Capa da publicação Por trás da guarda de filhos: o que os números não dizem
Artigo Destaque dos editores

Por trás da guarda de filhos: o que os números por si só não dizem

Exibindo página 2 de 3
31/01/2017 às 14:00
Leia nesta página:

4. Resultados

A compreensão da simbologia e das representações sociais que envolvem os discursos sobre os papéis de pai e mãe, em relação a guarda dos filhos passa fundamentalmente pelas noções de conjugalidade e parentalidade. A relação conjugal ao longo do século XX ganhou muita importância devido a concepção de que a família molda o desenvolvimento psicossocial de seus membros ao longo de toda a vida, e não apenas na infância (ALMEIDA & CUNHA, 2013). Assim, toda e qualquer ruptura na conjugalidade implicaria em ressignificações da família, uma vez que, segundo CANO, GABARRA, MORÉ & CREPALDI (2009), a estrutura da família se altera com a dissolução da conjugalidade.

Por mais complexo que possa ser a permanência dos laços parentais é “essencial ao bem estar dos filhos” após o término da relação conjugal segundo FÈRES-CARNEIRO (1998). Quem se separa é o casal conjugal, e não, o casal parental. Em 1961 quando o psiquiatra e psicanalista Paul Claude Recamier cunhou o termo parentalidade, através da junção das palavras maternalidade e paternalidade, ele já via a necessidade de se integrar o bebê na ótica da teoria psicanalítica, quando do tratamento de adultos perturbados. De lá para cá o conceito foi se ampliando com o intuito de abarcar não apenas o caráter biológico, da simples concepção de filhos, mas para se tornar um processo psíquico de internalização dos desejos de ter uma criança, de acompanhar a gravidez, e de fazer parte do desenvolvimento da criança ao longo da vida.

Falar em guarda de filhos, via de regra, para o senso comum, significa quase que a mesma coisa que falar em guarda materna. A guarda unilateral é vista pelas mães como causadora de forte sobrecarga sobre o guardião exclusivo, porém, poucas mulheres entendem que o pai deva ter um papel mais ativo nos cuidados e na vida dos filhos. Em pesquisa realizada em 2014, SCHNNEBELI & MENANDRO, entrevistaram 15 homens e 15 mulheres solteiros, casados, separados/ divorciados, em união estável e viúvos, com vistas a conhecer os motivos que levavam homens e mulheres a optar por determinado tipo de guarda de filhos. Um dos principais resultados encontrados foi a forte ligação entre as noções de conjugalidade e parentalidade, tendo o filho como representação do “elo” do casal. A maioria dos respondentes (homens e mulheres) disseram que os filhos devem ficar com as mães, inclusive, os participantes homens, que detinham a guarda dos filhos. A justificativa dada pelos respondentes adveio de uma espécie de “concepção natural” de que a mãe é a pessoa mais preparada para ficar com filho. Porém, no decorrer das entrevistas, com o aprofundamento do estudo, certas opiniões foram sendo modificadas. Para as pesquisadoras, inicialmente, o que se manifestou entre os participantes da pesquisa foi o preconceito natural contra a figura do pai.

Ao passar das entrevistas em profundidade para as respostas a um questionário padronizado alguns participantes modificaram seus pontos de vistas sobre a guarda de filhos, e eme especial, sobre a guarda compartilhada. Quando indagados a responder sobre o significado da guarda compartilhada, a possibilidade de ambos os genitores conviverem com seus filhos, foi apontada como a grande vantagem. O aspecto negativo mais citado foi a possível confusão que essa modalidade de guarda pode causar na criação dos filhos, em função da falta de referência de lar. Outro aspecto de suma importância sobre a guarda compartilhada apontado pelos genitores e que ela envolve pactuação, isto é, acordos entre os genitores.

A conclusão da pesquisa aponta que “as representações sociais dos papéis feminino e masculino, ainda sob ancoragem tradicional, dicotomizada, influenciam em muito as representações sociais da maternidade” refletindo também sobejamente às representações do casamento e da conjugalidade. Para as pesquisadoras o modo como mães e pais representam os tipos de guarda, passa necessariamente, pelo modo como representam seus papéis de mulher e homem, de mãe e de pai. Por esse entendimento, a questão de gênero assume lugar central na definição da escolha do tipo de guarda, de maneira totalmente diferente por homens e mulheres. De acordo com os achados das autoras, a noção de parentalidade sequer foi alcançada pelos discursos dos entrevistados.

