2 AS ENTIDADES DO TERCEIRO SETOR
2.1 A DIVERGÊNCIA SOBRE QUAIS ENTIDADES COMPÕEM O TERCEIRO SETOR
Inicialmente, não há unanimidade em doutrina com relação a quais entidades integram o Terceiro Setor.
Com efeito, parece que o consenso existe apenas quanto às organizações sociais e às organizações da sociedade civil de interesse público, que toda doutrina afirma serem integrantes do Terceiro Setor.[79]
No que tange aos serviços sociais autônomos, parte dos juristas[80] os incluem no âmbito do Terceiro Setor, enquanto outros[81] os excluem.
Valter Shuenquener de Araújo e Maria Sylvia Zanella Di Pietro acrescentam ao rol das entidades do Terceiro Setor as entidades de apoio.[82]
Cumpre notar que os serviços sociais autônomos e as entidades de apoio não possuem uma lei geral trazendo, de maneira uniforme, suas características. O que há é legislação esparsa, o que imprime certa dificuldade ao estudo.
No que tange às organizações sociais, há a Lei Federal nº 9.637/98; enquanto as organizações da sociedade civil de interesse público são disciplinadas pela Lei Federal nº 9.790/99. Insta salientar que Estados, Distrito Federal e Municípios podem trazer suas respectivas leis, em respeito à sua autonomia federativa.
Passa-se, então, ao estudo das principais entidades do Terceiro Setor (serviços sociais autônomos, organizações sociais, organizações da sociedade civil de interesse público e entidades de apoio), sem se esquecer de mencionar que não são as únicas, vez que há outras entidades que podem se enquadrar no conceito de Terceiro Setor, tal como as entidades de utilidade pública, dentre outras.
2.2 SERVIÇOS SOCIAIS AUTÔNOMOS (SISTEMA S)
Os serviços sociais autônomos, assim como todas as entidades do Terceiro Setor, são entidades privadas, sem fins lucrativos, que prestam atividade de interesse público. Também são chamados de Sistema S em função da constatação de que o nome dessas entidades costuma a começar com a letra “s”; como por exemplo: SESI, SENAI, SESC, SENAC, SEBRAE.
A expressão serviço social autônomo é consagrada em doutrina, porém não é imune a críticas. José dos Santos Carvalho Filho prefere a nomenclatura “pessoas de cooperação governamental”[83] porque, ao seu sentir
o termo serviço tem mais o sentido objetivo de tarefa, atividade do que o subjetivo de pessoa. Mas, ainda que se use serviço autônomo, no sentido subjetivo, teremos inevitavelmente a noção de pessoa. Por outro lado, o adjetivo sociais não basta para qualificar essas entidades, porque os objetivos podem ser sociais stricto sensu, de formação profissional, de amparo empresarial etc. Por isso, preferimos realçar o lado da cooperação dessas pessoas, além de qualificar suas atividades como serviços de utilidade pública, de sentido mais abrangente.[84]
Cumpre, neste passo, trazer as palavras de Hely Lopes Meirelles:
Serviços sociais autônomos são todos aqueles instituídos por lei, com personalidade de Direito Privado, para ministrar assistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais. São entes paraestatais, de cooperação com o Poder Público, com administração e patrimônio próprios, revestindo a forma de instituições particulares convencionais (fundações, sociedades civis ou associações) ou peculiares ao desempenho de suas incumbências estatutárias.
(...)
Essas instituições, embora oficializadas pelo Estado, não integram a Administração direta nem a indireta, mas trabalham ao lado do Estado, sob seu amparo, cooperando nos setores, atividades e serviços que lhes são atribuídos, por considerados de interesse específico de determinados beneficiários. Recebem, por isso, oficialização do Poder Público e autorização legal para arrecadarem e utilizarem na sua manutenção contribuições parafiscais, quando não são subsidiadas diretamente por recursos orçamentários da entidade que as criou.[85]
Com efeito, o serviço social autônomo não é integrante da Administração Pública.[86] Ademais, não presta serviço público; realiza, ao revés, atividade privada de interesse público (serviços não exclusivos do Estado).[87] E é justamente por conta da natureza da atividade prestada pelo Sistema S que o Estado fomenta a sua atuação, conforme visto no capítulo anterior.
