INTRODUÇÃO
A violência doméstica no Brasil passou a ser reconhecida, inclusive internacionalmente, através do caso da farmacêutica de 38 anos, nascida no Ceará e mãe de três meninas, que em maio de 1983 foi vítima de tentativa de homicídio realizada pelo seu então marido o professor universitário Marco Antonio Heredia Viveiros. Enquanto Maria da Penha dormia levou um tiro, que a deixou paraplégica.
Afirma Barros (2006, p.311-318) ainda que, em razão da gravidade dos ferimentos ficou internada até outubro de 1983 quando retornou para sua residência, onde passou terríveis momentos, sendo mantida em cárcere privado e sofrendo sessões de tortura. Duas semanas após sair do hospital, ainda em recuperação, sofreu um segundo atentado contra sua vida, também cometido pelo seu marido que tentou eletrocutá-la. Após este último episódio, conseguiu autorização judicial para abandonar o lar.
E é nesse cenário que iniciaremos o estudo dos aspectos processuais da legislação que veio a proteger, de forma específica e acolhedora, a mulher vítima de maus tratos em uma relação familiar.
1 Aspectos da Lei nº 11.340/06, de 07 de Agosto de 2006.
Após todos os problemas vividos pelas mulheres e todas as vitórias legislativas conseguidas, em 07 de agosto de 2006, foi normatizada por meio da Lei nº 11.340, a Lei Contra a Violência Doméstica, popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha” em homenagem a brava luta feminina descrita.
A Lei Maria da Penha traz em sua ementa o objetivo de sua promulgação:
Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do §8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. (BRASIL, Lei nº 11340, 2006).
Com a Lei Maria da Penha, o Brasil está atendendo às recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, pois a partir da Emenda Constitucional nº 45, que acrescentou o §3º ao art. 5º da Constituição Federal, ficou conferido status constitucional aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem devidamente aprovados pelo Congresso Nacional, e por isso há a expressa referência na ementa da Lei, à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher.
A Lei Maria da Penha traz em seu art. 1º um breve resumo das intenções do que se pretende criar, mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, propondo ainda juizados especiais e medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar, que será tratado de forma específica durante o estudo ora proposto.
O art. 2º da Lei Maria da Penha traz apenas o que já está explicitado pela Constituição Federal em seus art.s 5º I; art. 3º, IV; art. 5º, caput; art. 226, § 5º, ou seja, o direito de todas as mulheres gozarem dos direitos fundamentais, “sendo-lhes asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”, direitos que apesar de parecerem óbvios não são seguidos, como pode observar na desigualdade entre os sexos e na crescente violência contra a mulher, especialmente no ambiente familiar.
O art. 3º, reza assim como o art. 2º direitos fundamentais já conhecidos, porém com foco totalmente voltado a mulher, lhe assegurando direito à vida, à segurança, à saúde, à dignidade, ao respeito, à convivência familiar e comunitária, dentre outros.
Ainda com relação ao art. 3º, temos que o Poder Público deverá desenvolver políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres, citando o âmbito familiar, a violência, crueldade, opressão e outras, cabendo à família, à sociedade e ao Poder Público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos humanos das mulheres.
As disposições preliminares são encenadas pelo art. 4º, onde é citado em destaque que na interpretação da Lei Maria da Penha deverão ser considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.
Já de acordo com o art. 41, do mesmo diploma legal, como consequência do aumento de pena, não se aplicará mais aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher os procedimentos da Lei nº 9099/95.
Tal disposto julgado procedente por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal através da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19/2012, que declara a constitucionalidade dos art. 1º, 33 e 41 da Lei Maria da Penha, com intuito de dar um tratamento diferenciado entre os gêneros, mulher e homem, no que tange às peculiaridades físicas e morais da mulher e a cultura brasileira, além da criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Superior Tribunal de Justiça aprovou a Súmula 536/2015, que trata sobre a não aplicabilidade da suspensão condicional do processo e a transação penal nos crimes praticados com tipificação na Lei Maria da Penha, visando impor um rigor ainda maior a estes tipos penais.
2 Das alterações promovidas pela Lei nº 11.340/06
No Código Penal a alteração acompanha o art. 61 que passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 61. São circunstancias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:
II – ter o agente cometido o crime:
f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica; (BRASIL, Lei nº 11340, 2006).
Essa alínea faz com que a pena seja agravada quando a violência ocorrer em decorrência das relações domésticas, trazendo severidade à Lei, porém deve ser interpretada restritivamente a definição de violência doméstica e familiar constante na Lei, para que não ocorra a aplicação da agravante para demasiados casos.
O art. 129 do Código Penal passou a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:
§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos.
§ 11. Na hipótese do §9º deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência.
Antes da Lei Maria da Penha, a pena era de 6 meses a 1 ano, o que como já dito a classificava como crime de menor potencial ofensivo, sujeito ao procedimento da Lei nº 9099/95, porém ao aumentar a pena máxima para 3 anos, ficou vedada a transação penal, surgindo assim uma nova espécie de lesão: a qualificada.
E ainda no caso da pessoa agredida no contexto doméstico ou familiar ser portadora de deficiência física ou mental, agrava-se a pena em um terço.
Houve ainda alteração na Lei de Execução Penal, que passou a vigorar com a seguinte redação:
Art.152. Poderão ser ministrados ao condenado, durante o tempo de permanência, cursos e palestras, ou atribuídas atividades educativas.
Parágrafo único. Nos casos de violência doméstica contra a mulher, o juiz poderá determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação.
Porém, para que essa alteração feita pela Lei produza efeitos é necessário que esses programas de recuperação e reeducação existam de fato, pois do contrário, os novos dispositivos não sairão do papel.