De modo um pouco diferente, mas tendo por base a mesma linha de raciocínio que diferencia pais e mães em relação a conexão entre seus papéis conjugais e parentais, o Poder Judiciário brasileiro entende que a separação conjugal gera situações de não colaboração entre os genitores que seriam prejudiciais aos infantes. Analisando acórdãos prolatados por importantes Tribunais de Justiça brasileiros a pesquisadora (LEILA TORRACA, 2013) detectou a forte presença desse pensamento em julgados de 2ª instância:

(...) Porquanto, nem mesmo a determinação judicial no sentido de impor a guarda compartilhada às partes possibilita, no plano fático, o funcionamento desta espécie de guarda, atrelada inegavelmente à colaboração de ambos os genitores no desenvolvimento do infante (Proc. Nº 1.0525.08.146080-6/001 (1) - TJMG)[10]

O que o acórdão acima deixa bastante claro é a suposição de que após a separação conjugal a possibilidade de colaboração entre os genitores fica prejudicada. É bem verdade que os processos de separação e divórcio trazem as partes muitas mágoas e ressentimentos, e em muitos casos cessa-se o diálogo entre a partes. No entanto, sabemos também que a “suposta” colaboração em prol das crianças não ocorre em sua plenitude entre casais que se encontram casados. Cada vez mais no mundo atual, pais e mães delegam a terceiros o cuidado parental. Nos casos de famílias pobres, esse cuidado é realizado por demais entes familiares, como tios, tias, avôs e avós, e nas camadas médias e mais abastadas, ele é feito por creches, escolinhas, babás e empregadas.

Segundo a análise da pesquisadora na integra do acórdão o relator afirma que a lei[11] significa um retrocesso, pois entende que o critério de melhores condições, que norteia as decisões sobre a guarda unilateral, atenderia de forma adequada aos interesses da criança. Para a autora avaliar com quem a criança deve possuir vínculos mais afetivos (no caso mãe), com a finalidade de decidir sobre o regime de guarda, significa condenar o menor a uma filiação unilateral, contribuindo para a geração de distanciamento físico e afetivo por parte do outro genitor.

Em outro acordão do TJMG a não modificação do regime de guarda unilateral para guarda compartilhada foi justificada pela não existência de conduta desabonadora por parte da genitora guardiã. Nas palavras do relator do acórdão: “Ademais, inexiste nos autos qualquer indicação de conduta desabonadora da genitora que pudesse afastar o exercício da guarda da filha [...]” (Proc. Nº 1.0079.09.923860-6/001 (1) - TJMT[12].

Ora, somente então uma conduta inadequada por parte da mãe seria justificativa para a alteração do regime de guarda? Por essa linha de raciocínio fica evidente a superioridade do gênero feminino, em relação ao masculino quanto a aptidão para o exercício da guarda de filhos.

A comprovação desse argumento fica totalmente evidenciada pelo texto do acórdão nº 70033272063 do TJRS no qual, segundo Torraca “mesmo ao reconhecer que tanto o pai quanto a mãe estariam aptos ao exercício da guarda da criança, o relator da jurisprudência optou por não aplicar a guarda compartilhada, tendo em vista que não havia fato desabonador da conduta materna no exercício da guarda única”[13].

Tal qual para pais e mães e para os juízes, a questão da separação entre conjugalidade e parentalidade também foi reportada em outro estudo que analisou opiniões de psicológos brasileiros que atuam em Varas de Família sobre a guarda compartilhada. Apesar de haver uma confluência entre as respostas dos participantes de que “os profissionais chamados a intervir devem mediar as relações, levando os pais a compreender que o fim da conjugalidade não deve significar que um deles tenha que abrir mão do exercício da parentalidade”, quando inquiridos a indicar quais fatores seriam importantes na opinião deles para recomendar a guarda compartilhada, itens como relacionamento entre os pais e flexibilidade dos pais, obtiveram os maiores escores na escala de importância. Isto é, apesar do discurso dos profissionais de Psicologia parecer se preocupar com a parentalidade, na prática, ele é todo calcado na noção de conjugalidade. Alguns outros trechos da parte qualitativa da pesquisa sobre a concepção de guarda compartilhada, não deixam dúvidas sobre a dualidade entre os conceitos de conjugalidade e parentalidade na ótica dos Psicólogos.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

“Penso ser por possível naqueles casos em que os casais tenham uma boa elaboração da separação, onde os filhos não estejam ocupando o lugar de projeção das mágoas pessoais”

“É necessário que a relação entre o casal esteja bem resolvida e que haja uma boa comunicação entre eles”[14].