Não existe uma lei uniforme tratando dos serviços sociais autônomos; o que há, eventualmente, são diplomas legais específicos que vão estabelecer uma autorização legal para a criação de uma entidade do Sistema S. Ou seja, a lei autoriza a criação dessas pessoas privadas e, em regra, não é o Poder Executivo que irá fazê-lo (como ocorre com entidades da Administração Indireta), mas entidades privadas: as Confederações Nacionais.[88] Por exemplo, o Decreto-lei nº 9.403/46 autorizou a Confederação Nacional da Indústria a criar e organizar o Serviço Social da Indústria – SESI, enquanto o Decreto-lei nº 9.853/46 conferiu à Confederação Nacional do Comércio o encargo de criação e organização do Serviço Social do Comércio – SESC.
Note-se, ainda, que os serviços sociais autônomos são pessoas privadas, destarte seu nascimento se dá com o registro de seus atos constitutivos no registro civil competente, na forma do artigo 45[89] do Código Civil.[90]
Neste ponto surge uma divergência na doutrina, a saber: a maior parte dos juristas entende que essas entidades podem se revestir das mais variadas formas – associação, sociedade civil, fundação –, desde que não possuam finalidade lucrativa[91]; entretanto, Diogo de Figueiredo Moreira Neto defende que os serviços sociais autônomos devem ser instituídos como associações civis.[92]
Insta salientar que a Constituição da República, em uma passagem, faz referência aos serviços sociais autônomos: artigo 240.[93] O dispositivo se restringe a explicitar que o serviço social autônomo vai ser remunerado por contribuição social. Marcos Juruena Vilella Souto, com propriedade assevera que
isso não transforma a natureza da entidade, nem, muito menos, as vincula à Administração, ainda que haja um conjunto de regras incidentes sobre a aplicação dos recursos recebidos do Estado no que concerne às finalidades fomentadas e ao dever de prestar contas. No entanto, como entidades privadas, não sujeitas a hierarquia e com receita própria, não podem receber imposição sobre maneira de efetuar suas despesas, apenas podendo ser glosadas as ilegais ou improbas.[94]
É importante notar que as contribuições sociais[95] são espécies do gênero tributo. Como é sabido, em regra, tributo somente pode ser criado por lei e a lei que cria a contribuição social diz para onde ela será dirigida. Como regra hoje, o INSS[96] faz a arrecadação e repassa para as entidades do Sistema S.
As atividades do serviço social autônomo, todavia, podem ser custeadas por outras receitas além das contribuições sociais.[97]
Apesar de não integrar a Administração Pública, como o Sistema S é, em grande parte, custeado por receitas tributárias, nos moldes do artigo 149[98] da CRFB, tem-se que a ele é aplicado um regime jurídico semelhante ao aplicado à Administração Pública em alguns aspectos.[99]
Assim, as entidades do serviço social autônomo estão submetidas ao controle do Tribunal de Contas (artigo 70, parágrafo único, c/c artigo 71, II, da CRFB)[100], além de uma supervisão ministerial feita pelo Ministério de sua área de competência (controle por vinculação).[101] “No direito positivo, o art. 183[102] do DL nº 200/67 autoriza o controle feito pelo Poder Público dos serviços sociais autônomos. O controle por vinculação é feito por cada Ministério com competência nas atividades realizadas por cada serviço social autônomo.”[103]
Cumpre agora referir-se ao regime dos agentes: os trabalhadores das entidades do Sistema S são regidos pela Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT.[104] As questões que se discutem são (i) se há ou não a necessidade de realização de concurso público para sua admissão e (ii) se há teto para a remuneração dos trabalhadores dos serviços sociais autônomos.
