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A advocacia pública, a judicialização da política e o princípio da harmonia entre os poderes

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12/12/2016 às 14:45
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3. A advocacia pública no contexto da judicialização da política

Como já dito, cabe a advocacia pública buscar a tutela dos interesses do Estado e, na medida que a administração pública, de forma geral, pauta as suas ações pela realização dos interesses públicos, então cabe a advocacia pública a tutela jurisdicional destes mesmos interesses.

Contudo, a doutrina do direito administrativo costuma fazer uma distinção entre interesse público primário e interesse público secundário.

Seria o interesse público primário a realização do bem comum, é claro que este é um conceito ainda muito abstrato e aberto, mas pode-se dizer que este é todo interesse que gera benefícios a sociedade como um todo, dando-lhe melhor qualidade de vida. A constituição federal, ao enumerar os direitos e garantias fundamentais e os objetivos fundamentais da República, também nos elucida o conteúdo deste interesse.

Já o interesse público secundário seriam os interesses do próprio Estado como sujeito de direitos. No entanto, se o estado existe para a realização do interesse público primário (interesse fim), o interesse público secundário seria apenas um interesse mediático, ou seja, a forma escolhida pelo Estado para se atingir aquele fim primeiro.

“O Estado, concebido que é para a realização de interesses públicos (situação, pois, inteiramente diversa da dos particulares), só poderá defender seus próprios interesses privados quando, sobre não se chocarem com os interesses públicos propriamente ditos, coincidam com a realização deles.”9

Assim, mesmo admitindo que a Advocacia pública atua na defesa judicial e extrajudicial do interesse público secundário, pois atua na defesa do Estado como sujeito de direitos, tal prática só é válida enquanto não contraria a realização de nenhum interesse público primário e, na verdade, enquanto encontra no interesse público primário sua razão de ser, pois qualquer ação do Estado que não esteja pautada pela busca do interesse público primário está viciada pelo desvio de finalidade ou abuso de poder.

Então volta-se a questão: bem comum, dignidade da pessoa humana e promoção dos direitos fundamentais são fins, os quais podem ser realizados por diferentes meios pelo Estado. Cabe a administração pública, liderada por representantes eleitos pelo povo, definir quais os meios que serão utilizados para a obtenção destes fins.

Assim, cabe a Advocacia Pública a orientação jurídica destes representantes, para que os meios adotados não violem a Constituição e as normas vigentes. Para isso, visando a harmonização entre os poderes, deve a Advocacia Pública sempre pautar-se pela interpretação já consolidada dada a estas normas pelos tribunais.

É missão também da Advocacia Pública defender judicialmente as políticas públicas adotadas diante dos questionamentos sempre possíveis em um sistema de controle judicial da administração, mostrando ao Juiz que os meios adotados são eficientes para a realização do interesse público primário, já que este é seu maior critério de validade.

Em um contexto de judicialização da política, como o apresentado no capítulo anterior, a atuação da Advocacia Pública ganha ainda maior relevância, pois se as políticas públicas podem ser constantemente reapreciadas pelo Poder Judiciário, mesmo em seus critérios discricionários, em relação a sua conformidade com a Constituição, então o órgão que presta a consultoria e assessoramento jurídico da administração se torna vital para que as políticas públicas não sejam descontinuadas em virtude da imputação de vícios de constitucionalidade e legalidade perante o Judiciário, a Advocacia Pública se torna instituição incumbida da orientação preventiva da administração.

Frise-se ainda que o Judiciário, ao adotar uma postura ativista no estabelecimento de políticas públicas sem uma efetiva e eficiente participação processual da Advocacia Pública, pode cometer erros que geram enormes danos a coletividade, por ser a sua decisão embasada em elementos restritos sobre a complexidade do problema enfrentado pela administração.

Assim, cabe a Advocacia Pública levar ao conhecimento do Juiz toda a complexidade da implementação das políticas públicas, quando esta já foi estudada com profundidade e objeto de deliberação pela administração, demostrando que a solução adotada pela administração, entre as soluções possíveis, é a mais viável.


Conclusão

A institucionalização das diferentes funções essenciais à justiça não pode ser interpretada de outro modo, senão que a Constituição de 1988 entende por realização da justiça a promoção dos mais diversos interesses presentes na sociedade e a sua convivência de forma harmoniosa.

É esta a missão das funções essenciais à justiça, atuar judicialmente e extrajudicialmente na harmonização dos interesses e valores dos mais diversos setores, grupos sociais e indivíduos que convivem em nosso Estado, buscando o desenvolvimento de uma sociedade justa.