Como conclusão de seu estudo, LAGO & BANDEIRA (2009) identificaram que 80% dos profissionais estudados tinham experiência no assunto guarda compartilhada. Não obstante, quando questionados sobre serem ou não favoráveis a aplicação do regime de guarda compartilhada 64% se disseram favoráveis, 8% desfavoráveis e 28% afirmaram não ter uma opinião fechada, não sendo possível recomendar a guarda compartilhada sem uma análise da situação concreta dos casos.


5. Conclusões

Pela pesquisa em questão podemos perceber que alguns pesquisadores e estudiosos brasileiros buscaram compreender através de estudos com diferentes públicos-alvo quais são as visões e os argumentos utilizados por segmentos da sociedade brasileira acerca da guarda de filhos. A constatação mais evidente, traço comum a todos os estudos aqui analisados, diz respeito a pouca clareza e ao superficial entendimento sobre os conceitos de conjugalidade e parentalidade. Na realidade, o conceito de conjugalidade parece ser o único que é colocado em evidência, se tornando assim, caracterizador de todas as relações familiares. Sem a conjugalidade parece não ser possível se falar de família, e muito menos de prole. As representações sociais e simbolismos em torno das figuras de pai e mãe continuam a existir fortemente ligadas ao conceito de conjugalidade. O casal conjugal é o elo inicial. Se não há conjugalidade, “parece não ser possível falar em parentalidade”. Mesmo com todo o avanço das minorias em prol do reconhecimento de seus sentimentos, de suas liberdades e de seus desejos, a sociedade brasileira parece continuar insistindo na manutenção da visão clássica de família, colocando a margem, e sob os auspícios dos rigores da lei, todo e qualquer indivíduo que ouse querer compor novos arranjos familiares, diferentes, dos ditados pela clássica família patriarcal brasileira.

No afã de garantir o empoderamento e os direitos das mulheres, setores dos movimentos feministas, não percebem que o rechaço ao regime da biparentalidade só continua a acarretar sobre elas mesmas, maiores ônus. Utilizando a justificativa da violência contra mulher e do abandono de filhos, o feminismo radical apenas reifica a velha dualidade biológica (macho versus fêmea), fazendo do conflito de gênero, e da divisão segundo o sexo, a marca distintiva e definidora, não de uma concepção parental, a ser reivindicada por homens e mulheres, mas do exercício da maternidade e da paternidade, que em última instância, parece estar mais preocupado apenas com o cuidar, e não com o conviver. Nessa mesma órbita gravita o poder judiciário brasileiro, totalmente distante das modernas concepções científicas e dos novos anseios da sociedade, insistindo na velha e empoeirada cantilena social de que a mãe cabe o cuidar, e ao pai o prover.

Apesar das limitações da pesquisa em questão foi possível constatar que: a parca literatura nacional sobre o tema é um forte indicativo da dominância de uma visão “naturalizada” sobre a questão, a guarda compartilhada altera a balança de poder entre homens e mulheres, portanto, vem sendo rechaçada por setores do movimento feminista, o poder judiciário apesar de justificar suas decisões com base no “melhor interesse da criança”, na prática, o que faz é condenar crianças e adolescentes a viverem órfãos de pais e vivos, e os profissionais da psicologia que deveriam analisar a problemática sobre um prisma mais amplo e levando em conta os múltiplos vetores sociais que atuam sobre os processos de ruptura conjugal, manifestam desconfiança e preconceito em relação a novos regimes de guarda.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Fernando Valentin

Sociólogo (USP). Especializado em Metodologia de Pesquisa (CEBRAP) e em Gestão Pública (UFT). Mestre em Ciências Humanas e Sociais (UFABC). Fundador e coordenador executivo do Observatório da Guarda Compartilhada.M

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALENTIN, Fernando. Por trás da guarda de filhos: o que os números por si só não dizem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4962, 31 jan. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55212. Acesso em: 22 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos