A AÇÃO CIVIL PÚBLICA E A TUTELA COLETIVA DE INVESTIDORES NO MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS
Os investidores no mercado de valores mobiliários são destinatários de uma série de direitos estabelecidos, sobretudo, pela Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas – LSA), que podem ser comuns, especiais ou institucionais, bem como ter caráter político, patrimonial ou instrumental, de acordo com a classificação de Jorge Lobo29.
Para tutelar tais direitos, os investidores contam com a atuação administrativa da Comissão de Valores Mobiliários, além das ações judiciais previstas pela própria LSA, a exemplo daquelas previstas nos artigos 105, para exibição dos livros da companhia, e 159, § 4º, que confere aos acionistas legitimidade subsidiária em relação à companhia para ajuizar ação de responsabilidade civil contra o administrador, pelos prejuízos causados ao patrimônio da sociedade.
Entretanto, nos dois exemplos acima citados e em muitas outras hipóteses, exige-se a reunião de acionistas que representem 5% (cinco por cento), pelo menos, do capital social, o que implica num entrave ao ajuizamento de tais demandas, especialmente num contexto de massificação das relações de investimento e de ampla variedade no perfil de investidores, que, na maioria das vezes, sequer participam da vida da sociedade. Ademais, os instrumentos processuais de tutela previstos pela LSA são franqueados apenas aos acionistas, ou seja, aos detentores de ações ordinárias e, em alguns casos, preferenciais30, deixando de fora os titulares de todos os demais papéis emitidos pelas companhias.
Registre-se, ainda, que os titulares de valores mobiliários poderão socorrer-se dos instrumentos processuais comuns, sobretudo os disciplinados no Código de Processo Civil. Ademais, há casos em que a Lei das Sociedades Anônimas atribui ao acionista a condição de legitimado ativo como substituto processual da companhia, de forma que, buscando a tutela jurisdicional dos interesses da companhia estará defendendo, de forma reflexa, os próprios interesses31. Todavia, conforme adverte Fernanda Vicentini32, “é grande o número de lesão conjunta de investidores, e os mecanismos clássicos de tutela apontados não se apresentam como suficientes para tutelá-los”.
A insuficiência dos instrumentos tradicionais, que são, primordialmente, individuais, decorre do desconhecimento e despreparo dos investidores, da superioridade econômica e técnica das companhias em relação a estes, assim como da falta de interesse econômico no ajuizamento de ações que, do ponto de vista individual, veiculam pretensões ínfimas, mas que coletivamente consideradas e reunidas em um só processo, ganham vulto. Dessa forma, a tutela coletiva dos interesses dos investidores, “poderá revestir-se de relevância social, quando a grande dispersão dos lesados puder levar a uma situação de impunidade dos agentes infratores”33.
Para Lionel Zaclis, o aperfeiçoamento da disciplina da tutela coletiva de investidores interessa não apenas ao grupo lesado, mas a toda a sociedade, uma vez que contribui para o aumento da confiança no mercado de valores mobiliários, que é de vital importância para o desenvolvimento econômico do país, uma vez que os investimentos são a sua força propulsora34.
Teori Albino Zavascki35 assevera que, a partir do elo existente entre a função legislativa (que cria as normas) e a função jurisdicional, deve-se considerar que a eficácia social das normas que regulam o mercado de valores mobiliários relaciona-se com a aptidão dos instrumentos processuais de assegurar o seu cumprimento, uma vez que este último nem sempre ocorre de forma espontânea.
Nesta esteira, foi editada a Lei nº 7.913/89, com o objetivo de:
“[...] proteger os titulares de valores mobiliários e os investidores no correspondente mercado, e tende à obtenção de duas tutelas distintas, uma voltada a impedir a ocorrência de irregularidades potencialmente danosas, outra direcionada ao ressarcimento de danos individualmente sofridos pelos investidores em virtude de tais irregularidades”36.
O referido diploma legal dispõe sobre a ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários e, em seu artigo 4º, estabelece a aplicação subsidiária da Lei nº 7.347/85. Dessa forma, no que diz respeito ao mercado de valores mobiliários, a Lei nº 7.913/89 vem complementar o microssistema de tutela coletiva composto pela Lei da Ação Civil Pública e pelo Código de Defesa do Consumidor, conforme já mencionado. Assim, de acordo com Márcio Souza Guimarães37, a Ação Civil Pública de que trata a Lei nº 7.913/89 constitui-se numa forma de levar ao conhecimento do Poder Judiciário o fato transindividual societário lesivo aos interesses dos investidores, requerendo a solução estatal através da prescrição de um comando capaz de prevenir ou restaurar a harmonia societária.
