RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise acerca das manobras efetuadas durante décadas para postergar a licitação para a outorga do serviço público para o transporte rodoviário de passageiros de competência da União. Discorre-se sobre a regulação, sobre as agências reguladoras e sobre o papel da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) diante das referidas manobras, no caso, descumprindo-se determinação constitucional.
PALAVRAS-CHAVE: Regulação. Transporte Rodoviário de Passageiros. ANTT.
INTRODUÇÃO
O principal modal que atinge a matriz de transporte brasileira é o modal rodoviário. A escolha pelo modal rodoviário teve seu impulso no governo Juscelino Kubitschek, que implantou a indústria automobilística, transferiu a capital para Brasília e acelerou a construção de rodovias. A partir do governo Juscelino, as rodovias passaram a ser quase exclusividade dos investimentos em transportes terrestres no país. Nos governos militares, na década de 70, foi criado o Plano de Integração Nacional (PIN) direcionado à implantação de grandes rodovias, como parte de um projeto mais amplo dos governos militares de ocupação do Centro-Oeste e de colonização da Amazônia. O Fundo Rodoviário Nacional (FRN) foi instituído com o propósito de financiar os projetos do PIN. A política rodoviarista ficou profundamente abalada com a extinção do FRN em 1988.
O modal rodoviário de transporte de passageiros é o meio de condução mais utilizado pela população brasileira. Tal predominância decorre da maior abrangência da malha rodoviária, além de aspectos relacionados a serviços ofertados e ao valor de tarifas. A expansão rodoviária em um país continental como o Brasil foi fundamental para otimizar o deslocamento da população entre municípios, apresentando reflexos diretos na economia do país, bem como na construção do arcabouço social deste.
A Constituição Federal de 1988 reconhece quatro modalidades de transporte rodoviário de passageiros: internacional, interestadual, intermunicipal, e distrital, sendo esta última atinente ao Distrito Federal. A competência das modalidades internacional e interestadual do transporte de passageiros é atribuída a entidades federais (CF, art. 21, XII), a modalidade distrital por entidades do Distrito Federal (CF, art. 32, §1º), e a intermunicipal está sob a responsabilidade dos Estados (CF, art. 25, §1º). Quanto a outorga do serviço público de transporte rodoviário de passageiros de competência da União, a Carta Magna assinala ainda que ela somente poderia ser feita mediante prévia licitação pública (CF, art. 175).
Adicionalmente à Carta Magna, o transporte rodoviário de passageiros pode apresentar a seguinte subdivisão: o Transporte Rodoviário Urbano de Passageiros (movimentação em centros urbanos/região metropolitana); o Transporte Rodoviário Intermunicipal, Interestadual e Internacional: (serviço a bordo, viagens a longas distâncias); o Transporte Rodoviário Escolar: (janela acordada de tempo para empresas e usuários); o Transporte Rodoviário de Turismo: (roteiros e horários particulares); e o Transporte Rodoviário Particular de Passageiros: (deslocamento de empregados entre diferentes locais).
O presente trabalho foi desenvolvido por meio da metodologia científica denominada indutiva, exibindo pesquisa qualitativa a partir de estudo bibliográfico realizado na legislação pátria vigente, correspondente à matéria tratada, doutrinas jurídicas, artigos científicos, assim como consultas jurisprudenciais e materiais diversos disponibilizados na internet.
1. AS AGÊNCIAS REGULADORAS
No Brasil, desde o início do século XX, já havia entidades com funções regulatórias e fiscalizatórias de setores econômicos, mas que não eram chamadas de agências. Di Pietro (2007, p. 434) menciona algumas[1]:
[...] no período de 1930-1945, o Comissariado de Alimentação Pública (1918), o Instituto de Defesa Permanente do Café (1923), o Instituo do Açúcar e do Álcool (1933), o Instituto Nacional do Mate (1938), o Instituto Nacional do Pinho (1941), o Instituto Nacional do Sal (1940), todos esses institutos instituídos como autarquias econômicas, com a finalidade de regular a produção e o comércio. Além desses, podem ser mencionados outros exemplos, como o Banco Central, o conselho Monetário Nacional, a Comissão de Valores Mobiliários e tantos outros órgãos com funções normativas e de fiscalização.
