IV do Código Civil determinar que não podem se casar as pessoas já casadas, nem podem estas constituir união estável, conforme previsto no parágrafo primeiro do Artigo 1.723 do Código Civil. In verbis:

Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.

§ 1o A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente.

            Note-se que não constitui impedimento para a união estável a existência de outra união estável. Nem mesmo é impedimento para a constituição de matrimônio a existência prévia de uma união estável.

            Assim, pelo previsto em lei, inexiste impedimento para a constituição de uniões estáveis simultâneas, bem como união estável paralela a matrimônio, desde que esta seja anterior ao casamento.

            Neste aspecto, é notório que existe uma lacuna na lei, ou seja, inexiste “autorização previamente mencionada para ordenar uma sanção que não foi estabelecida por uma norma geral preexistente.”[57]

            Em tais casos, o indivíduo está autorizado a praticar todos os atos que não estiverem proibidos por lei, podendo, desta forma, exercer normalmente o seu direito de liberdade.

            Quando a isso, Hans Kelsen assim afirma:

Só porque não existe nenhuma norma que obrigue o réu à conduta reclamada pelo queixoso, o réu é livre, segundo o Direito positivo, e não cometeu nenhum deito com a sua conduta. Se o juiz rejeita a ação ele aplica, por assim dizer, a regra negativa de que ninguém deve ser forçado a observar a conduta à qual não está obrigado pelo Direito.[58]

            Ainda no mesmo sentido, a própria ADPF 132 que passa a admitir a constituição de união estável homoafetiva, bem como a sua conversão em casamento, assim expõe:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir interpretação conforme à Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de promover o bem de todos. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão “família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas. 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no § 3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”, não pretendeu diferenciá-la da família. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do § 2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. 5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de “interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva.[59]

            Assim, se o Código Civil não estabelece nenhum número específico de companheiros para a união estável, nem mesmo impõe nenhuma restrição à constituição paralela de uniões estáveis preexistentes ao casamento, nem mesmo uniões estáveis simultâneas, podem os indivíduos exercerem normalmente o seus direito de liberdade devidamente resguardados no Artigo 5º da CRFB/88.

            Podendo assim, o indivíduo, dentro do seu direito e garantia fundamental de liberdade, escolher o(s) seu(s) companheiro(s), bem como a estrutura familiar a qual deseja integrar de forma duradoura e contínua, sem interferência Estatal.

            Afinal, trata-se de um direito individual, personalíssimo, tendo em vista, que somente o próprio indivíduo é capaz de saber e decidir como deseja viver a sua vida. Ademais, tendo em vista o princípio da Dignidade da Pessoa, que resguarda a liberdade e a autonomia da vontade, deve o Estado se preocupar em estabelecer condições dignas para que o indivíduo possa alcançar seus objetivos pessoais e não o impedir de sua busca pessoal à felicidade, conforme se passará a demonstrar.

4.4. A Poliafetividade e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

            Inicialmente, antes de adentrar o tema a ser abordado no presente tópico, faz-se necessário esclarecer um dos conceitos introdutórios do direito, qual seja: a diferença entre o conceito de princípios e regras.

            Quanto a isso, entende-se, de maneira sucinta, que o princípio é a causa primeira, a raiz ou a razão, enquanto a regra é aquilo que regula, dirige ou rege. Neste sentido, pode-se entender que os princípios servem como balizadores das regras. Ou seja, os princípios são normas jurídicas genéricas, enquanto as regras são normas específicas que tem como balizadores e norteadores os princípios.

            Para uma melhor e completa apreensão, faz-se necessário destacar o entendimento de Maria Berenice Dias, que em seu Manual assim explica:

Os princípios são normas jurídicas que se distinguem das regras não só porque têm alto grau de generalidade, mas também por serem mandatos de otimização. Possuem um colorido axiológico mais acentuado do que s regras, desvelando mais nitidamente os valores jurídicos e políticos que condensam. [...] Consagram valores generalizantes e servem para balizar todas as regras, as quais não podem afrontar as diretrizes contidas nos princípios. [60]

            Assim, tendo em vista a importância de um princípio, tem-se que o descumprimento do mesmo afronta não somente a norma em si, mas a todo o sistema, pois o tem como causa primeira, raiz, ou razão de ser. É o que também afirma Maria Berenice Dias ao citar Celso Antônio Bandeira de Mello:

Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema e, como diz Celso Antônio Bandeira de Mello, violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um princípio mandamental obrigatório, mas a todo o sistema de comandos.[61]

            Neste sentido, é sabido que o vigente ordenamento jurídico brasileiro adota como princípio, ou seja, como balizador de suas regras, o Princípio a Dignidade da Pessoa Humana, o qual, em sua essência prevê que a pessoa humana tem o fim em si mesma, e que o Estado deve além de protegê-la, instituir meios de promover a sua dignidade

            Tal princípio não é uma inovação jurídica do sistema brasileiro, pelo contrário, trata-se de norma principiológica antiga, a qual seu conceito varia em decorrência das razões históricas, culturais e sociais de sua aplicação.

