Capa da publicação Aborto de fetos anencéfalos: ponderação e proporcionalidade no julgamento da ADPF 54
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O Supremo Tribunal Federal e a proporcionalidade no julgamento da ADPF 54

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3 O JULGADO ROE VERSUS WADE DA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA COMO PARÂMETRO A ADPF 54/2004

O caso paradigmático Roe versus Wade, julgado pela Suprema Corte dos EUA, em 1973, foi uma tentativa de harmonizar o direito fundamental da autonomia da vontade da gestante versus o direito fundamental da vida do feto anencéfalo. 

Nesse julgado ficou decidido que a mulher teria o direito constitucional de controlar seu próprio corpo, de modo que a opção sobre realizar ou não procedimento terapêutico para retirar o feto anencefálico deveria ser, em princípio, uma escolha íntima e pessoal da mulher. Foi reconhecido também que o poder público também tem legítimo interesse em proteger a vida em potencial do feto.

Desse modo, na tentativa de conciliar os interesses conflitantes, decidiu-se que a liberdade de escolha da mulher somente seria plena no estágio inicial da gravidez (equivalente aos três primeiros meses após a concepção), pois, quando o feto fosse capaz de sobreviver fora do útero, a proibição do aborto seria legítima, exceto em algumas situações onde o parto pudesse colocar em risco a vida da mãe. (MARMELSTEIN, 2011, p. 427).

Assim, a Suprema Corte ao julgar pela inconstitucionalidade da lei do Estado do Texas que criminalizava o aborto, fazendo prevalecer o direito à autonomia de vontade da gestante sobre o direito à vida do feto serve como suposto parâmetro aos Ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 54, como veremos a seguir.      


4 ESTUDO Do CASO GABRIELA SOBRE ABORTO DE FETOS ANENCEFÁLICOS E A TÉCNICA DA PONDERAÇÃO NO JULGAMENTO DA ADPF 54/2004

O famoso caso Gabriela Oliveiro Cordeiro, traz o relato de uma jovem com 18 (dezoito) anos residente em Teresópolis, Rio de Janeiro, que obteve do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro permissão para realizar aborto, após os médicos certificarem através de laudo que o feto não tinha cérebro, portanto, não sobreviveria fora do útero. Entretanto, um padre católico ingressou, posteriormente, em 24/11/2003, perante o Superior Tribunal de Justiça com um habeas corpus[8] em favor do feto anencefálico, sendo cassada a decisão do TJ/RJ, proibindo esse procedimento cirúrgico, sob o argumento de que não havia previsão expressa no Código Penal para prática do aborto em tais casos.  

Posteriormente, em 26/02/2004, um grupo de defesa do direito de escolha das mulheres ingressou perante o Supremo Tribunal Federal com outro habeas corpus[9] em favor da gestante, alegando que a decisão do STJ feria a dignidade da mulher grávida e sua autonomia da vontade. Infelizmente, o julgamento do mencionado habeas corpus restou prejudicado, pois Gabriela desistira do aborto, e em 28/02/2004 deu à luz a uma criança que chamou de “Maria Vida” e que faleceu sete minutos depois do parto por causa de uma parada cardíaca.

Logo em seguida, a Confederação Nacional dos Profissionais de Saúde, representada pelo constitucionalista Luís Roberto Barroso, em 17/06/2004, ingressou com Arguição de Descumprimento de Preceito fundamental (ADPF 54/2004), com o objetivo de obter um pronunciamento do Supremo Tribunal Federal.           

Dessa forma, na petição inicial da mencionada ADPF foi sustentado que impor à mulher o dever de carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza que não sobreviverá, causando-lhe dor, angústia e frustração, importa violação de sua dignidade humana. Sendo pedido a interpretação conforme a Constituição dos artigos do Código Penal brasileiro referentes ao aborto, declarando inconstitucional, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a interpretação dos dispositivos que impedem a antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de se submeter ou não a tal procedimento sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. (MARMELSTEIN, 2011, p.523).

Os principais caminhos percorridos pela ADPF 54, antes do julgamento da ação foram: I – a propositura da ação, que trouxe a margem esse debate tão latente de princípios; II - a atitude ativista do Ministro Marco Aurélio ao conceder uma liminar possibilitando que mulheres gestantes de fetos com anencefalia poderiam se submeter à antecipação terapêutica de parto, a partir de laudo médico atestando a anomalia que atingiu o feto, bem como, suspendendo até o fim do julgamento, processos penais que envolvem profissionais da saúde que em virtude da anencefalia realizaram a antecipação terapêutica de parto, a liminar vigorou por 4 (quatro) meses[10]; III - manifestação do Procurador-Geral da República; IV - o julgamento de suspensão da liminar; V - os pedidos de ingresso como amicus curiae das entidades religiosas e científicas, técnicas, mães etc; VI - designação para data da audiência pública; VII - vários despachos de requerimento de oitivas, de reconsideração, de juntada de documentos, dentre outros; VIII - manifestação do Advogado Geral da União e do Procurador Geral da República; IX - processo concluso ao relator para julgamento do plenário do STF (GOMES, 2011a, p. 07).