Com efeito, a doutrina parece concordar que os trabalhadores dos serviços sociais autônomos não são escolhidos mediante concurso público.[105] O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, também já teve a oportunidade de afirmar que o Sistema S não precisa realizar concurso público para a contratação de pessoal.[106] A interpretação que se faz do artigo 37, II, da CRFB é que o concurso público só é exigível para as entidades administrativas. Entretanto, em nome da moralidade, da legalidade e da impessoalidade, autores como a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro[107] sustentam haver a necessidade de um processo seletivo para a escolha de pessoal.
No que tange ao teto remuneratório, aqui também a doutrina em geral afirma que os serviços sociais autônomos não estão submetidos ao regime previsto no artigo 37, XI, da CRFB.[108] Isto porque o artigo 37, XI tem como destinatários apenas as entidades da Administração direta e indireta, não abrangendo, pois, o Sistema S. Todavia, não se pode deixar de mencionar o entendimento do Tribunal de Contas da União no sentido de que os dirigentes de entidades do serviço social autônomo deveriam ter limitação remuneratória.[109]
No que se refere aos bens integrantes do patrimônio do serviço social autônomo, não há dúvidas de que são bens privados.[110] Mas assevera Valter Shuenquener de Araújo que “nada impede que entre os bens utilizados pelos serviços sociais haja bens cedidos temporariamente pelo Poder Público. Esses bens continuarão sendo públicos, e não integram, por se tratar de uma mera posse de caráter transitório, o patrimônio dos serviços sociais.”[111]
Outro tema que merece destaque quando se estuda o Sistema S é a exigência ou não de licitação. Todavia, por se tratar do foco central do presente estudo, será analisado no próximo capítulo.
Há, ainda, que se mencionar a questão referente ao foro competente para processar e julgar o Sistema S. Já é pacífico que as entidades do serviço social autônomo estão sujeitas à jurisdição da Justiça Estadual.[112] Neste sentido, há a Súmula 516[113] do Supremo Tribunal Federal, que se refere especificamente ao SESI, mas tem aplicação a qualquer outro serviço social autônomo.[114][115] Entretanto, resta claro que se houver também interesse de qualquer pessoa discriminada no artigo 109, I, da CRFB, a competência será da Justiça Estadual.[116]
2.2.1 Serviço social autônomo criado antes da Constituição da República de 1988 e serviço social autônomo criado após a Constituição da República de 1988: diferenças?
É importante mencionar, de forma sucinta, o peculiar entendimento de Marcos Juruena Vilella Souto no sentido de que há diferenças fundamentais entre as entidades do Sistema S criadas antes da Constituição da República de 1988 e as criadas pelo Poder Público após a Constituição da República de 1988.
Para o mencionado autor, os serviços sociais autônomos criados antes da Constituição da República de 1988 não integram a Administração Pública, devendo se submeter a regime jurídico diverso do da Administração Pública[117] - que é o regime visto acima.
Em breves linhas, ao ver do professor, os ditos serviços sociais autônomos criados pelo Poder Público após a Constituição de 1988 têm a natureza de uma das pessoas insertas no artigo 37, XIX, da CRFB, uma vez que o Poder Público não poderia se valer de outras formas que não as do referido dispositivo.[118] Exemplos citados pelo próprio jurista são a APEX e a ABDI.[119]
Note-se, todavia, que a doutrina e a jurisprudência em geral não fazem a distinção apontada.
2.3 ORGANIZAÇÕES SOCIAIS – OS E ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO – OSCIP
Diferentemente dos serviços sociais autônomos e das entidades de apoio, as organizações sociais (OS) e as organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIP) têm leis específicas trazendo a sua disciplina – respectivamente, Lei nº 9.637/98 e Lei nº 9.790/99. As referidas leis são federais, podendo os Estados, Distrito Federal e Municípios editarem suas respectivas leis para estabelecerem essas qualificações em seus âmbitos.