            Quanto a isso, Carlos Henrique Bezerra Leite, em seu Manual de Direitos Humanos disciplina acerca de tal princípio, tendo como base as noções filosóficas de Immanuel Kant, da seguinte maneira:

A noção do princípio da dignidade da pessoa humana é antiga e desde sua existência até os dias atuais vem sofrendo mutação em seu conceito e em sua aplicabilidade. Na antiguidade clássica, a dignidade era quantificada, na medida em que quanto mais alta a posição social que o indivíduo ocupava e o seu grau de conhecimento, mais dignidade ele teria. Mas é com a filosofia de Immanuel Kant que esta concepção passa a se aproximar dos contornos modernos. Para Kant, o fundamento da dignidade da pessoa humana encontra-se na autonomia da vontade, atributo encontrado apenas nos seres racionais; a pessoa deve ser considerada como um fim, e não como um meio, e que “no reio dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto, não permite equivalente, então ela tem dignidade”[62]

            O pensamento Kantiano destacado por Carlos Henrique Bezerra Leite se encontra na obra “Fundamentação da metafísica dos costumes”, onde, em continuidade, Immanuel Kant assim também expõe:

O Homem, e duma maneira geral, todo ser racional, existe com o fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrario, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. [grifo][63]

            Não apenas o filósofo Immanuel Kant, mas Thomas Hobbes também entendeu que a pessoa humana deve ser considerada com o fim em si mesmo, e inclusive devem as normas servirem como meio de regular as condutas humanas para que os indivíduos possam realizar as suas vontades e desejos. É o que afirma em sua obra: “Do ofício do soberano representante”:

Uma boa lei é aquela que é necessária para o bem do povo e, além disso, perspícua. Pois o objetivo das leis (que nada mais são que regras autorizadas) não é coibir o povo de todas as ações voluntárias, mas sim dirigi-lo e mantê-lo num movimento tal que não se fira com seus próprios desejos impetuosos, com a sua temeridade ou indiscrição; assim como as sebes não são colocadas para deter os viajantes e sim para mantê-los no caminho. Por conseguinte, uma lei que não é necessária, não tendo o verdadeiro fim de uma lei, não é boa.[64]

Neste sentido, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é considerado como valor nuclear da ordem constitucional, bem como um macroprincípio do qual derivam todos os demais princípios, tais como o da liberdade, autonomia privada, cidadania, igualdade e solidariedade[65]

Ressalte-se ainda que o Princípio da Dignidade da Pessoa humana possui duas dimensões[66], conforme doutrina Guilherme Peña de Moares, quais sejam: (i) dimensão autônoma, pois conforme já afirmava Immanuel Kant, o homem existe com o fim em si mesmo; e (ii) a dimensão protetiva na qual o Estado tem o poder/dever de resguardar os interesses de cada indivíduo na falta de capacidade técnica de escolha.

Ou seja, a pessoa humana deve ter o fim em si mesma, e o Estado tem a função de promover meios para que a pessoa humana alcance os seus objetivos, estabelecendo mecanismos que a ajudem e não que a coíbam de atingir seus desígnios, exceto quanto, por falta de capacidade técnica o indivíduo não consiga escolher aquilo que é bom para ele, acabando por escolher aquilo que o prejudique, motivo pelo qual, o direito à vida, à integridade física e à saúde, por exemplo, devem se sobrepor ao direito de liberdade.