Regulação significa organizar determinado setor afeto às agências, bem como controlar as entidades que atuam nesse setor. Consiste na edição de regras, a garantia de sua aplicação e a punição de infrações. Envolve, portanto, os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
A criação das agências atuais remonta a década de 1990. As primeiras completarão em breve 20 anos de criação.
Com natureza jurídica de autarquia especial, as agências reguladoras gozam de certa independência que deve bem entendida como apenas uma maior ou menor autonomia, dentro dos parâmetros fixados pelo ordenamento jurídico. Essa autonomia surge com a própria lei instituidora que garante às agências uma autonomia: administrativa de autogestão (em gerir seus próprios recursos); financeira, tendo orçamento próprio desvinculado do órgão do executivo central; e técnica, no sentido de regular o setor econômico.
Na autonomia administrativa um ponto que se destaca é em relação aos mandatos dos dirigentes da agência, que são nomeados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado Federal, sendo vedada a exoneração ad nutum e com prazo fixo de mandatos que, por sua vez, não são coincidentes com o mandato presidencial. É essa estabilidade que garante às agências uma maior autonomia administrativa e gerencial com relação ao poder executivo.
2. AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES
O Transporte rodoviário de passageiros, que consiste relativamente na prestação de serviços pelas empresas de transporte a pessoas e coisas, está regulado e é supervisionado e fiscalizado pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres).
A conformação jurídica do transporte rodoviário de passageiros no ordenamento brasileiro é a de serviços públicos. A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro intensificou o processo de reformas econômicas com a implantação do Programa Nacional de Desestatização (Lei n.º 8.031/90), promovendo, entre 1990 e 1995, “reformas de mercado” caracterizadas, principalmente, pela abertura comercial. A partir de 1995, iniciou-se uma nova fase dentro do processo de reformas, sendo enfatizada a privatização e a desestatização de serviços públicos. Nesse contexto, foram estabelecidas, mediante a Lei n.º 8.987/95, as diretrizes gerais acerca da delegação da prestação de serviços públicos para a iniciativa privada, sendo posteriormente criadas agências reguladoras setoriais, destacando-se a ANTT. Em alguns casos o Estado deixou de exercer atividades empresariais e, em outros, passou a ter a exclusividade na prestação de serviços, como os de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros. No entanto, esses serviços têm sido integralmente prestados pela iniciativa privada.
3. LICITAÇÃO NO SERVIÇO DE TRANSPORTE RODOVIÁRIO DE PASSAGEIROS DE COMPETÊNCIA DA UNIÃO
Não obstante a importância do modal rodoviário no transporte de passageiros, o descaso político e o oportunismo do Poder Econômico conduziram a um processo que retardou por décadas a modernização desse modal em análise. As inúmeras manobras com o objetivo de postergar a determinação constitucional de outorga de linhas de passageiros de competência da União é um desses exemplos.
A referida determinação, disposta no art. 175 da Carta Magna, resultou na edição do decreto 99.072/90, que estipulou o prazo de 90 dias para que o Ministério dos Transportes revisasse o regulamento aprovado pelo decreto 92.353/86, adaptando-o à Constituição. Este prazo não foi cumprido, iniciando-se um processo de sucessão de normas visando resguardar e perpetuar as prestadoras desse serviço, evitando-se, assim, as licitações devidas.
O art. 94 do decreto 952/93 atingiu esse propósito indevido, concedendo um prazo de 15 anos para que a União licitasse todo o sistema, prorrogando, dessa forma, as permissões vigentes das empresas que já exploravam o serviço.