Inicialmente, impende esclarecer que organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público não são novos formatos de pessoas jurídicas de direito privado, mas, ao revés, representam qualificações jurídicas especiais conferidas a pessoas jurídicas privadas já existentes (fundações privadas ou associações civis). Ou seja, as pessoas jurídicas não nascem como organizações sociais ou como organizações da sociedade civil de interesse público; elas adquirem essa condição após sua qualificação por parte do Poder Público, caso atendam às exigências especificadas em lei.[120]-[121]
Uma diferenciação que desde logo pode ser feita em relação às OS e às OSCIP refere-se justamente à qualificação: a concessão da qualificação de OS é discricionária, enquanto a concessão da qualificação de OSCIP é vinculada.
A Lei nº 9.637/98, em seu artigo 1º, caput, diz que
o Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde (...). (grifo nosso)
Ademais, dispõe o artigo 2º, II:
São requisitos específicos para que as entidades privadas referidas no artigo anterior habilitem-se à qualificação como organização social:
II- haver aprovação, quanto à conveniência e oportunidade de sua qualificação como organização social, do Ministro ou titular de órgão supervisor ou regulador da área de atividade correspondente ao seu objeto social (...). (grifo nosso)
Assim, o critério para concessão do título de organização social é discricionário, a cargo do Ministério competente para regular e/ou supervisionar a área de atividade prestada pela pessoa jurídica.[122] Valter Shuenquener de Araújo sustenta ser “inadequada a opção legislativa pela discricionariedade do ato, pois ela é capaz de facilitar a corrupção e a violação do princípio da isonomia quando do momento do deferimento.”[123]
Por outro lado, o critério para conceder a qualificação de OSCIP é vinculado: preenchidos os requisitos legais, o Ministério da Justiça deve conceder o título à entidade.[124] Isto se dá porque o artigo 1º, §2º da Lei nº 9.790/99 dispõe expressamente que a outorga da qualificação de organização da sociedade civil de interesse público é ato vinculado ao cumprimento dos requisitos instituídos pela referida lei.
No que tange à desqualificação das entidades, tem-se que, para as OS, o artigo 16 da Lei nº 9.637/98 diz que ela poderá ocorrer quando constatado o descumprimento dos termos do contrato de gestão em processo administrativo, enquanto a Lei nº 9.790/99, em seu artigo 7º, diz que há a perda da qualificação de OSCIP, a pedido ou mediante decisão proferida em processo administrativo ou judicial. Em ambos os casos será assegurada a ampla defesa e o contraditório.
A doutrina, por sua vez, dissente quanto à natureza do ato de desqualificação das organizações sociais. Há quem defenda que a perda da qualificação é um ato vinculado (apesar de o ato de qualificação ser discricionário), ou seja, havendo descumprimento do contrato de gestão, a entidade deverá ser desqualificada.[125] Todavia, outros entendem que “a discricionariedade na qualificação permite uma discricionariedade também no ato de desqualificação”[126], vez que “o interesse público que justificou a qualificação da entidade como organização social pode, com o passar dos anos, não mais justificar a manutenção do título.”[127]
Por outro lado, a doutrina parece concordar que o ato de desqualificação de uma organização da sociedade civil de interesse público é vinculado.[128]
Visto isto, passa-se à análise de quais entidades podem receber a qualificação de OS e quais podem receber a qualificação de OSCIP.
Com efeito, o artigo 1º da Lei nº 9.637/98 determina que podem ser qualificadas como OS pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que desempenhem atividades na área de ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde. Ademais, o referido diploma, em seu artigo 18 e seguintes, permite que a organização social resulte não da sociedade civil, mas da extinção de entidades federais, nas hipóteses ali consignadas.