Passados estes esclarecimentos, há de ressaltar ainda que o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana incide inclusive e de maneira evidente sobre o direito das famílias. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves:

O Direito de família é o mais humano de todos os ramos do direito. Em razão disso, e também pelo sentido ideológico e histórico de exclusões como preleciona Rodrigo da Cunha Pereira, “é que se torna imperativo pensar o Direito de Família na contemporaneidade com a ajuda e pelo ângulo dos Direitos Humanos, cuja base e ingredientes estão, também, diretamente relacionados à noção de cidadania”. A evolução do conhecimento científico, os movimentos políticos e sociais do século XX e o fenômeno da globalização provocaram mudanças profundas na estrutura da família e nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo, acrescenta o mencionado autor, que ainda enfatiza: “Todas essas mudanças trouxeram novos ideiais, provocaram um ‘declínio do patriarcalismo’ e lançaram as bases de sustentação e compreensão dos Direitos Humanos, a partir da noção de dignidade da pessoa humana, hoje insculpida em quase todas as constituições democráticas.”[67]

            O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana se torna mais evidente no Direito das Famílias, porque nele já se pode verificar, incialmente a intenção do Estado na proteção da família independente da sua estrutura, ou seja, o Estado atualmente garante sua integral proteção à família, independente da forma pela qual tenha sido constituída, tendo em vista o finalidade do indivíduo em si mesmo, qual seja: o desejo de constituir família.

Por esse motivo é que passa o Artigo 226 da vigente Constituição Federal a não estabelecer um rol taxativo, e sim a adotar interpretação teleológica, finalística, na qual, nas palavras de Guilherme Peña, “leva em contemplação a finalidade da norma constitucional, por meio da apuração dos valores tutelados por ela”.[68]

Ou seja, a vigente Constituição Federal entende que a norma constitucional deve alcançar a sua finalidade tendo como base os princípios norteadores estabelecidos por ela. Neste sentido, sendo o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, a causa primeira do Direito Constitucional, ora base do sistema jurídico brasileiro, deve o Artigo 226 da CRFB/88 adotar interpretação ampla, para que atinja a sua finalidade.

Ademais, torna-se ainda mais evidente o referido princípio no Direito das Famílias, pelo fato de ser direito da pessoa humana constituir família, bem como de não constituir ou se divorciar. Não obstante, é na família, que se verifica o desenvolvimento do amor, afeto, respeito, confiança, etc.

Deste modo, se a pessoa humana possui o fim em si mesma, deve o indivíduo, dotado de capacidade técnica de escolha, buscar os seus objetivos particulares, desde que tal escolha não fira os direitos de outrem, sendo este, inclusive, o pensamento de Immanuel Kant, in verbis:

Toda ação é justa quando, em si mesma, ou na máxima da qual provém, é tal que a Liberdade da Vontade de cada um pode coexistir com a liberdade de todos, de acordo com uma lei universal.[69]

Ainda, conforme já mencionado, há de se ressaltar que o referido supraprincípio resguarda ainda demais princípios, tais como o da liberdade, onde cada indivíduo lutará de acordo com os seus interesses particulares, tendo como finalidade o alcance de objetivos específicos, e o pluralismo das entidades familiares, onde cada indivíduo possui o direito de constituir família segundo sua vontade, devendo o Estado agir somente como mero protetor[70].

Assim, se a felicidade do indivíduo consiste na constituição de família com um número maior que dois companheiros, deve o Estado resguardar tal relação com base no princípio da Dignidade da Pessoa Humana, ora princípio base da vigente Constituição Federal.

Sendo certo ainda, que a escolha na quantidade de companheiros em uma relação afetiva ou estrutura familiar em nada impossibilita ou prejudica a liberdade dos demais indivíduos, sendo plenamente possível a sua coexistência com interesses diversos.

Isso se dá pelo fato de que, conforme afirma Carlos Henrique Bezerra Leite, a Constituição Federal garante o direito de ser igual e o direito de ser diferente, afinal, o Artigo 5º da CRFB/88 estabelece que todos são iguais perante a lei, entretanto, ela resguarda a liberdade de consciência, crença, etc.

            Ante o exposto, conclui-se, portanto, que a poliafetividade, ou seja, o afeto existente entre várias pessoas, capaz de constituir família, é plenamente resguardado pelo princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Afinal, trata-se de interesse particular e objetivo específico de determinado indivíduo para o alcance da sua própria felicidade, sendo o dever do Estado o de simplesmente resguardar tais relações e promover a felicidade de seus tutelados, bem como resguardar os princípios constitucionalmente garantidos por ele.

4.5. A Possibilidade das Uniões Poliafetivas no vigente ordenamento jurídico brasileiro.

            Conforme exposto inicialmente no presente trabalho monográfico, o indivíduo, já nos primórdios, se relacionava com base no afeto, e por conta deste podia manter relações com tantas pessoas, quanto fosse capaz de adquirir e manter, existindo, inclusive, os denominados casamentos grupais.

            Apontou-se ainda, que tais relações múltiplas, diferentemente do que ocorre com os animais irracionais, não se tratam de relações promíscuas, pois estas, nunca foram desordenadas, afinal, a espécie humana, sendo a única racional, sempre esteve submetida a normas.

