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Contrato de barriga de aluguel:

uma análise do seu objeto na modalidade heteróloga

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05/01/2017 às 10:00

Resumo:


  • A questão da barriga de aluguel levanta debates sobre a negociação do útero para gestação.

  • Existem diferentes modalidades de gestação por outrem, como a homóloga e a heteróloga.

  • A ausência de legislação específica no Brasil gera insegurança jurídica para os envolvidos nesse tipo de contrato.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

DO OBJETO E DO FIM DO NEGÓCIO JURÍDICO PACTUADO

Como já exposto, quem participa desses casos de “mãe de aluguel”, atua imbuído de sentimentos de compensar uma dor psicológica própria e de cooperar com o próximo, ou mesmo com o intuito de prover ganhos financeiros.

No entanto, o médico, ante a resolução federal de medicina (nº 2013/2013), em seu item VIII, 3, é obrigado a ter consigo um contrato firmado entre as partes em que se deve prever a gratuidade do negócio firmado entre eles, sendo um pré-requisito para esse profissional poder realizar o procedimento médico.

Todavia, a gratuidade não basta para solucionar a questão, uma vez que a terceirização da gravidez por meio da fertilização in vitro traz à baila se a criança a ser gerada não estaria sendo tratada como mero objeto de interesses e propósitos individuais, e mais, se um incapaz pode ser objeto final de um contrato.

 Michael J. Sandel reflete sobre a questão da seguinte maneira: “considerando que os seres humanos são livres, logo não deveríamos ser usados como se fossemos meros objetos; ao contrário, deveríamos ser tratados com dignidade e respeito. Essa abordagem enfatiza a distinção entre pessoas (merecedoras de respeito) e meros objetos ou coisas (para uso) como distinção fundamental da moralidade."

Verifica-se que a ideia do vínculo emotivo entre a mulher gestante e seu filho encontra-se enraizada em nossa sociedade, logo um contrato que imponha um dever jurídico de obrigação de dar um ser humano a outro substitui a ideia maternal da gestação por uma visão comercial.

Nesse sentido, a justiça não pode ser utilitarista, ou seja, não pode se consubstanciar em um instrumento de satisfação de felicidade, uma balança que mede o prazer/sofrimento de quem doa sobre o encanto do casal que recebe, e sobre isso tentar chegar à conclusão de justo. A justiça, apesar das mais diferentes formas de pensamento, visa assegurar os valores mínimos e morais de uma sociedade, materializados em dispositivos legais, construções doutrinarias e jurisprudenciais.

No aspecto específico de valores, temos a dignidade da pessoa humana como uma diretriz clara em nossa Constituição, a qual assegura o valor espiritual e moral inerente à pessoa, trazendo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, sem nunca menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. 

Logo, fica evidente que estamos diante de um “hard case”, conceito trazido pelo Herbert Lionel Adolphus Hart, no sentido de que não podemos aplicar nessas hipóteses o positivismo jurídico puro, uma vez que a questão exige na interpretação o exercício da discricionariedade judicial.

Na visão de Robert Alexy, o princípio da dignidade da pessoa humana tem fundamento na compreensão do ser humano como um ser intelectual e moral, capaz de se determinar e de se desenvolver em liberdade. No entanto, destaca este que essa liberdade não se refere a um indivíduo isolado e autocrático, mas sim a um indivíduo relacionado a uma sociedade do qual se vincula, se extraindo desse pensamento o conceito de liberdade jurídica negativa, que se caracteriza como uma das condições para a garantia da dignidade humana.

O indivíduo tem que se conformar com as restrições à sua liberdade de ação, impostas pelo legislador com o objetivo de manter e fomentar a convivência social dentro dos limites daquilo que é razoavelmente exigível diante das circunstâncias e desde que a independência da pessoa seja preservada. 