No que tange às OSCIP’s, a Lei nº 9.790/99 trouxe uma disciplina mais detalhada. Além de dizer que somente pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos podem receber a qualificação de OSCIP (artigo 1º) e de mencionar as áreas de atuação (artigo 3º[129]) – que, diga-se, são bem mais amplas que as das organizações sociais –, trouxe em seu artigo 2º[130] uma lista de pessoas jurídicas que não podem ser qualificadas como OSCIP. Nas palavras de Valter Shuenquener de Araújo, “essa previsão legal demonstra uma nítida preocupação do legislador com a concessão indiscriminada do título de OSCIP a entidades privadas. Restringiu-se para evitar abusos.”[131]
Cumpre ressaltar que as organizações sociais e as organizações da sociedade civil de interesse público não prestam serviço público propriamente dito, e sim atividades privadas de interesse público.[132] Vale trazer a lume, entretanto, as lições de Maria Sylvia Zanella Di Pietro quanto a uma exceção referente especificamente às organizações sociais:
a própria lei, em pelo menos um caso, está prevendo a prestação de serviço público pela organização social, hipótese em que ela exerce atividade delegada pelo poder público; com efeito, quando a entidade absorver atividade de entidade federal extinta no âmbito da área de saúde, deverá considerar no contrato de gestão, quanto ao atendimento da comunidade, os princípios do Sistema Único de Saúde, expressos no art. 198 da Constituição Federal e no art. 7º da Lei nº 8.080, de 19-9-90. Vale dizer que prestará serviço público e não atividade privada; em conseqüência, estará sujeita a todas as normas constitucionais e legais que regem esse serviço, até porque não poderia a lei ordinária derrogar dispositivos constitucionais.[133]
Em sentido diverso do que se expôs, José dos Santos Carvalho Filho defende que tanto as organizações sociais, como as organizações da sociedade civil de interesse público prestam serviços públicos.[134]
Uma vez que as entidades são qualificadas como OS ou como OSCIP, elas poderão formalizar vínculos com o Estado, quais sejam, respectivamente, o contrato de gestão e o termo de parceria.
2.3.1 O contrato de gestão e o termo de parceria
Primeiramente, mister consignar que o contrato de gestão firmado com a OS e o termo de parceria firmado com a OSCIP têm a mesma natureza jurídica, apesar da nomenclatura distinta.
No direito brasileiro a expressão contrato de gestão vem sendo utilizada para designar diferentes acordos: há os contratos de gestão celebrados com entidades da Administração Indireta ou com órgãos da própria Administração Direta e há os contratos de gestão firmados com as organizações sociais.[135]
Anteriormente a qualquer previsão constitucional ou legal, a Companhia Vale do Rio Doce – CVRD (antes de ser privatizada) e a Petrobrás celebraram contratos de gestão, com base no Decreto s/nº de 10-06-1992 e no Decreto nº 1.040 de 27-01-1994, respectivamente.[136] O Tribunal de Contas da União, entretanto, em respeito ao princípio da legalidade não admitiu que decretos pudessem servir de meio para afastar dessas entidades o dever de cumprimento da lei.[137] Neste contexto, a partir da Emenda Constitucional nº 19/1998, a Constituição da República, em seu artigo 37, §8º, passou a autorizar a celebração de contrato[138] que permitisse a ampliação da autonomia dos órgãos e entidades da Administração Direta e Indireta, com a observância de uma norma legal específica.[139]
No âmbito legal, há o artigo 51 da Lei nº 9.649/98, que fala expressamente em contrato de gestão e se refere às agências executivas.
Com efeito, esse contrato de gestão serve para ampliar a autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos ou entidades administrativas.
Este contrato de gestão merece críticas. Em primeiro lugar, não tem verdadeiramente natureza jurídica de contrato, mas de consórcio. Isto porque os contratos têm como característica principal a existência de interesses contrapostos, ao passo que os convênios se caracterizam pela convergência de interesses, que é o que ocorre nesses contratos de gestão onde o objetivo comum é a satisfação do interesse público.