Dessa forma, constata-se que o ordenamento jurídico brasileiro disponibiliza instrumentos de tutela coletiva dos interesses no mercado de capitais, como é o caso da Ação Civil Pública para a tutela coletiva de investidores no mercado de valores mobiliários. Resta, entretanto, analisar a adequação e a efetividade do mencionado instrumento, a partir, sobretudo, dos institutos que o diferenciam em relação aos meios tradicionais e contribuem para o seu sucesso na tutela de direitos coletivos.
Interesses Tutelados
Conforme ficará demonstrado, a identificação das espécies de interesses tuteláveis através da Ação Civil Pública de que trata a Lei nº 7.913/89. Neste sentido, o artigo 1º, caput, do referido diploma normativo dispõe da seguinte forma:
“Art. 1º Sem prejuízo da ação de indenização do prejudicado, o Ministério Público, de ofício ou por solicitação da Comissão de Valores Mobiliários — CVM, adotará as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos ou obter ressarcimento de danos (grifo nosso) causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado [...]”
A partir da presente disposição normativa, registra-se dissenso doutrinário quanto às espécies de direitos e interesses que são passíveis de tutela pela via da Ação Civil Pública. Neste ponto, Fernanda Vicentini38 adverte que a referida lei e, portanto, a presente questão "deve ser analisada em consonância com as demais normas do ordenamento, para a extração da mens legis e indicação da relevância jurídica da matéria, que justifique a atuação ministerial”.
Para Antonio Gidi, a Lei nº 7.913/89 prevê o manejo da Ação Civil Pública para a tutela coletiva de direitos individuais homogêneos dos investidores no mercado de valores mobiliários, apesar de a referida expressão só ter sido concebida posteriormente pelo Código de Defesa do Consumidor39. Tal entendimento é corroborado por Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Nelson Nery Junior40, que identificam na ação em questão a primeira class action for damages, ou seja, a primeira ação coletiva de tutela de direitos individuais do sistema brasileiro.
Em que pese os referidos autores não deixem expressos os seus fundamentos, esse entendimento parece derivar da disposição expressa do artigo 1º da Lei nº 7.913/89, que fala em prejuízos e danos causados “aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado”, assim como da inspiração no sistema norte-americano de tutela coletiva, em que se destaca a class action for damages que se destina à tutela coletiva de direitos individuais homogêneos41.
Márcio Souza Guimarães42 vislumbra a possibilidade de o interesse transindividual societário tutelado por meio da Ação Civil Pública possuir caráter coletivo em sentido estrito. Tal ocorreria, por exemplo, quando o referido instrumento processual buscasse o ressarcimento de danos ocasionados à companhia pelos administradores, de forma que o resultado da condenação seria revertido em favor da sociedade e não dos investidores. Nesta hipótese, do ponto de vista destes últimos, o interesse protegido seria indivisível e titularizado por um grupo de pessoas ligadas por uma relação jurídica base.
Lionel Zaclis43 defende que o principal objetivo da ação de que trata a Lei nº 7.913/89 é o de fazer atuar a lei, predominando o objetivo repressivo sobre o simplesmente indenizatório. Ademais, segue o autor, embora os interesses protegidos sejam considerados individuais em sua fruição, sua massificação dá origem a um interesse difuso, pois indeterminado e indivisível, na responsabilização do causador do dano, justificando o seu tratamento coletivo.
O funcionamento do mercado de valores mobiliários transcende os interesses privados e imediatos de investidores e demais agentes, repercutindo, em última instância, na própria economia. Dessa forma, ao tutelar os direitos individuais homogêneos ou coletivos dos investidores, autorizando o Ministério Público a agir para evitar prejuízos e obter o ressarcimento de danos, o legislador estaria visando a proteger também e principalmente o funcionamento regular e a manutenção da confiança do público no mercado de valores mobiliários, que constitui num interesse difuso, pois referente a toda a coletividade.
Antes de concluir, deve-se ter em conta de que o inciso IV do artigo 1º da Lei de Ação Civil Pública44 inclui no seu âmbito de proteção, além daqueles especificamente mencionados nos demais incisos, “qualquer outro interesse difuso ou coletivo”, consistindo numa espécie de cláusula de abertura que autoriza o manejo do referido instrumento processual sempre que se tratar de direito coletivo em sentido amplo.