Como uma forma de estipular um prazo improrrogável dessa prática de perpetuação de permissionários, o art. 98 do decreto 2.521/98 considerou válida a prorrogação efetivada no decreto supracitado de 1993, deixando determinado, entretanto que a União teria até 2008 para concluir o processo para outorga das linhas.
Não contrariando as expectativas, em 2008, o processo de outorga das linhas não foi concluído. Diante de tal quadro, a ANTT passou a se valer da figura da autorização prevista na Lei 10.233/01 para continuar prorrogando indevidamente a outorga do serviço público às empresas que já o prestavam há vários anos sem terem participado de licitação pública. Diversas resoluções foram publicadas com este objetivo prorrogatório.
Em 2010, a decisão proferida pelo STF na Suspensão de Tutela Antecipada 357, reconheceu-se a situação insustentável existente:
“Não obstante a complexidade que caracteriza o referido programa de licitações - haja vista a quantidade de linhas a serem licitadas e a necessidade de se conferir racionalidade ao sistema -, entendo restar caracterizado, na espécie, quadro de flagrante omissão administrativa, pois, em verdade, passados mais de vinte anos da edição da Constituição de 1998, que, seu art. 175, expressamente exige que toda e qualquer permissão ou concessão de serviço público seja precedida de licitação, permanecem em vigor concessões, permissões e autorizações outorgadas sob a realidade constitucional pretérita e não precedidas de licitação”.
Buscando contornar a pressão do Poder Judiciário, a ANTT, em 2013, a ANTT veiculou edital de licitação para a outorga de permissão para prestação de serviço público regular de transporte rodoviário interestadual de passageiros operado por ônibus do tipo rodoviário.
Surpreendentemente, ANTT suspendeu o referido edital, alterando o instrumento convocatório para enxertar exigência que, na prática, mantinha os atuais prestadores do serviço em qualquer consórcio vencedor. Ou seja, tratava-se de um jogo com cartas marcadas, e a intervenção do Poder Judiciário se fez com o intuito de impedir tal acinte ao interesse público. A ANTT, inicialmente disposta a não cumprir a decisão judicial, terminou por revoga-lo com o advento da Lei Federal 12.996/14, absolutamente inconstitucional.
A Lei Federal 12.996/14 acabou com a obrigatoriedade de licitação para a outorga do serviço de transporte rodoviário interestadual de passageiros, além de possibilitar a prorrogação de forma indeterminada dos serviços prestados pelos operadores vigentes.
Recentemente, o procurador-geral da República, ingressou com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal para derrubar a dispensa inconstitucional de licitação da outorga para prestação regular de serviços de transporte terrestre coletivo interestadual e internacional de passageiros (ADIn 5.549-DF).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O transporte rodoviário de passageiros carece de um projeto de governo que o modernize e o traga à luz do século 21. Contrariamente, convive com uma situação na qual os investimentos são raros e ineficientes.
Ademais, o transporte rodoviário de passageiros está inserido em um sistema corrupto que perpetua os serviços prestados pelos operadores vigentes deste modal de transporte. E, ao longo dos anos, diversas manobras foram realizadas com esse intuito.
Embora haja uma determinação constitucional, a licitação para a outorga do serviço público para o transporte rodoviário de passageiros é deixada de lado e não é concretizada. Crimes de responsabilidade se perpetuam, enquanto o interesse público é deixado de lado em favor de poderosos interesses econômicos. A ADIn 5.549-DF desponta como o último bastião para implementação de algo previsto há quase trinta anos. O quadro vislumbrado, entretanto, não é animador.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição (1946). Constituição dos Estados Unidos do Brasil.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui
%C3%A7ao46.htm>. Acesso em 25 nov. 2016.
BRASIL (1995) Lei nº 8987, de 13 de fevereiro de 1995. Que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previstos no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências.
BRASIL (1998) Decreto nº 2521, de 20 de março de 1998. Sobre a exploração mediante permissão e autorização de serviços de transporte rodoviário dual e internacional de passageiros e dá outras providências.
DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 981 p.
Nota
[1] DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007.