Ademais, todo órgão público (artigo 48, XI, da RFB) e todas as entidades da Administração Indireta dependem de lei para sua criação (ou a lei cria diretamente as autarquias e as fundações públicas de direito público ou autoriza a criação das estatais e das fundações públicas de direito privado – artigo 37, XIX, da CRFB). A autonomia desses órgãos e entidades decorre diretamente da lei, não podendo, pois, um ato infralegal fazer ampliação, sob pena de violação do princípio da legalidade.
Uma última crítica, referente somente aos contratos de gestão firmados com órgãos, é no seguinte sentido: os órgãos públicos não têm personalidade jurídica, portanto, não têm capacidade contratual. Pelo princípio da imputação, a atuação do órgão público é imputada à respectiva pessoa administrativa a que aquele órgão faz parte. Assim, a celebração de um contrato com um órgão público implicaria em um auto-contrato (contrato consigo mesmo), o que, em princípio, é vedado pelo ordenamento.
Feita essa digressão, há que se deixar claro que o contrato de gestão acima referido em nada tem a ver com o contrato de gestão firmado pelo Poder Público com uma organização social.
Quanto aos contratos de gestão celebrados com organizações sociais também é necessário criticar a nomenclatura empregada pela lei (artigo 5º e seguintes da Lei nº 9.637/98). O vínculo existente entre a organização social e a Administração não é contratual[140]; ao revés, o ajuste envolve “interesses comuns em regime de cooperação”.[141]
Na valiosa lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
não se trata de contrato, porque não são pactuadas prestações recíprocas, voltadas à satisfação de interesses de cada uma delas em separado, senão que, distintamente, as partes ajustam prestações conjugadas em regime de colaboração, dirigidas à satisfação de um mesmo interesses público que lhes é comum, o que caracteriza um pacto não contratual.
Está-se, portanto, diante de um ato administrativo complexo, em que há solidariedade de interesses e, por isso, conjugação consensual de vontades e de meios, e não de um contrato, no qual, por definição, há uma composição de interesses divergentes e, por isso, o estabelecimento de prestações recíprocas.
A tais atos a doutrina classifica como convênios, embora fosse ainda mais apropriado enquadrá-los como acordos de programa (...).[142]
Diferentemente dos contratos de gestão acima analisados (do artigo 37,§ 8º, da CRFB), os contratos de gestão firmados com organizações sociais não visam a ampliar a autonomia dessas entidades, que, por serem entidades privadas, já gozam de ampla autonomia. Ao revés, eles restringem a autonomia dessas entidades privadas, que terão que respeitar as exigências contidas no respectivo contrato de gestão.[143]
Com efeito, o contrato de gestão é o instrumento pelo qual a organização social e a Administração Pública formalizam um vínculo jurídico. Através dele, serão fixadas metas a serem cumpridas pela entidade privada e, em troca, o Poder Público concede benefícios de diversos tipos, submetendo as entidades a um controle de resultados.[144] A Lei nº 9.637/98 especifica os benefícios que podem ser concedidos pelo Poder Público, a saber: cessão de bens públicos, cessão de servidores públicos e transferência de recursos orçamentários.
Os termos de parceria celebrados entre as organizações da sociedade civil de interesse público e o Poder Público, conforme mencionado, têm a mesma natureza que o contrato de gestão da OS, caracterizando-se, portanto, como convênio administrativo.[145] Mais ainda: assim como os contratos de gestão, os termos de parceria restringem “a autonomia da entidade que, por receber diferentes tipos de incentivo, fica sujeita a controle de resultados pelo Poder Público, além do controle pelo Tribunal de Contas.”[146]
O artigo 10, §2º da Lei nº 9.790/99 traz as cláusulas essenciais do termo de parceria: o objeto, contendo a especificação do programa de trabalho; as metas e os resultados a serem atingidos e os respectivos prazos de execução; critérios objetivos de avaliação de desempenho; previsão de receitas e despesas; obrigatoriedade de se apresentar relatório anual, com a comparação entre as metas e os resultados alcançados, acompanhado de prestação de contas; publicação na imprensa oficial do extrato do termo de parceria e de demonstrativo de sua execução física e financeira.
