RESUMO: Este artigo pretende lançar luz sobre o dissídio doutrinário formado no âmbito da natureza jurídica das decisões do Tribunal Marítimo. Afastou-se a ideia de “parecer técnico”, defendida por parcela minoritária de especialistas, usando-se da etimologia e da lógica jurídica. Criticou-se o equivocado veto presidencial ao dispositivo do novo Código de Processo Civil que incluía os acórdãos da Corte Marítima na lista dos títulos executivos judiciais. Pugnou-se pelo entendimento de que as decisões do Pretório Marítimo fazem coisa julgada administrativa, sendo esta a sua natureza jurídica. Ao final, o autor conclui que essas decisões são definitivas de mérito, exceção feita para as hipóteses de vícios de inconstitucionalidade e/ou ilegalidade. Desse modo, tais acórdãos estão aptos para serem executados junto ao juízo cível competente, em harmonia com a Carta Política, máxime, no que toca aos direitos fundamentais que apontam para o caminho da razoável duração dos processos. Lamentavelmente, esse avanço pretendido pelo Legislativo encontrou barreira na incompetência do Executivo.
PALAVRAS-CHAVE: Tribunal Marítimo; Código de Processo Civil; Veto Presidencial; Oligofrenia.
INTRODUÇÃO
No mundo há três tipos de homens: os vivos, os mortos e os que navegam. Só aos homens do mar deve ser dada a capacidade de julgar as decisões tomadas no cenário marítimo. (Victor Hugo)
Apesar de os acanhados avanços no direito marítimo terem chegado, de forma inédita, ao novel codex processual civil, esse especializado ramo do Direito ainda é mal compreendido por parte de alguns poucos profissionais da área.
Aqueles que militam no âmbito do direito marítimo, muitas vezes, veem suas lides sobrestadas na esfera cível por decisão dos magistrados para aguardar o acórdão final do Tribunal Marítimo (TM). Para alguns advogados da área, tal fato ganha status de irritabilidade. Destaca-se excerto do texto de Paulo Henrique Cremoneze[2] (e outro):
Na verdade, os “julgamentos” do Tribunal Marítimo são pareceres técnicos, ora de maior, ora de menor importância, mas, sempre e tão só, pareceres técnicos, donde se infere que as decisões do aludido órgão colegiado administrativo são extremamente limitadas [...]. Tanto assim que as decisões do Tribunal Marítimo não fazem “coisa julgada”. Em verdade, sequer a garantia constitucional do segundo grau de jurisdição encontra-se presente nas decisões do Tribunal Marítimo, sendo isso mais um argumento favorável a delimitação de sua natureza como a de simples pareceres técnicos [...]. A decisão do Tribunal Marítimo não pode, salvo casos específicos, influenciar diretamente e exclusivamente o convencimento do Estado-Juiz sob pena de, conforme o caso concreto, ferir os princípios básicos da responsabilidade civil que regem o ordenamento jurídico (sic).
Nos próximos itens, pretende-se dar uma visão perfunctória sobre a natureza jurídica dos acórdãos da Corte Marítima[3], para, ao depois, tratar dos avanços introduzidos no novo diploma processual civil. O núcleo do artigo tratará do dissídio doutrinário que acabou por gerar o equivocado veto ao texto original proposto pelo Legislativo.
1 - DA NATUREZA JURÍDICA DAS DECISÕES DO TM
Os acórdãos finais do TM têm natureza jurídica de coisa julgada administrativa[4], sendo, portanto, decisões definitivas no âmbito administrativo. Estas têm caráter cogente para apontar responsáveis, aplicando-lhes as penalidades cominadas em lei.
Com todo respeito que merecem os articulistas citados na introdução deste trabalho, as decisões finais do TM não têm, nem poderiam ter, natureza jurídica de “parecer”. Ora, “parecer” é o que parece ser na opinião de determinado técnico ou especialista. Portanto, trata-se de uma opinião e não de uma decisão. Consequentemente, nenhum parecer, por mais especial que possa ser, guarda qualquer similitude com as decisões da Corte Marítima.