Nesta perspectiva, a missão da Advocacia Pública é dupla, pois considerando sua atribuição de prestar consultoria e assessoramento jurídico à administração e de defesa judicial dos interesses do Estado, tem ela como missão não apenas harmonizar os interesses do Estado com o restante da sociedade, mas também harmonizar a relação entre os próprios poderes constituídos deste Estado, pois serve ela como canal de comunicação entre Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, levando a cada um dos demais poderes as razões de agir e decidir do outro.

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A doutrina clássica se refere comumente ao princípio da harmonia entre os poderes pela existência de sistemas de freios e contrapesos, em geral, exaltando as normas constitucionais que permitem um Poder invalidar o ato praticado pelo outro, no entanto, um Estado Democrático de Direito – no qual os direitos fundamentais não são protegidos apenas formalmente, mas são garantidos materialmente pelo Estado – não se constrói apenas se autolimitando o Poder do Estado, no qual um Poder anula a prática do outro.

É preciso ir além, os Poderes – apesar de independentes entre si, o que preserva o princípio democrático – precisam ser mais harmônicos na definição dos meios de realização do interesse público, para que se alcance um maior grau de eficiência na promoção dos direitos fundamentais e do Estado de Justiça.

Neste contexto, a Advocacia Pública ganha enorme relevância, pois, se ela conseguir realizar efetivamente o seu papel constitucional de orientação preventiva da administração, bem como, de exposição dos motivos determinante da adoção das políticas públicas ao Estado-Juiz, então poderá colaborar com a harmonização dos poderes sem realizar nenhum ato que anule a prática de qualquer um deles.

Frise-se, não estamos defendendo que a existência de uma Advocacia Pública forte impedirá a existência de qualquer conflito entre os poderes, só estamos dizendo que a atuação eficiente da Advocacia Pública pode colaborar muito para a diminuição destes conflitos, auxiliando na criação de um sistema de colaboração recíproca entre os poderes constituídos.

Contudo, sem uma advocacia pública forte e estruturada, corremos o risco de produzir cada vez mais uma jurisprudência míope que tutele diferentes interesses privados, mas que é incapaz de produzir um Estado de Justiça, porque a forma que o Estado encontrou para satisfazer o interesse público (o bem de todos) não é devidamente representado na produção desta jurisprudência.

Frise-se, no Estado Democrático de Direito não basta mais termos ciência de quais fins pretendemos alcançar. É preciso saber quais meios serão adequados para a obtenção destes fins, e, neste contexto, é que o princípio da harmonia entre os poderes ganha enorme relevância, pois se os diferentes poderes optam pela utilização de meios distintos e contraditórios de realização do interesse público, então podemos nunca realizá-los.

“Tudo isso demonstra que os trabalhos do Legislativo e do Executivo, especialmente, mas também do Judiciário, só se desenvolverão a bom termo, se esses órgãos se subordinarem ao princípio da harmonia, que não significa nem o domínio de um pelo outro nem a usurpação de atribuições, mas a verificação de que, entre eles, há de haver consciente colaboração e controle recíproco (que, aliás, integra o mecanismo), para evitar distorções e desmandos.”10

Como já dito, os tribunais se tornaram hoje a principal arena dos embates políticos e da construção da visão de justiça de uma sociedade que busca materializá-la nas normas jurídicas, contudo, a falta de estrutura e de autonomia da Advocacia Pública nas diferentes esferas de governo só colabora com a aparente desarmonia entre os poderes constituídos e a sensação nos cidadãos de um desgoverno que adota posições contraditórias em cada um dos seus diferentes poderes.


Notas

1SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 119.

2CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. Salvado: Editora JusPodivm. 2015. p. 435.

3BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acessado em: 17/09/2016.

4 NUNES JÚNIOR, Amandino Teixeira. A Judicialização da Política no Brasil: Os Casos das Comissões Parlamentares de Inquérito e da Fidelidade Partidária. Brasília: Câmara dos Deputados. 2016. p 22.

5 GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião de promessas. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 48.

6 REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 272.

7 REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 713.

8MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Funções Essenciais à Justiça. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; NASCIMENTO, Carlos Valder do. Tratado de Direito Constitucional. Vol. 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 1129.

9 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 19º edição. Editora Malheiros. São Paulo, 2005, pag. 66.

10SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 111.

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Sobre o autor
Jaison Silveira

graduado em Filosofia pelo Centro Universitário de Brusque - UNIFEBE (2004) e em Direito pela Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (2013); é advogado e servidor público do Município de Jaraguá do Sul/SC, ocupando o cargo de Procurador Municipal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Jaison. A advocacia pública, a judicialização da política e o princípio da harmonia entre os poderes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4912, 12 dez. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54453. Acesso em: 23 abr. 2024.

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