A Lei das OSCIP’s, diferentemente da Lei das OS, não especifica as formas de fomento ou cooperação entre o Poder Público e a entidade privada. Há apenas referência a bens e recursos de origem pública.[147]
2.3.2 Outros aspectos dos regimes jurídicos das organizações sociais e das organizações da sociedade civil de interesse público
Para a entidade privada ser qualificada como organização social, em seu Conselho de Deliberação Superior necessariamente deve haver a participação de representantes do Poder Público e de representantes da sociedade civil (artigo 2º, I, d, Lei nº 9.637/98).[148] Nas organizações da sociedade civil de interesse público, a participação de representantes do Poder Público no Conselho é facultativa (artigo 4º, parágrafo único, Lei nº 9.790/99).[149]
No que se refere ao regime jurídico dos agentes, tem-se que os trabalhadores das organizações sociais, bem como os das organizações da sociedade civil de interesse público são regidos pela CLT e sua admissão não é feita mediante concurso público.[150] Sustenta, entretanto, Walter Claudius Rothenburg que a seleção de pessoal deve pautar-se pela impessoalidade, defendendo, ainda, que o pessoal selecionado deve ter alguma estabilidade.[151]
Note-se, ainda, que o artigo 14 da Lei nº 9.637/98 expressamente admite a cessão de servidores a organizações sociais, com ônus para o Poder Público. A Lei nº 9.790/99 não traz essa possibilidade de forma expressa para as OSCIP’s, porém, a despeito da omissão, a doutrina admite que o termo de parceria preveja a cessão de servidores com ônus para a origem.[152]
Os bens das OS e das OSCIP’s são privados.[153] Deve-se mencionar que o artigo 12, §3º da Lei nº 9.637/98 permite a destinação de bens públicos às OS mediante permissão de uso, desde que haja expressa previsão no contrato de gestão. Com relação aos bens das OSCIP’s é importante deixar consignado que sempre que a aquisição de um bem imóvel pela entidade for feita com recursos provenientes do termo de parceria, o referido imóvel fica gravado com cláusula de inalienabilidade (artigo 15 da Lei nº 9.790/99).
Passa-se agora à análise do controle exercido sobre as OS e OSCIP’s. As contas das organizações sociais são julgadas e fiscalizadas pelo Tribunal de Contas, conforme os preceitos do artigo 70, da CRFB.[154] As OSCIP’s também são controladas pelo Tribunal de Contas, na medida em que administrem bens e/ou valores de natureza pública (artigo 4º, VII, d, da Lei nº 9.790/99).[155]
Por fim, no próximo capítulo será tratado o tema sobre a exigência ou não de licitação no âmbito das organizações sociais e das organizações da sociedade civil de interesse público.