De clareza meridiana, “parecer técnico” não tem força para julgar, muito menos para punir, conforme se depreende da dedução lógica extraída pelo simples conhecimento etimológico desses vocábulos. Ainda, a alegação de que não há segundo grau de jurisdição no TM aponta, data maxima venia, para a necessidade de revisão da matéria. Avança-se.
Estaria o Presidente da República privado do segundo grau de jurisdição, se cometesse infração penal comum, já que a competência para julgá-lo é originária do Supremo Tribunal Federal (STF)? Obviamente que não. Os recursos, em segundo grau de jurisdição, seriam analisados pelo próprio STF, com composição distinta daquela formada por ocasião do julgamento recorrido.
No TM, de igual modo, os recursos em segundo grau de jurisdição são julgados pelo mesmo órgão, mas em nova composição, sendo nomeados novos relator e revisor. Portanto, o equívoco e a dúvida seriam perdoáveis, entretanto, a afirmação, sob análise, dos autores citados parece de todo iníqua. Eis a palavra da abalizada doutrina de Paulo Rangel,[5] certamente, conhecida por eles:
A expressão devolutivo causa uma certa perplexidade quando se observa que o juízo a quo não pode devolver aquilo que nunca lhe emprestaram, pois a causa nunca esteve no juízo ad quem (Tribunal). Porém, tal significado tem origem no sistema processual inquisitivo, onde todas as funções (acusar, julgar e defender) concentravam-se nas mãos do monarca ou do príncipe. Assim, o monarca ou príncipe era o depositário da jurisdição penal, possuindo todo o poder de julgar; e como o grande número de casos não lhe permitia exercê-lo direta e pessoalmente, delegava suas funções judicantes a funcionários subalternos e as reassumia quando era necessário. Neste caso, quando um cidadão recorria da decisão do funcionário, devolvia ao monarca ou ao príncipe o reexame da decisão, fazendo nascer, assim, o efeito devolutivo. [...] Efeito devolutivo significa dizer que a interposição do recurso devolve (entrega), ao órgão jurisdicional apontado na lei como o competente para reexaminar a questão, toda a matéria objeto do recurso (cf. art. 512 do CPC). O Tribunal poderá reexaminar toda a matéria, ou parte dela, surgindo, assim, a apelação plena ou limitada (cf. art. 599). Porém, nem sempre o recurso entrega o reexame da questão ao órgão superior, pois casos existem em que o próprio órgão que proferiu a decisão reexamina-a, como nos recursos de protesto por novo júri. [original não grifado]
Por último, quanto à afirmação de que a decisão do TM não pode influenciar o convencimento do Estado-Juiz, é completamente descabida e não guarda relação de pertinência com o próprio texto da Lei Orgânica do Tribunal Marítimo:
Art. 1º O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário [...] tem como atribuições julgar os acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e as questões relacionadas com tal atividade, especificadas nesta Lei.
[...]
Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.
Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva.
Ora, como não influenciar a decisão do Poder Judiciário se o TM é seu órgão auxiliar? Como não influenciar se suas decisões têm valor de prova técnica, produzida em tribunal especializado e, ainda, presumem-se corretas?
Assim, o magistrado, ao revés, em cumprimento à Lei 2.180/54, apreciará a decisão do TM, quando de competência concorrente, consoante seu estimado valor de prova, entendendo-a como definitiva de mérito. Seu reexame se dará tão só, quando necessário, no aspecto formal. Por outro lado, para a hipótese remota de o Judiciário ignorar o julgado do TM, em caso de competência concorrente, espaço haverá para os recursos cabíveis, inclusive ação rescisória, como bem asseverou, em artigo pertinente, o Juiz Marcelo David Gonçalves,[6] da Pretória Corte do Mar:
Desta forma, o Judiciário poderá apoiar-se na decisão profundamente técnica do Tribunal Marítimo (por isso auxiliar do Poder Judiciário) no momento de definir responsabilidades cíveis ou criminais em processos de competência concorrente. Como, também, evitar-se-á natural ação rescisória, caso decida sem levar em conta prova fundamental (decisão de Corte Especializada) para o deslinde do litígio.