Logo, destaca o doutrinador que é possível limitar a liberdade individual, desde que haja elementos para tal fim e que seja respeitado o princípio da proporcionalidade, esclarecendo que o conteúdo do princípio da liberdade negativa se refere ao seguinte exposto:

Enquanto princípio, ele não outorga uma permissão definitiva para fazer ou deixar de fazer tudo o que se quer; ele tão somente sustenta que todos podem fazer ou deixar de fazer o que quiserem, desde que não existam razões suficientes (direitos de terceiros, interesses coletivos) que fundamentem uma restrição na liberdade negativa." 

Ou seja, a vontade do indivíduo deve ser analisada, levando em consideração as consequências do ato em face de terceiro, ou mesmo no meio social como um todo.

Podemos utilizar como diretriz dessa restrição negativa da liberdade às lições de Immanuel Kant, mais especificamente seus imperativos categóricos que são a) Lei Universal; b) Fim em si mesmo; c) Legislador Universal.

O segundo imperativo (fim em si mesmo) vem a calhar ao nosso estudo, uma vez que o filósofo sustenta o seguinte: “eu digo que o homem, e em geral todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, e não meramente como meio que possa ser usado de forma arbitrária por essa ou aquela vontade”. Sandel o interpreta, dizendo que essa é a posição de Kant entre pessoas e coisas. Pessoas são seres racionais. Não têm apenas um valor relativo: têm muito mais, têm um valor absoluto, um valor intrínseco. Ou seja, os seres racionais têm dignidade. 

Na visão kantiana, o ser humano nunca poderá ser tratado como coisa, sendo que isso ocorre quando as pessoas se utilizam do indivíduo como um instrumento para realização de uma vontade pessoal, não respeitando a humanidade como um fim, mas sim buscando uma felicidade individual apenas.

Assim, resta claro que quando se firma um contrato de barriga de aluguel, por mais que sejam boas as intenções envolvidas, jamais se tratará apenas de direito das partes contratantes, sempre estará em jogo o direito de personalidade do bebê a ser gerado.

Nessa esteira, os direitos de personalidade da criança a ser entregue são flagrantemente infringidos, especialmente em seus aspectos morais, no que se refere à identidade materna, à honra, ao respeito. Tais direitos são indisponíveis e não podem ser objeto de negócio jurídico entre seus tutores, uma vez que atinge questões de direitos e valores subjetivos do feto/criança, sendo que os pais apenas têm o dever de proteger e não de dispor.

Ou seja, a vontade sentimental de um casal nunca poderá prevalecer a ponto de equiparar a criança gerada no útero a um simples fruto. O ser humano não é um produto e não pode ser explorado; é sim a razão de ser do direito, e, mesmo se incapaz, deve ser visto e deve receber total proteção jurisdicional por parte do Estado por ser consubstancial em um de seus fundamentos (art. 1º, III, CF).

Há quem negue a priore que o próprio cadáver humano possa ser objeto de direito. No entanto, a proteção do direito de personalidade do nascituro sob uma visão da Teoria Concepcionista é absoluta, destacando que esta é a tese majoritária da doutrina contemporânea brasileira (Silmara Juny Chinellato, Pontes de Miranda, Rubens Limongi França, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Flávio Tartuce, Nelson Rosenvald, Roberto Senise Lisboa, Cristiano Chaves Faria, Gustavo Rene Licolau, Francisco Amaral, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Panplona Filho etc). O próprio entendimento jurisprudencial tem se filiado a tal entendimento como se pode extrair do enunciado nº 1 Conselho da Justiça Federal e do Superior Tribunal de Justiça aprovado no I jornada de Direito Civil, bem como das decisões – REsp nº 399.028/SP; REsp 931.556/RS; REsp 1120672/SC todas do STJ.

Essa noção de coisa é bem visível nas situações em que a mãe contratada para ser barriga de aluguel se recusa em entregar o bebê após o nascimento. Nesses casos, imediatamente se levanta a questão do direito de propriedade (inclusive da carga genética),ou seja, o embrião é de propriedade do casal, logo, o ser humano gerado é filho deles.