2.4 ENTIDADES DE APOIO
As entidades de apoio, segundo os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, são
as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, instituídas por servidores públicos, porém em nome próprio, sob a forma de fundação, associação ou cooperativa, para a prestação, em caráter privado, de serviços sociais não exclusivos do Estado, mantendo vínculo jurídico com entidades da administração direta ou indireta, em regra por meio de convênio.[156]
Assim como nas demais entidades do Terceiro Setor, as entidades de apoio exercem atividade privada de interesse público, que é fomentada pelo Estado. Ou seja, elas não prestam serviço público.[157] Atuam geralmente em hospitais públicos e universidades públicas.[158]
Há que se ressaltar que, diferentemente do que ocorre nas organizações sociais e nas organizações da sociedade civil de interesse público, não há uma legislação trazendo a disciplina das entidades de apoio. O que existe, no âmbito federal, é a Lei nº 8.958/94, que trata das relações entre as instituições federais de ensino superior e de pesquisa científica e tecnológica e as fundações de apoio.[159]
Com efeito, a referida lei surgiu para trazer mecanismos de controle em relação às entidades de apoio[160]. Conforme noticia a doutrina, o diploma fora editado em função de decisão do Tribunal de Contas da União (D.O.U. de 25/11/92, Seção 1, p. 16.302-16.305) no sentido da ilegalidade do vínculo jurídico então existente entre as fundações de apoio e as universidades federais.[161]
Entendeu o Tribunal de Contas da União que as fundações de apoio criadas sem destinação de recursos públicos não teriam que prestar contas, entretanto, “ficam proibidas de utilizar a qualquer título e sob qualquer forma, servidores, bens, móveis ou imóveis pertencentes a instituições públicas federais.”[162] A decisão criticou, ainda, a possibilidade de servidores terem “acesso a uma complementação financeira por via oblíqua”[163], bem como o fato de “se viabilizar a admissão de recursos humanos, a compra e a estocagem de materiais longe dos controles oficiais, embora às custas da verba pública.”[164]
Maria Sylvia Zanella Di Pietro traz profundas críticas às entidades de apoio, vez que entende ser duvidosa a legalidade de sua forma de atuação, porque se utilizam do patrimônio público e de servidores públicos sem se utilizarem do regime jurídico imposto à Administração Pública.[165] Em suas palavras:
Em suma, o serviço é prestado por servidores públicos, na própria sede da entidade pública, com equipamentos pertencentes ao patrimônio desta última; só que quem arrecada toda a receita e a administra é a entidade de apoio. E o faz sob as regras das entidades privadas, sem a observância das exigências de licitação para celebração de contratos e sem a realização de concurso público para a admissão de seus empregados. Essa é a grande vantagem dessas entidades: elas são a roupagem com que se reveste a entidade pública para escapar às normas do regime jurídico de direito público.[166]
No que se refere à prestação de contas, em função do artigo 70, parágrafo único, da CRFB, esta deve ser feita.[167]
Os bens das entidades de apoio são privados, pois elas são pessoas jurídicas de direito privado. Entretanto, tais entidades, no desempenho de seus misteres, costumam usar bens públicos.[168] Ao tratar especificamente das fundações de apoio, leciona Di Pietro que “o próprio ato de instituição das fundações de apoio, em muitas delas padece de vício, pois o patrimônio é irrisório em relação aos seus objetivos institucionais.”[169]
Com efeito, a própria Lei nº 8.958/94 permite que as entidades de apoio utilizem bens da instituição federal de ensino (artigo 6º), exigindo, todavia, que a referida utilização se dê pelo prazo necessário à concretização do projeto de ensino e mediante ressarcimento.
Com relação aos agentes, é comum que servidores públicos prestem serviços para essas entidades.[170] Mais uma vez, a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro formula, acertadamente, críticas a essas entidades:
A própria situação dos servidores públicos que trabalham nesses entes de apoio resvala com a ilegalidade e a imoralidade. Embora, literalmente, não acumulem cargos, empregos e funções, porque uma das entidades em que prestam serviços é partícula, na realidade os vencimentos que recebem da entidade pública e o salário que recebem do ente em cooperação são, em última análise, oriundos dos cofres públicos.[171]
A Lei nº 8.958/94, por sua vez, em seu artigo 4º, permite que servidores públicos federais das instituições federais de ensino participem das atividades realizadas pelas entidades de apoio. Entretanto, esses servidores só poderão trabalhar nas entidades de apoio fora de sua jornada de trabalho. A referida determinação, apesar de moralizante, não é imune à crítica supra referida.
Finalmente, o tema das compras e alienações, ou seja, a discussão se há ou não necessidade de licitação, será analisado com cuidado no próximo capítulo.