2. HISTÓRIA E OBJETIVOS DO NOVO CPC
Em 16 de março de 2015, como amplamente noticiado, foi sancionado, em cerimônia no Palácio do Planalto, o Novo Código de Processo Civil (CPC), Lei nº 13.105/2015, conforme aprovado em dezembro do ano anterior pelo Senado. Percebe-se, no novo texto, o desejo do legislador de caminhar em sintonia com a Carta Política. Explica-se.
2.1 Da História ao momento atual
O novo Diploma Processual não é uma atualização tão somente, mas, uma verdadeira modernização do Códice anterior, que foi iniciada pelo então presidente do Senado, José Sarney, em 2009. Na ocasião, foi instituída uma comissão composta de juristas para elaborar o anteprojeto, sendo esta presidida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Luiz Fux, que, à época, integrava o Superior Tribunal de Justiça.
Essa comissão de notáveis juristas apresentou um anteprojeto de lei que foi convertido no PLS 166/2010 e passou a ser analisado por uma comissão especial de senadores. O texto foi aprovado em Plenário e seguiu para a Câmara dos Deputados. Na Câmara, ele recebeu alterações. Entre outras, as regras especiais para favorecer a solução consensual de demandas no âmbito das ações de família.
De volta ao Senado, o projeto passou mais uma vez pelo exame da comissão especial de senadores. Por fim, seguiu para o Plenário para votação final, que ocorreu em dezembro/2014. O presidente do Senado, Renan Calheiros, enviou o texto final à sanção, em fevereiro de 2015, após minuciosa revisão técnica.
Vale sublinhar que esse novo diploma processual foi o primeiro a ser elaborado em plena vigência de um regime democrático no Brasil e tramitou no Congresso por mais de cinco anos. Avança-se. O CPC anterior, como se sabe, foi editado em 1973, durante o regime da ditadura militar, com a assessoria do ministro da Justiça, Alfredo Buzaid. Já o Código que o precedeu havia nascido em um contexto de exceção do Estado Novo, sob o mesmo chicote com que Getúlio Vargas fustigava seus cavalos, em1939.
Desse modo, soa estranho que ainda haja pensamentos retrógrados a defender o modelo antigo, não percebendo a real necessidade de celeridade nos processos e o “desafogamento” do Judiciário brasileiro que acumula mais de 100 milhões de processos, conforme os recentes relatórios do Conselho Nacional de Justiça.
Considerando 200 milhões de habitantes, verifica-se que 100 milhões de processos significam o absurdo e a inimaginável marca de um processo para cada dois residentes no país. Portanto, vivencia-se um colapso da máquina burocrática judiciária. Daí a extrema necessidade de soluções, sendo uma delas o cumprimento do direito fundamental de se ter uma razoável duração dos processos.
2.2 Do objetivo primordial do novo CPC
Como se sabe, o Código de Processo Civil define como tramita um processo na Justiça: prazos, tipos de recursos, competências, ritos etc. são rigorosamente explicitados no texto legal. Uma das principais inovações do novo texto é a maior celeridade no andamento dos processos, numa tentativa de harmonização com a Carta Política: “art. 5º, LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Nada mais injusto do que uma decisão extremamente tardia que, em várias situações, sequer alcança com vida o autor da demanda. Essa teratologia já era motivo da preocupação de Rui Barbosa[7] que se eternizou por suas célebres assertivas. Entre muitas, está a que se amolda ao que se quer demonstrar: “A justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.
Na esteira dessas preocupações e para o fiel cumprimento da Constituição Federal, o novo CPC faz várias alterações no atual sistema de recursos, reconhecido como um dos obstáculos à celeridade dos processos na esfera cível.
Nesse passo, suprimiu diversos recursos e restringiu o uso de alguns outros. Ainda, na tentativa de desencorajar os litigantes de má-fé, foram majoradas as multas para coibir o manejo dos recursos com fins meramente protelatórios.
Pode-se afirmar, por conseguinte, que o novo Código de Processo Civil está posto para assegurar o direito constitucional e fundamental que todos têm a uma resposta do poder judicante em tempo razoável e relativamente justo. Contraditoriamente a esse pensamento, caminhou o desacertado veto presidencial que se comenta a seguir.