Para Gomes (2011a, p. 03) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 54/2004 é uma arguição incidental de natureza autônoma que preencheu os três pressupostos de cabimento para propositura da ação:

I - a ameaça ou violação a preceito fundamental (art. 1º da Lei 9.882/99 - Lei do Processo e Julgamento da ADPF); II - um ato do poder público capaz de provocar a lesão; III - a inexistência de qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade (princípio da subsidiariedade, artigo 4º, § 1º da Lei 9.882/99), ou seja, é a ADPF 54 o procedimento legal capaz de levar ao judiciário esta questão de ordem e que a manifestação do STF, interpretando os dispositivos penais |conforme a Constituição| é o meio de suprir a lacuna temporal existente na legislação penal dada ao aborto e |explicitar que ela não se aplica aos casos de antecipação terapêutica do parto na hipótese de fetos portadores de anencefalia, devidamente certificada por médico habilitado|.

Nessa perspectiva, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54, os Ministros do Supremo Tribunal Federal precisam observar a proporcionalidade em sentido estrito fazendo os seguintes questionamentos: o benefício alcançado com a adoção da medida judicial preservou direitos fundamentais mais importantes do que os direitos sacrificados? A medida judicial trouxe mais vantagens do que desvantagens? É proporcional que a gestante de feto anencefálico, ao consentir para retirá-lo, inclusive com o laudo médico competente, possa exigir esse tipo de procedimento cirúrgico ao poder público?

Para responder a essas perguntas, os Ministros do Supremo Tribunal Federal necessitam realizar um exercício de ponderação, levando em conta todos os interesses em jogo a fim de encontrar uma solução constitucionalmente adequada, com base em argumentação coerente, consistente e convincente. A ponderação é uma técnica de decisão judicial que auxilia o julgador a colocar os argumentos jurídicos favoráveis e desfavoráveis resultantes da tutela total ou parcial de cada um dos bens jurídicos em conflito. Um julgamento que se utiliza da técnica da ponderação confere maior transparência às decisões judiciais. (PEREIRA apud MARMELSTEIN, 2011, p. 419).

Recentemente, em 12/04/2012, o plenário do Supremo Tribunal Federal, por maioria e nos termos do voto do Relator (Ministro Marco Aurélio), julgou[11] procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos termos dos artigos 124, 126, 128, I e II, todos do Código Penal, contra os votos dos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente, acrescentaram condições de diagnóstico de anencefalia especificadas pelo próprio Ministro Celso de Mello. Os votos divergentes do julgado foram dos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski e Cesar Peluso (Presidente do STF), que a julgaram improcedente. Por fim, o Ministro Dias Toffoli, declarou seu impedimento para atuar no processo, em virtude da sua atuação nos autos como Advogado-Geral da União.

No presente julgado sobre aborto de fetos anencéfalos é essencial a utilização do princípio da proporcionalidade. A adequação exige que a medida restritiva do direito fundamental à vida do feto anencefálico, para que seja válido ou idôneo, atenda necessariamente a uma finalidade constitucional legítima. A necessidade pauta-se na melhor escolha possível entre as opções existentes para concretizar o direito à vida, evitando uma proteção insuficiente. E a proporcionalidade em sentido estrito significa o uso da técnica da ponderação pelo julgador.

De acordo com supracitado julgado, percebe-se que o direito à vida do feto anencefálico não é uma garantia constitucional absoluta. A respeitável decisão pela inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos termos dos artigos 124, 126, 128, I e II, do Código Penal, contempla substancialmente os princípios de interpretação da hermenêutica constitucional da supremacia da Constituição, interpretação conforme a Constituição, máxima efetividade, proteção ao núcleo essencial e proibição de abuso de direitos fundamentais. Além disso, houve também acréscimo de condições de diagnósticos suficientes para se provar a anencefalia[12] para ser possível a realização de procedimento terapêutico.   

Antes de analisar o caso em concreto da ADPF 54, é essencial que o julgador detecte expresso consentimento da gestante para realizar procedimento terapêutico e laudo médico competente provando a condição de anencefalia, para que aí sim, seja possível discutir a possibilidade de restrição da vida do feto anencefálico. Nessa situação, como Ministro do Supremo Tribunal Federal, privilegiaria os valores constitucionais da dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade, liberdade reprodutiva e saúde da gestante (artigos 1º, III, 5º, caput e 196 da CF/88) em detrimento da vida do feto anencéfalo (5º, caput, CF/88), com base na interpretação conforme a Constituição, na máxima efetividade da interpretação jurídica constitucional, na concordância prática da harmonização dos direitos fundamentais em conflito e especialmente na correta aplicação da proporcionalidade e técnica da ponderação.