É certo que em nossa legislação prospera os princípios da livre iniciativa e da autonomia da vontade. No entanto, estes não são absolutos. O exemplo disso é que mesmo nas hipóteses supracitadas de disposição de partes do corpo (ex. cabelos), esses negócios só teriam efeitos depois de separadas do corpo humano. Se o negócio jurídico foi firmado antes, este não produzirá efeito de obrigar a pessoa a separar e entregar o objeto, nem de indenizar a outra parte, porque seria negócio jurídico ilícito.

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Essa discussão nos conduz a refletir sobre o objeto do contrato de barriga de aluguel, ante a visão da Teoria de Pontes de Miranda, a denominada Escada Ponteane, que enumera os elementos do negócio jurídico:

No plano da existência jurídica, não há que se falar em objetos de direitos; nem no plano da validade; só no plano da eficácia, em que os direitos, as pretensões, as ações e as exceções se produzem, é que se pode falar em objetos de direito e, pois, em coisas. 

Encerrando a questão, Pontes de Miranda ainda deixa expresso que “o homem vivo, o ser biológico, não é objeto de direito”.  Nesse aspecto, adotamos a visão de Heloisa Barbosa, em que, baseada na teoria ponteana e tendo em vista a natureza do objeto, defende que o contrato jurídico firmado antes ou depois do nascimento prescindirá de eficácia jurídica.


DO REGISTRO DA CRIANÇA

A lei de registros públicos de nº 6.015/73 dispõe que o responsável pelo registro do recém-nascido será o pai e, na ausência ou impedimento deste, a mãe (art. 52, 1º e 2º).

No negócio pactuado, o problema reside no fato de que o nome da mãe a ser registrado na certidão de nascimento não é o da biológica (contratada), mas sim o da contratante, que não aparece em nenhum documento da maternidade (declaração de nascido vivo) ou mesmo do médico.

Como já dito, a legislação brasileira é omissa quanto ao assunto, e a Lei nº 6.015/73 não traz a previsão de tal hipótese. Logo, o resultado é que os cartórios se negam a realizar o registro em nome da mãe contratante, forçando o casal a ter que recorrer à justiça na busca de um alvará que autorize o ato.

O fato já ocorreu no Brasil perante a justiça de Goiânia, onde se pôs fim a um ano e oito meses de angústia do casal Ériko Gomes e Jordana Oliveira. No caso, foi reconhecido o direito dos pais biológicos de registrar a filha, Soraya, gerada na barriga "emprestada" de uma irmã de Ériko.

Ériko relatou que a ausência de documentação criou dificuldades para realizar tarefas como ir ao médico e viajar com a criança. "Tínhamos medo de sermos parados pela polícia, por exemplo, sem qualquer documentação que provasse que ela é nossa filha".

Outro caso semelhante ocorreu na comarca de Feliz Natal (a 536 km a norte de Cuiabá). Na ocasião, o magistrado concedeu igualmente o pedido dizendo que: "Não restam dúvidas sobre a legitimidade do procedimento biológico adotado, primeiro por não encontrar proibição legal expressa e segundo por ter sido feita dentro dos parâmetros éticos da medicina", ainda ressaltou a ausência de oposição da avó que deu a luz as gêmeas.

Os casos apenas refletem que a ineficácia do contrato pactuado não é o único empecilho jurídico a ser superado pelo casal. Mesmo se não houver oposição entre todas as partes, estes deverão estar dispostos a passarem por  obstáculos aqui relatados, haja vista a ausência de previsão legal para tal procedimento notorial, uma vez que os cartórios não podem proceder de forma distinta.

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Sobre o autor
João Henrique Scaff

Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina. Graduado em Direito pela Universidade do Norte do Paraná. Advogado e Professor Universitário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCAFF, João Henrique. Contrato de barriga de aluguel:: uma análise do seu objeto na modalidade heteróloga. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4936, 5 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/54845. Acesso em: 22 dez. 2024.

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