3. DO LAMENTÁVEL VETO
No mesmo dia em que foi sancionado o novo CPC, a Presidente da República enviou ao Senado Federal a Mensagem nº. 56:
[...] nos termos do § 1o do art. 66 da Constituição Federal, a Presidente da República decidiu vetar parcialmente, por contrariedade ao interesse público, o Projeto de Lei nº 166, de 2010 (nº 8.046/10 na Câmara dos Deputados), que institui o Código de Processo Civil.
Entre os dispositivos vetados, estava o inciso X, do art. 515, que incluía, entre os títulos executivos judiciais, os acórdãos do Tribunal Marítimo. As razões ao veto foram postas no sentido de uma suposta preocupação: “se for atribuída a natureza de título judicial às decisões do TM, o controle de seus acórdãos poderá ser afastado do Poder Judiciário”[8] e, se assim ocorresse, na visão dos que orientaram a Presidente, estar-se-ia em desarmonia com a Carta Magna.
Percebe-se que a justificativa é tão pífia que não subsiste por seus próprios argumentos. Trata-se de teratologia jurídica que este artigo pretende esmiuçar, demonstrando que a infundada preocupação é inconsistente por várias razões, entre elas, o fato de já existir no ordenamento jurídico títulos executivos outros, fora da sentença, jamais questionados pela sociedade.
De compreensão franciscana, perceptível a qualquer intérprete mediano, o inciso X, sob comento, foi introduzido ao novo diploma ladeado de incisos outros, já existentes pelo desejo do legislador desde o texto anterior. Entre eles, a sentença arbitral: “Art. 515. São títulos executivos judiciais, cujo cumprimento dar-se-á de acordo com os artigos previstos neste Título: [...] VII - a sentença arbitral [...] X - (VETADO)”.
Ora, a sociedade, por seus representantes legislativos, entendeu, em harmonia com a Constituição Federal, já há algum tempo, que a sentença arbitral é decisão apta a ser executada, ainda que produzida fora do Judiciário de forma rápida e simples. Exatamente é essa celeridade que se amolda ao texto constitucional. Verifica-se que não houve temor que o controle das sentenças arbitrais fosse afastado do Poder Judiciário. Ao contrário, o Brasil rendeu-se à modernidade das relações mercantis internacionais, privilegiando a celeridade na solução dos conflitos.
Se uma decisão tão célere, que é definida por um árbitro em até seis meses, pode ser executada sem qualquer temor, por que todo esse medo e preocupação com relação aos acórdãos do Tribunal Marítimo?
Ao que tudo indica, há um profundo desconhecimento da importância desse Tribunal. Os acórdãos finais do TM são produzidos por decisão de um colegiado, formado por juízes legalmente nomeados pelo Presidente da República, após todos os recursos cabíveis, inclusive em segundo grau de jurisdição. As partes são representadas obrigatoriamente por advogados, com todos os requintes do contraditório e da ampla defesa, por período médio de três anos.
Se esse acórdão não for o bastante para se julgar o mérito de um acidente da navegação; se há necessidade de que a matéria seja novamente discutida por um juiz de primeira instância, que nomeie perito e, ao final, prolate sentença; e, ainda, que essa sentença passe por todos os recursos cabíveis, para se ter certeza sobre as causas determinantes do ocorrido no mar, pergunta-se: por que ainda mantemos no Brasil um Tribunal Marítimo?
A questão está muito clara e pode ser resumida da seguinte forma: não há temor do Poder Judiciário que, ao contrário, clama por auxílio; tampouco há temor da sociedade. Há, sim, temor dos particulares interessados em que seus processos, envolvendo cifras milionárias, continuem sendo julgados sem o respaldo técnico de um tribunal especializado. Ainda, que essas indenizações se arrastem por anos, beneficiando os maus devedores.
Destarte, o veto só ocorreu por força do lobby que representa uma elite bem estruturada que percebeu a possibilidade de seus interesses serem frustrados.