Entretanto, em prestígio do valor constitucional da autonomia da vontade da gestante, caso não haja consentimento da gestante para realizar parto terapêutico, a mesma não estará obrigada a fazer. Nesse caso, não existe conflito de valores, logo, o melhor seria permitir que a escolha recaísse sobre a mulher gestante e não no Estado, que não pode se pautar por dogmas religiosos. Não permitir que a gestante de feto anencéfalo possa escolher ou não fazer procedimento de parto terapêutico, significa violar um dos mais básicos atributos da dignidade humana, que é a autonomia da vontade.        

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    5 CONCLUSÃO

Os princípios de interpretação da hermenêutica constitucional são instrumentos eficientes para solucionar conflito entre direitos fundamentais, entretanto, eles não fornecem respostas perfeitas, sempre haverá margem para subjetividades, o importante é que em cada caso concreto, o magistrado fundamente suas decisões judiciais não nos seus valores pessoais, mas nos valores constitucionais emanados pela Constituição.

A proporcionalidade é um verdadeiro limite da atividade jurisdicional, ou seja, integra-se na lógica de proteção dos direitos fundamentais. Por isso, o juiz, ao concretizar um direito fundamental, deve obedecer aos critérios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A função da proporcionalidade é manter o equilíbrio de todo o sistema constitucional, harmonizando normas jurídicas.

A Constituição é fundamento de validade de toda a ordem jurídica vigente, por isso deve ser composta por normas abertas e abstratas que devem conformar as normas infraconstitucionais do ordenamento jurídico. É impossível que o legislador constituinte ordinário regule detalhadamente a totalidade de condutas realizáveis na Constituição, esta possui como característica o pluralismo, o que gera normas ideológicas contrapostas que participaram do seu processo de formação.

O interprete constitucional deve considerar a Constituição como um corpo normativo único, suas normas são interdependentes. No conflito aparente entre princípios constitucionais: autonomia da vontade da gestante e vida do feto anencefálico; deve prevalecer o direito fundamental de maior peso ou importância. Como a harmonização desses valores não é possível, o julgador deve utilizar a técnica da ponderação.   

Direitos fundamentais não são valores absolutos e inflexíveis, na verdade, podem sofrer restrições, desde que o julgador utilize corretamente a proporcionalidade como técnica de ponderação, caso contrário, haverá margem para interpretações extremistas. Qualquer restrição a direitos fundamentais deve ser vista com desconfiança, é necessária uma forte argumentação e fundamentação jurídica para afastar determinada garantia constitucional. A dignidade da pessoa humana é o principal critério substantivo na direção da ponderação de interesses constitucionais. Ao se deparar com uma colisão entre princípios constitucionais, o operador do direito tem o dever de observar o princípio da proporcionalidade, adotando a solução mais consentânea com os valores humanitários na ordem jurídica vigente, não sendo razoável permitir que um direito fundamental seja desvirtuado da sua real finalidade.

É sabido que ainda não é possível afirmar com certeza se a decisão procedente da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54 pelo Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos termos dos artigos 124, 126, 128, I e II, todos do Código Penal, bem como, se o consentimento da gestante e apresentação de laudo médico competente, serão suficientes ou não para proteger os direitos fundamentais aparentemente em conflito: dignidade da pessoa humana, autonomia da vontade, liberdade reprodutiva e saúde da gestante (artigos 1º, III, 5º, caput e 196 da CF/88) em detrimento da vida do feto anencéfalo (5º, caput, CF/88).

Apenas no futuro, através de estatísticas confiáveis, será possível verificar se a finalidade da decisão judicial foi alcançada. Caso haja ineficácia da medida, o Supremo Tribunal Federal poderá, certamente, reconhecer a sua inconstitucionalidade, por violação dos princípios de interpretação da hermenêutica constitucional, especialmente, concordância prática, proporcionalidade, proteção ao núcleo essencial e proibição de abuso de direitos fundamentais.

Em síntese, o Estado Democrático de Direito brasileiro é laico, leigo e não confessional. O direito à vida está diretamente relacionado com a dignidade da pessoa humana, razão pela qual é difícil admitir restrição total ao direito à vida do feto anencefálico, mas, excepcionalmente, através do consentimento da gestante e laudo médico competente, bem como, através da correta utilização da técnica de ponderação, o direito à vida do anencéfalo poderá ceder, pois não existem direitos fundamentais absolutos.

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Sobre o autor
Eduardo Bello Leal Lopes da Silva

Bacharel em Direito, advogado. Pós graduado em direito constitucional pelo CEUT.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Eduardo Bello Leal Lopes. O Supremo Tribunal Federal e a proporcionalidade no julgamento da ADPF 54. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6351, 20 nov. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55699. Acesso em: 26 abr. 2024.

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Artigo científico apresentado como requisito parcial para obtenção do título de especialista em Direito Constitucional, sob a orientação da Profª. Msc. Adriana Castelo Branco de Siqueira.

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