Portanto, à luz dos fundamentos da tutela coletiva, em especial da garantia do acesso à justiça, bem como das disposições legais e constitucionais atinentes, revela-se acertada a conclusão de acordo com a qual a Ação Civil Pública se presta à tutela dos interesses transindividuais societários, independentemente de serem classificados como difusos, coletivos em sentido estrito ou individuais homogêneos.
Corrobora este entendimento o fato, acima exposto, de que independentemente da classificação do interesse ou direito em questão, sempre será possível identificar um interesse difuso na aplicação da lei e na preservação da higidez do mercado, de modo que em uma única situação pode se constatar lesão a duas ou mais categorias de direitos coletivos em sentido amplo, sem que uma exclua a outra. Ademais, também conforme referido em tópico anterior, a identificação exata do tipo de interesse envolvido possui natureza eminentemente teórica, possuindo repercussão prática limitada a determinados institutos e fases processuais.
Legitimidade Ativa
O já citado artigo 1º da Lei nº 7.913/89, estabelece que cabe ao Ministério Público adotar “as medidas judiciais necessárias para evitar prejuízos ou obter ressarcimento de danos causados aos titulares de valores mobiliários e aos investidores do mercado”. Em outras, palavras, o referido texto legal confere legitimidade ativa ao Parquet para o ajuizamento da Ação Civil Pública para a tutela coletiva de investidores.
Parte da doutrina, contudo, considera que a referida disposição não foi recepcionada pela ordem constitucional vigente, uma vez que, de acordo com a Constituição Federal de 1988, o Ministério Público não estaria autorizado a atuar na defesa de direitos individuais homogêneos. Conforme se constata, esta discussão reflete, em grande medida, a controvérsia existente acerca dos interesses tutelados pela ação trazida pela Lei nº 7.913/89, exposta em tópico anterior. Ademais, o dissenso gravita em torno da interpretação das disposições constitucionais acerca das funções institucionais do Órgão Ministerial, que são utilizadas como fundamento pelas duas correntes doutrinárias.
Assim, o caput do artigo 127 da Constituição estabelece que ao Ministério Público incumbe a “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. O artigo 129, III, por sua vez, elenca como função institucional do Parquet a promoção do inquérito civil e da ação civil pública “para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. Cumpre mencionar ainda, que o inciso IX do mesmo artigo permite àquele órgão “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”.
Para Sergio Bermudes45, os “interesses sociais” a que se refere o art. 127 da Constituição não abrangem os direitos e interesses dos investidores, pois estes integrariam uma relação jurídica individual e privada. Segue o referido autor aduzindo que os direitos dos investidores não podem ser classificados como indisponíveis, pois a disponibilidade seria da essência dos títulos e valores mobiliários.
Na mesma linha, ainda de acordo com Sergio Bermudes46, os direitos e interesses nada teriam a ver com o patrimônio público e social mencionado pelo artigo 129, inciso III, da Constituição, “nem mesmo quando pertencem ao poder público, que será investidor como qualquer outro”. Ademais, ao mencionar “outros interesses difusos e coletivos”, a Constituição teria excluído do âmbito de legitimidade do Ministério Público a tutela de direitos individuais homogêneos.
De todo modo, ainda que se parta do pressuposto de que a ação de que trata a Lei nº 7.913/89 tutela tão somente os direitos individuais homogêneos, como parece ser o caso do referido autor, a legitimidade ativa conferida ao Ministério Público parece encontrar guarida no supracitado inciso IX, do artigo 129 da Constituição, uma vez que tal função lhe foi expressamente conferida pelo artigo 1º da Lei nº 7.913/89, em consonância com o artigo 6º, inciso XII da Lei Complementar nº 75/1993 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), que dispõe ser competência do Parquet “propor ação civil coletiva para defesa de interesses individuais homogêneos”.
No mesmo sentido, Fernanda Vicentini47 observa que a classificação dos direitos coletivos adotada pela doutrina majoritária atualmente, assim como a terminologia “direitos individuais homogêneos” foram introduzidas no ordenamento jurídico pátrio em 1990 pelo Código de Defesa do Consumidor. Assim, considerando que a Constituição vigente foi promulgada anteriormente, conclui-se que o fato de a referida expressão não constar do texto constitucional não impede o reconhecimento de que tais direitos foram “contemplados e protegidos pelo artigo 129, inciso III da Lei Maior, ainda que não expressamente”.