Essa elite, infelizmente, representada nas redes sociais por profissionais do Direito, conseguiu adeptos, até mesmo entre magistrados aposentados, que, sem o devido conhecimento do especializado direito marítimo, aceitaram escrever artigos elogiando o veto. É o caso do desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Luiz Roberto Sabbato[9]. Eis excertos de seu artigo:
Somente o Poder Judiciário, regularmente representado por seus membros investidos, tem a prerrogativa constitucional de criar títulos judiciais. Fosse reconhecer ao Tribunal Marítimo o predicamento judicante sem o processo jurisdicional, os mais espaçosos – que atualmente não faltam no Brasil - pensariam logo em exercer a função de legislar sem o processo legislativo. [...] Os que se enveredaram por essa perigosa senda contavam com a distração do leitor, desestimulando-o de uma análise mais acurada diante do tamanho do texto. Andou bem, pois, quem o reviu para provocar o veto, descortinando às tramas desonestas de redatores cumpliciados com o fisiologismo [...] Por que [sic], enfim, além de imoral é inconstitucional a uma instituição administrativa criar documentos espúrios, quanto mais enquanto judiciais, aos interessados em exercer a jurisdição se recomenda a leitura dos artigos 92 e seguintes da Constituição Federal, com o que pela lei e pela ordem poderão alcançar o cargo e a função de juiz, assumir o poder pela investidura e julgar com o equilíbrio de quem tem o direito e o dever de vestir a toga. [...] Que dizer, pois, se à [sic] esses títulos de exequibilidade duvidosa fossem agregados os títulos resultantes da sentença arbitral, provindos ou não do tribunal marítimo, que por força de evidente inconstitucionalidade, foram incorporados sub-repticiamente no diploma de 1973, artigo 475-N, V, incluído pela Lei n. 11.232, de 2005: “a sentença arbitral”. Supondo-se a existência de uma sentença arbitral que houvesse analisado um acidente marítimo, por exemplo, de um abalroamento como o que aconteceu com o Costa Concórdia, na Itália, quando pilotado pelo comandante FRANCISCO SCHETTINO, que hoje ainda responde na Justiça Comum da Itália, acusado de homicídios por imprudência, abandono de navio e danos ao meio ambiente. (originais não sublinhados).
Ainda que em uma leitura superficial desse artigo, percebe-se que o nobre magistrado aposentado, apesar de seu notório saber jurídico, escreveu sobre matéria que não domina. Permita-se comentar tão só as assertivas sublinhadas.
3.1 Do temor infundado
Sabbato alega que só o Poder Judiciário cria títulos executivos judiciais. Sabe-se que não é verdade. É notório que toda regra pode caminhar harmoniosamente com suas exceções. Não é diferente no âmbito jurídico. Vale lembrar.
Em tempos muito remotos, o poder de julgar era exclusivo dos monarcas. Estes logo perceberam a necessidade de auxiliares e criaram a figura dos pretores. O mundo de lá pra cá evoluiu. Hoje, nos países democráticos, quem decide sobre a legitimidade para produzir títulos executáveis é o Poder Legislativo (pela lei) e não o Poder Judiciário. É uma questão de evolução, como no dizer de Mendonça Lima[10]:
Mas, desde a Idade Média que determinados documentos se tornaram executáveis e garantizantes. Quanto mais progrediam as instituições processuais, para atender à evolução, sobretudo, dos direitos obrigacionais e, entre esses, das relações mercantis, fundadas em certos títulos, o direito positivo foi estendendo a força executiva a diversos e diferentes documentos, fora da sentença. Cada ordenamento, porém, adota orientação própria, de acordo com suas tradições, suas praxes, seus costumes e, máxime, seu direito material, que exija ou não maior proteção. (original não grifado).
Desse modo, o Poder Legislativo, usando de suas atribuições criou, pela lei da arbitragem, título executivo judicial que não existia, em total harmonia com o ordenamento jurídico. Não houve e não há qualquer temor ou terror em razão dessa evolução.
Maior clareza não se podia exigir do texto legal que para alguns, que compreendem mal o múnus da magistratura, deve ter causado calafrios por baixo de suas togas: “Art. 31. A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo” (Lei nº 9.307/96).
