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Prisão domiciliar: rol taxativo?

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18/02/2017 às 14:00
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3 A taxatividade do Artigo 117 da Lei n° 7.210 de 1984

A par do conteúdo do Art. 117 da Lei de Execução Penal, importa agora observar, dada a natural diversidade dos casos concretos que emergem diariamente, que referida previsão legal tornou-se motivo de inúmeras discussões, centradas na possibilidade ou não de sua flexibilização.

Em algumas, questiona-se apenas o rol previsto no mencionado artigo, isto é, se o condenado que está em situação diversa daquelas lá elencadas (maior de setenta anos, portador de doença grave, condenada gestante ou com filho menor, doente mental ou físico) possui ou não o direito de cumprir sua pena em prisão domiciliar. 

De outro lado, discute-se a possibilidade de se flexibilizar somente o regime de cumprimento de pena previsto no Art. 117 da Lei de Execução Penal, ou seja, se o condenado inserido em regime semiaberto ou fechado também faz jus ao benefício. 

Ademais, existem discussões que avaliam tal possibilidade de flexibilização conjuntamente, tanto em relação ao rol quanto ao regime de cumprimento de pena previstos no referido artigo.

 Já foi decidido, por exemplo, que condenado portador do vírus HIV e condenado necessitado de tratamento especial de saúde que cumpriam pena em regime fechado, podem cumpri-la em seu domicílio.[12] Os fundamentos que justificaram a medida foram, respectivamente, o perigo de disseminação da moléstia contagiosa e a impossibilidade de tratamento médico adequado no local de cumprimento de pena.

Com relação a condenado idoso por crime hediondo, também já se permitiu a aplicação da prisão domiciliar, considerando-se, para tanto, a necessidade de cuidados especiais do apenado, algo inexequível no estabelecimento penitenciário e hospitalar próprio.[13]

  A inexistência de casa do albergado ou estabelecimento similar para aqueles que devem cumprir a pena em regime aberto é um dos fatores que mais refletem na ampliação das hipóteses que permitem a prisão domiciliar.[14]

Esta específica realidade (falta de estabelecimento adequado ao cumprimento de pena) caracteriza o principal motivo das controvérsias, sobretudo quando se pensa na flexibilização do regime de pena previsto no artigo 117 da Lei de Execução Penal. Discute-se, então, não só a aplicação da prisão domiciliar diante da inexistência de casa do albergado ou estabelecimento similar (destinos do regime aberto), mas, da mesma forma, quando não há vagas ou condições adequadas para o cumprimento de pena nos estabelecimentos destinados aos regimes fechado e semiaberto.  

De fato, a falta de estabelecimentos penais suficientes e apropriados no Brasil é um quadro presenciado há décadas. O constante descaso do Poder público impede que sejam tomadas providências efetivas e capazes de aperfeiçoar o sistema prisional, o que resulta na perpetuação do drástico panorama totalmente dissonante dos preceitos legais, em todos os níveis e regimes de cumprimento de pena. 

Foi diante deste cenário que surgiu o caso concreto desencadeante do reconhecimento da repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 641.320/RS, cujo debate concentrou-se na avaliação da constitucionalidade de se conceder ao condenado a possibilidade de cumprir pena em regime mais brando, diante da inexistência de estabelecimento penal adequado ao que fora fixado na sentença.

Nesse caso, a polêmica surgiu em razão de inexistir estabelecimento penal adequado à execução da pena, aliado ao fato do condenado ter de cumprir a reprimenda em regime semiaberto e, além disso, não estar inserido em qualquer das hipóteses do Art. 117 da LEP. 

Referido caso abrange, indiretamente, todas as discussões acerca da ampliação do rol do Art. 117 da LEP que aqui se apontou, pois, na verdade, é a possibilidade (e constitucionalidade) da pena ser cumprida em regime menos gravoso do que foi fixado na sentença condenatória pelo fato de ser impossível cumpri-la nos moldes por esta estabelecidos que foi debatida.

Como os outros estabelecimentos destinados ao cumprimento de pena em regime mais brando (colônia agrícola/ casa do albergado), quase nunca existem (ou se existem, não possuem vagas suficientes), a pretensão discutida fatalmente passa a ser para que se cumpra a pena em prisão domiciliar, eis que o domicílio resta como o único local propício em respeito aos direitos do apenado.

Diante do exposto, importa considerar que as contendas que nascem com a finalidade de se aplicar a prisão domiciliar fora da previsão legal, nada mais visam do que impedir a infinidade de contradição existente entre a teoria do ordenamento jurídico e a prática da drástica realidade carcerária brasileira, cujas implicações se concentram na violação da dignidade da pessoa humana.


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pretendeu-se apontar para análise, tendo por base o texto legal destinado à prisão domiciliar e à falta de estabelecimentos penais apropriados para o cumprimento de pena, a dissonância que muitas vezes existe entre o ordenamento jurídico positivo e a realidade, o que fatalmente implica no questionamento acerca da observância da estrita legalidade.

Em determinados casos, a discrepância é tão acentuada que necessita da atuação jurisdicional para sua concreta adequação. Um exemplo marcante dessa incoerência, apontado neste ensaio, foi o discutido na Repercussão Geral do Recurso Extraordinário nº 641.320/RS, que resultou na edição da Súmula Vinculante 56, inclusive.

Assim, verifica-se que, muitas vezes, a flexibilização de um rol legal inicialmente numerus clausus pode ocorrer, quando se tem por finalidade, sobretudo, a proteção e o respeito da pessoa humana e sua dignidade.

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REFERÊNCIAS

LYRA, Roberto. Comentários ao Código Penal. Volume II. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958.