3 Da Prisão Preventiva
Porém, a alteração legislativa realmente relevante opera-se no art. 42 da Lei Maria da Penha que acrescentou novo inciso no Código de Processo Penal, criando uma nova hipótese de custódia preventiva, de acordo com o inciso III, do art. 313:
Art. 313. Nos termos do artigo 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
De acordo com Misaka (2007, p.83-87) a decretação de prisão preventiva prevista agora também ao agressor da mulher deve ser aplicada com fundamento na efetiva necessidade, nos termos do art. 312 do Código Processo Penal, que autoriza a prisão preventiva apenas “como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”, visto que diante da lentidão em que a Justiça se encontra é possível que o réu fique mais tempo preso cautelarmente do que, no futuro, tenha tempo de pena a cumprir.
Dessa forma, com a possibilidade do Juiz decretar prisão preventiva e também a prisão em flagrante, somado com a vedação da troca de pena por multa ou “doação de cesta básica”, a Lei Maria da Penha traz uma seriedade para os casos que antes não existia, pois se não houvesse essa modificação, a maioria dos episódios de violência doméstica e familiar contra mulher ficaria privada do instrumento coercitivo da prisão preventiva por ausência de sustentação nos motivos elencados no art. 312, Código de Processo Penal, tradicionalmente e nos casos de cabimento arrolados no art. 313, Código de Processo Penal. Já a prisão em flagrante poderá ser relaxada mediante pagamento de fiança.
Assim, o artigo muda totalmente a antiga previsão dada pela Lei nº 9099/95, que não previa a prisão do agressor, apenas previa medidas de segurança com a finalidade de afastar o agressor da vítima.
Após o estudo realizado com base na Lei Maria da Penha, vale lembrar que não poderá retroagir para alcançar fatos anteriores à sua vigência, por conter em geral normas mais rigorosas ao agressor, o que é vedado constitucionalmente uma vez que a lei penal não retroage, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL, CF, c.c. art. 2º, parágrafo único, CP).
4. Da representação
Para Foley (2010, p. 443-459) o tipo de ação prevista para a Lei Maria da Penha é a Ação Penal Pública Condicionada à representação da vítima, o que significa que para que a Ação tenha continuidade perante a Justiça será necessária a representação da vítima, e aí reside o maior problema, visto que a esmagadora maioria das mulheres apesar de ir até as Delegacias Especializadas e muitas vezes dar queixa de seus agressores, se arrependem, e resolvem conceder “uma segunda chance”, e consequentemente, se retratam.
Segundo Carvalho e Andrade Neto (2008, p.73-74) o art. 16 traz a hipótese de renúncia à representação que a partir da Lei nº 11.340/06 deverá ser efetuada perante o Juiz do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, e na falta desse, na Vara Criminal Comum.
Diz Izumino (2008, p.321-360) que essa retratação é comum entre as mulheres que são agredidas, que registram ocorrência na Delegacia de Polícia quando estão realmente nervosas, e depois se reconciliam com seus companheiros ou maridos que prometem que nunca mais irão agir daquela forma, e consequentemente retratam-se, evitando o ajuizamento da ação penal ou o seguimento para a transação quando viável.
Porém, Izumino (2008, p.321-360) diz ainda que a Lei Maria da Penha impôs em seu art. 16 que, a renúncia à representação somente será admitida ser for realizada perante o Juiz, em audiência especialmente designada para tal finalidade, antes que ocorra o recebimento da denúncia e a oitiva do Ministério Público.
Completa Leal (2006, p.99-106) que essa necessidade imposta tem a intenção de dificultar e atingir assim um grau maior de solenidade e formalidade para o ato, para alcançar um índice maior de conscientização das consequências da retratação para a desistente, que estará afastando a punição do agressor, e essas informações deverão ser prestadas pelo Magistrado na audiência.
Sendo assim, para Nader (2009, p. 55-56) havendo renúncia na Delegacia ou retratação na representação, deverá a Autoridade Policial deixar de instaurar o inquérito e encaminhar ao Judiciário o que já foi produzido na Delegacia, orientando a vítima que deverá comparecer em Juízo posteriormente para ratificar o seu desejo de retratar, quando o Juiz irá marcar uma audiência para tal finalidade.
Diz também Nader (2009, p.55-56) que é destacável o regramento do art. 21, ao determinar que a ofendida deva ser notificada dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente no que diz respeito ao ingresso e à saída da prisão, o que demonstra uma louvável preocupação do legislador com a segurança pessoal da mulher vitimizada, que não deve ser surpreendida pelo seu agressor liberado da prisão e revoltado com suas denúncias.
5 Juizados Especiais
Para Velasco (2007) com a entrada da Lei Maria da Penha não há mais divergências relacionadas com a constitucionalidade dessas cumulatividade cível e criminal, pelo menos na área da violência doméstica, por estar tipificada pelo art. 14.
Trata-se de uma norma inédita, que se for efetivada, será muito positiva, pois vem cumulada a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que serão órgãos integrantes da Justiça Comum, naturalmente estadual, em decorrência da matéria com o advento da cumulação cível e criminal.
Velasco (2007) explica ainda que para a plena aplicação da Lei, o ideal seria que em todas as Comarcas fossem instalados Juizados de Violência Doméstica e Familiar, e que o Juiz, o Promotor, o Defensor e os Servidores fossem capacitados para atuar nessas varas e contassem com uma equipe de atendimento multidisciplinar, integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde (art. 29), além de curadorias e serviço de assistência judiciária (art. 34), porém diante da realidade brasileira esses Juizados não serão implantados de imediato, até porque, não foi imposto pela Lei nº 11.340/06 prazos para sua implantação.