3.2 Das decisões do TM. Questões de ordem pública
Outro equívoco do desembargador Sabbato, que aponta para necessidade de revisão da matéria, é o fato de ele supor que as decisões do Tribunal Marítimo são sentenças arbitrais. Podem ser, mas não é a regra e nem é esse o assunto do veto. Explica-se.
A Corte Marítima pode excepcionalmente funcionar como tribunal arbitral, se assim for o desejo das partes para uma demanda específica, envolvendo direitos disponíveis. Nesse caso, a decisão tomada pelo TM estará revestida da condição de título executivo judicial, por força da lei de arbitragem já mencionada, não havendo qualquer questionamento possível.
Essa, porém, não é a regra. O TM, primordialmente, julga fatos e acidentes da navegação, que são vistos pela lei como questão de ordem pública e, portanto, na esfera dos direitos indisponíveis. Matéria específica que requer expertise diferenciada, razão por que da existência do Tribunal Marítimo, a quem a sua Lei Orgânica (Lei nº 2.180/54) atribui status de Órgão Auxiliar do Poder Judiciário.
Ora, são os acórdãos proferidos por esse Colegiado, no julgamento de fatos e acidentes da navegação, que estão em discussão. O veto presidencial foi no sentido de não aceitar que essas decisões de ordem pública fossem incorporadas ao rol dos títulos executivos judiciais. Não parece lógico, tampouco jurídico, que uma sentença arbitral não cause qualquer temor de afastamento do crivo judiciário e, por outro lado, que um acórdão proferido por juízes, nomeados pelo Presidente da República, compondo Órgão Auxiliar do Poder Judiciário cause tanta estranheza.
3.3 Do infeliz exemplo
Finalizando o comentário ao artigo de Sabbato, vale gizar que suas palavras, como tiro que saiu pela culatra, reforçam a necessidade de se ter um tribunal marítimo no país. Ao comentar sobre o caso Costa Concordia, além de voltar ao uso indevido de “sentença arbitral”, usa a expressão “abalroamento” para falar daquele acidente marítimo, demonstrando seu desconforto com o tema.
Mesmo sendo um desembargador experiente e já aposentado, não sabe que a expressão que usou é para designar o choque mecânico entre duas embarcações, fato esse que não ocorreu com o navio de passageiros que ele comentou. Por essa razão é que se têm, no Brasil e na maioria dos países desenvolvidos, tribunais especializados em direito marítimo.
O Costa Concordia, como de conhecimento dos expertos, sofreu uma série de acidentes interligados. Primeiro, colidiu com pedras submersas e, em razão do primeiro acidente, fez água aberta (outro acidente). Em seguida, o comandante, em ato volitivo, decidiu pela varação (mais um acidente). Ao varar, o navio colidiu com novas rochas e fez nova água aberta (mais dois acidentes). Por fim, naufragou parcialmente (último acidente da série). Portanto, foram seis acidentes em sequência. Mas, não houve, em absoluto, “abalroação”, como imaginou Sabbato.
A complexidade desses acidentes e as questões náuticas envolvidas demandariam um julgamento por tribunal especializado, coisa que a Itália não possui, em descompasso com a maioria dos países da Europa. Infelizmente, os juízes italianos da esfera penal tiveram que julgar com base no fraco relatório dos peritos. Certamente que julgariam com muito mais propriedade se pudessem contar com decisão prévia de uma corte marítima.
Apenas para ilustrar, o ato volitivo do comandante, consubstanciado na varação, tem consequências jurídicas múltiplas, sendo a mais importante a de se declarar a condição de avaria grossa, com o rateio obrigatório dos prejuízos entre os atores da aventura marítima. A varação é ato necessariamente intencional e tem por objetivo salvar o navio, as vidas ou as fazendas de bordo. No caso que se analisa, esse ato volitivo foi responsável pelo salvamento de mais de quatro mil pessoas.
Adianta-se que esse comentário é puramente técnico e está circunscrito à área administrativa e à civil. Portanto, não guarda relação com a esfera penal. Nesse ponto, vale tributar-se profundo respeito às famílias das 32 pessoas que perderam suas vidas naquele acidente. Não há espaço nesse artigo para se analisar a culpabilidade do comandante na esfera náutica. A questão penal jamais seria discutida por qualquer Tribunal Marítimo no mundo, não sendo intenção deste autor tecer comentário nessa área.