            Ademais, demonstrou-se, pelos relatos históricos, bem como as estatísticas das demais espécies animais e índices de traição, inclusive no Brasil, que a espécie humana não é e nem nunca foi em sua essência monogâmica, tratando-se de uma imposição do Estado para, na antiguidade, delimitar a prole.

            Neste sentido, é possível verificar que não é anormal que um indivíduo tenha relação afetiva com mais de um companheiro, assim, não faz sentido que o Estado imponha algo que afronta os próprios sentidos naturais da espécie humana, tendo em vista que estes não afrontam e nem impedem o convívio em sociedade.

            É exatamente diante desta imposição Estatal, que tais relações poliafetivas, que não se confundem com as poligâmicas, estão presentes na atual sociedade, porém, não estão formalizadas, o que acaba por não se reconhecerem os direitos dela advindos.

            Ocorre que, ainda que haja imposição do modelo monogâmico, a vigente Constituição Federal não veda a constituição de relações múltiplas, porém, permanece lacunosa. Neste aspecto, verifica-se a possibilidade da constituição de união estável paralela ao casamento, desde que esta seja previamente constituída, bem como a possibilidade de duas ou mais uniões paralelas concomitantes.

            É neste momento que se verifica a possibilidade jurídica das uniões poliafetivas no vigente ordenamento brasileiro, afinal, diante desta ótica é possível que o indivíduo formalize as suas relações afetivas, a fim de resguardar direitos.

            Tal possibilidade jurídica encontra-se ainda resguardada pela vigente Constituição Federal, afinal, a mesma dá integral proteção à família, independente da forma pela qual esta é constituída, tendo como base o princípio da Dignidade da Pessoa Humana, na qual a pessoa humana deve ter o fim em si mesma.

            Deste modo, somente o próprio indivíduo é capaz de identificar aquilo que propõe sua própria felicidade, e não o Estado, devendo este escolher qual o modelo familiar pretende ser integrante.

            Assim, a família não poderia ser estruturada somente por meio de um modelo rígido, no qual, aqueles que desejam constituir família deverão, necessariamente, se prenderem e passarem a sua vida encarcerado numa imposição estatal incapaz de proporcionar ao indivíduo meios dignos para que possa buscar a sua felicidade.

            Quanto a isso, o filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel, de forma brilhante define a família da seguinte forma:

A família, como a imediata substancialidade do espírito, é especificamente caracterizada pelo amor, que é o sentimento do espírito da sua própria unidade. Por isso, numa família, a disposição de espírito de uma pessoa é ter autoconsciência da própria individualidade dentro dessa unidade como a essência absoluta de si mesma, com o resultado de que se está nela não na condição de uma pessoa independente, mas sim como um membro.[71]

            Ou seja, não basta que ao indivíduo seja imposto um modelo de constituição de família, é necessário que haja afeto. Inexistindo relação afetiva, restará apenas uma estrutura imposta por lei, e não uma família; entretanto, havendo afeto, pouco importa a estrutura familiar, esta poderá ser considerada família, devendo haver a ela integral proteção do Estado.

CAPÍTULO V – CONCLUSÕES

            O objetivo do presente trabalho, devidamente atingido, é o de demonstrar que além de normais e reais, as relações poliafetivas são possíveis juridicamente, diante da inexistência de previsão legal quanto a sua impossibilidade, e inclusive, possuem integral proteção do Estado, conforme previsto na Carta Magna.

            Neste sentido, vislumbra-se a necessidade de maior acompanhamento jurídico do tema, a fim de que se entenda que não se trata de afronta à moral e aos bons costumes, e sim de um processo de evolução social, simplesmente.

            Somente por meio de estudos antropológicos, sociológicos, científicos, legais e etc é que se poderá desmistificar o preconceito em relação às uniões poliafetivas, e ter coragem de reconhecer sua existência e necessidade de proteção Estatal.

            Afinal, o papel do Direito é de tutelar e balizar as relações antagônicas, derivadas dos interesses de cada indivíduo, devendo o Estado proteger o ser humano dentro de suas particularidades, e não de privá-lo do direito basilar do ordenamento jurídico brasileiro, qual seja: o da Dignidade da Pessoa Humana.

            Por fim, uma vez que a humanidade tende a estar em constante evolução, deve-se, antes de analisar o referido tema, esvaziar-se de todo preconceito, sendo certo, que tais mudanças sociais não ocorrem imediatamente, porém, de forma evolutiva, carecendo de tempo para aceitação social, o que não poderia ser diferente em relação às uniões poliafetivas.

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