Lionel Zaclis48 considera que, apesar de os interesses protegidos pela Lei nº 7.913/89 sejam, a priori, individuais, a legitimação extraordinária do Ministério Público se justifica
“[...] tendo em vista o subjacente interesse social no correto funcionamento do mercado e, por conseguinte, no efetivo cumprimento das normas jurídicas que o disciplinam e, bem assim, a circunstância de que os interesses em jogo dizem respeito a uma massa de investidores de valores unitários inexpressivos, interesses esses que se consideram difusos enquanto não individualizados por força da habilitação decorrente da sentença condenatória”.
No mesmo sentido, Teori Albino Zavascki49 entende que a legitimação do Órgão Ministerial para a defesa dos direitos individuais dos investidores no mercado financeiro se justifica a partir da incumbência de defesa dos interesses sociais estabelecida pelo art. 127, caput, da Constituição. Para o autor, não obstante as posições individuais e particulares dos investidores possam não ter relevância social, quando consideradas coletivamente, passam a ser de interesse social em razão do que representam para o adequado funcionamento do sistema financeiro, que, nos termos do art. 192, caput, da Constituição, constitui-se em instrumento de promoção do desenvolvimento equilibrado do País e dos interesses da coletividade.
Convém ressaltar que, para além do funcionamento adequado das companhias e do sistema financeiro e econômico, a intervenção do Parquet neste domínio se justifica pela garantia do Acesso à Justiça, assim como pelo interesse coletivo na geração de empregos e riqueza, no recolhimento de impostos, bem como no relacionamento entre um grupo ou grupos de pessoas, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista jurídico50. Relevante, neste ponto, a advertência feita por Kazuo Watanabe51, para quem a atuação do Ministério Público na defesa de direitos individuais disponíveis encontra-se condicionada à constatação da relevância social do bem tutelado ou da tutela coletiva em si.
A seguir, importa analisar se a legitimidade ativa para propor a Ação Civil Pública de que trata a Lei nº 7.913/89 está restrita ao Ministério Público ou se estende a outros órgãos e entidades. Neste sentido, destaca-se a disposição do art. 3º do referido diploma legal, de acordo com a qual “à ação de que trata esta Lei aplica-se, no que couber, o disposto na Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985”.
O artigo 5º da Lei nº 7.347/85, por sua vez, confere legitimidade para propor a Ação Civil Pública não apenas ao Ministério Público, mas também à Defensoria Pública, à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios, às autarquias, às empresas públicas, às fundações, às sociedades de economia mista e, por fim, às associações que, a um só tempo tenham sido constituídas há, pelo menos, um ano e incluam, entre suas finalidades institucionais, a proteção do interesse coletivo pertinente.
A partir de uma interpretação conjunta e sistemática dos dois diplomas legais, que junto ao Código de Defesa do Consumidor, compõem um microssistema de processo coletivo, conclui-se que todos os órgãos e entidades elencados no art. 5º da Lei nº 7.347/85 são legitimados a propor a Ação Civil Pública para a defesa dos interesses de investidores. Em todo caso, devem ser observados os pressupostos processuais da representatividade adequada e da pertinência temática entre a atuação do suposto legitimado e o objeto da ação52.
Em sentido contrário, Lionel Zaclis53 pontua que o objetivo de uma lei, ao prever a aplicação de dispositivos de outra, é o de regular situações que não foram tratadas de modo expresso pela primeira. O artigo 1º da Lei nº 7.913/89 disciplina diretamente a legitimidade ativa, atribuindo-lhe exclusivamente ao Ministério Público. Portanto, não haveria como sustentar a aplicabilidade do artigo 5º da Lei nº 7.347/85 à ação coletiva para a defesa dos investidores. Por outro lado, o referido autor pondera que a questão em exame “deve levar em conta as realidades do mercado e não ficar encerrada em prescrições dogmáticas que acabam impedindo a efetivação das tutelas necessárias à proteção dos investidores”.
Desse modo, considerando que nem sempre o Parquet será um representante adequado e tendo em vista que a legitimação extraordinária, sobretudo no processo coletivo, é um importante instrumento de concretização do Acesso à Justiça, defende-se uma interpretação extensiva dos dispositivos pertinentes. Portanto, conclui-se que a legitimação ativa para a propositura da Ação Civil Pública, seja em defesa de interesses difusos, coletivos, ou individuais homogêneos é concorrente, pois todos os colegitimados do art. 5º da Lei nº 7.347/85 podem ajuizá-la e disjuntiva, pois não precisam, necessariamente, fazê-lo em litisconsórcio54.