Apenas ressalta-se que o ato volitivo do capitão e sua expertise para colocar o navio em seco, após os dois primeiros acidentes, estando o navio sem máquinas e sem governo, se analisados por tribunal especializado, seriam considerados, no mínimo, como atenuantes para possíveis faltas cometidas na esfera administrativa, podendo ter reflexos no âmbito penal.
Quanto às ações civis indenizatórias envolvendo o Costa Concordia, estas estão sendo julgadas (algumas já finalizadas) sem prejuízo algum dos resultados na esfera penal, já que independem da falta ou culpa do comandante do navio. Tampouco estariam jungidas às decisões administrativas, se lá houvesse tribunal marítimo.
Ora, sabe-se que o transporte marítimo de passageiros é entendido pacificamente na comunidade internacional como de responsabilidade objetiva. Razão por que várias vítimas foram indenizadas antes da condenação do comandante, e outras ainda serão, mesmo que haja recursos pendentes de julgamento na esfera penal.
Desse modo, a preocupação de Sabbato é fruto de seu desconhecimento da matéria que, por si só, desqualifica seu artigo. Se o acidente ocorresse no Brasil, o Tribunal Marítimo julgaria tão só a questão náutica, apontando os culpados pelo acidente e aplicando-lhes as penalidades administrativas cabíveis. Não julgaria a responsabilidade penal, por simples razão de incompetência. Mas, seu acórdão poderia auxiliar e aprimorar o convencimento dos respectivos juízes naquela esfera.
3.4 Das consequências do veto
De volta ao desastroso veto presidencial, lamentavelmente, o Executivo frustrou o desejo do legislador de trilhar pelo caminho constitucional. Não fosse o veto, na esfera cível não mais se discutiria as causas e os responsáveis pelo acidente marítimo, mas tão só o dever de indenizar e o quantum indenizatório, por meio de processo de liquidação de sentença. Esse foi o desejo do legislador, consoante se percebe no art. 516, III, do novo CPC:
Art. 516. O cumprimento da sentença efetuar-se-á perante: [...] III - o juízo cível competente, quando se tratar de sentença penal condenatória, de sentença arbitral, de sentença estrangeira ou de acórdão proferido pelo Tribunal Marítimo. (original não sublinhado).
De fácil constatação, o objetivo do legislador não foi usurpar prerrogativa exclusiva do Poder Judiciário, ao revés, quis dar a esse Poder condições de cumprir o texto constitucional, oferecendo à sociedade a prestação jurisdicional com razoável duração do processo. Nessa esteira já estava o entendimento do Supremo Tribunal Federal[11]:
A criação do Tribunal Marítimo, órgão administrativo integrado por técnicos, a que se atribui competência quase jurisdicional para o deslinde de questões de direito marítimo, se insere na tendência do Estado moderno de aliviar as instituições judiciais de encargos puramente técnicos, para os quais não estão elas preparadas (original não sublinhado).
Infelizmente, o desacertado veto não permitiu que os avanços pretendidos pelo legislador fossem materializados. Os que pretendem indenizações em razão de fatos ou acidentes da navegação, por enquanto, continuarão a depender de dois julgamentos para mesma matéria: um no Tribunal Marítimo e outro no Poder Judiciário, sendo que o último pode divergir do primeiro e retardar ainda mais a satisfação do crédito.
Por último, verifica-se a total atecnia dos que orientaram equivocadamente a Presidente. Ora, o veto do inciso X do artigo 515, necessariamente, deveria provocar o veto da parte final do artigo 516, já transcrito anteriormente. Ora, o acórdão do TM não poderá ser cumprido no juízo cível competente porque não foi considerado título executivo.
Dessa incompetência até para vetar, resultará trabalho extra para doutrina e jurisprudência. Espera-se que o Legislativo, brevemente, em nova análise sobre o tema, possa amadurecer a ideia e definitivamente avançar no caminho constitucional da razoável duração dos processos.