MARCÃO, Renato Flávio. CURSO DE EXECUÇÃO PENAL. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

______. LEI DE EXECUÇÃO PENAL Anotada e Interpretada. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

MIRABETE, Julio Fabbrini. EXECUÇÃO PENAL Comentários à Lei 7.210, de 11-7-1984. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2007;

MORAES, Alexandre de.; SMANIO, Gianpaolo Poggio Smanio. LEGISLAÇÃO PENAL ESPECIAL. Série Fundamentos Jurídicos. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2006.

STJ - Más condições de presídio não justificam prisão domiciliar. 2010. Disponível em:<http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI101104,21048STJ+Mas+condicoes+de+presidio+nao+justificam+prisao+domiciliar>. Acesso em: 24 abr. 2016.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 9. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. v.1


Notas:

[1] STF, RE nº 641.320RG-RS, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 11 maio 2016, DJ em 16 maio 2016.

[2] “A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nesta hipótese, os parâmetros fixados no Recurso Extraordinário (RE) 641320” (STF, Portal do. Notícias do STF, Plenário aprova súmula vinculante sobre regime prisional, 2016. Disponível em < http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=319993>. Acesso em: 30 nov. 2016.

[3] De acordo com a Súmula 439 do STJ, a decisão que determina a realização do exame deve ser motivada.

[4] Daí o porquê de alguns denominarem o tipo de prisão que dele decorre de “prisão albergue”, a exemplo de Moraes e Smanio (2006, p. 178). Para esses autores, “a denominação de Casa do albergado (ou seja, prisão albergue), para designar o estabelecimento destinado ao condenado em regime aberto é uma expressão feliz porque se refere a uma simples prisão noturna, sem obstáculos materiais ou físicos contra a fuga”.

[5] É o que prevê o mencionado Art. 33, § 3º, CP.

[6] A exigência de motivação idônea é consolidada nas Súmulas 440 do STJ, e 718 e 719 do STF.

[7] Existe também o sistema da Filadélfia (celular), cuja origem remonta ao século XVIII, no qual o condenado permanece todo o tempo isolado em sua cela, e o sistema de Auburn (século XIX), cujo isolamento só se dá no período noturno, pois durante o dia há submissão ao trabalho em conjunto de outros sentenciados (MORAES e SMANIO, 2006, p. 171; ZAFFARONI e PIERANGELI, 2011, p. 682).  De acordo com Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 682), “o sistema irlandês ou progressivo foi introduzido pelo Capitão MACHONOCHIE, na ilha de Norfolk (próxima da Austrália) e, depois, por WALTER CROFTON, na Irlanda. Consistia na aplicação do sistema celular durante uma primeira etapa, do sistema auburniano numa segunda etapa, de trabalho ao ar livre numa terceira etapa, e, por fim, uma quarta etapa de liberdade condicional. A passagem de uma etapa à outra dependia do comportamento do apenado, que ia sendo premiado com um sistema de tíquetes”. Conferir, também, Lyra (1958, p. 93-96).

[8] De acordo com o Art. 2º, §2º, da Lei nº 8.072/90 (Crimes Hediondos), a progressão do regime dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena quando o condenado for primário, e após 3/5 (três quintos) caso reincidente. Referida previsão, no entanto, somente foi possível após o reconhecimento pelo STF da inconstitucionalidade do dispositivo que vedava a progressão de regime nos crimes hediondos (HC 82.959/SP rel. Min. Marco Aurélio, DJ em 01 set. 2006).

[9] “Um direito público subjetivo do sentenciado”, de acordo com Marcão (2009, p. 120).

[10] A exemplo de Marcão (2009, p. 141) e Moraes e Smanio (2006, p. 191).

[11] O CPP, conforme se viu, só contempla o agente maior de 80 (oitenta anos).

[12] TJ-ES, HC nº 9.218, 1ª Camâra Criminal, rel. Des. Antônio José Miguel Feu Rosa, j. em 03 jun. 1987; STJ, HC nº 17.429-PR, 5. T., rel. Min. Gilson Dipp, j. em 15 ago. 2002, DJ em 16 set. 2002; STJ, AGRHC nº 3.408-RJ, 6. T., DJ em 8 abr. 1996.

[13] STF, HC nº 83.358-6-SP, 1. T., rel. Min. Carlos Ayres Britto, j. em 4 maio 2004, DJ em 4 jun. 2004; STJ, HC nº 5.466-SP, 5. T., rel. Min. Edson Vidigal, j. em 24 mar. 1997, DJ em 15 set. 1997; STJ, HC nº 4.476-RJ, 6. T., rel. Min. Adhemar Maciel; STJ, HC nº 5.402-SP, 5. T., DJ em 1º set. 1997.

[14] STJ, 5. T., REsp nº 1.249-SP, rel. Min. Costa Lima, Ementário STJ 01/168; STJ, 5. T., REsp nº400-SP, rel. Min. Assis Toledo, Ementário STJ 01/493; STJ, 6. T., REsp nº 434-SP, rel. Min. Costa Leite, Ementário STJ 01/494; STF, HC nº 95.334, 1. T., rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 03 mar. 2009, DJ em 20 ago. 2009; STJ, AGRHC nº 202.743-RS, 6. T., rel. Min. Haroldo Rodrigues, j. em 19 maio 2011, DJ em 08 jun. 2011; STJ, REsp nº 1187343-RS, 5 T., rel. Min. Gilson Dipp, j. em 17 mar. 2011, DJ em 04 abr. 2011.

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Sobre a autora
Adelle Rojo

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (UNIVEM); Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); Mestranda em Direito pelo Centro Universitário Eurípides de Marília (UNIVEM).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROJO, Adelle. Prisão domiciliar: rol taxativo?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 4980, 18 fev. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55788. Acesso em: 19 abr. 2024.

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