Capa da publicação A nova lei autoriza realmente terceirização de toda atividade-fim?
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A lei da terceirização é exemplo de legislação simbólica?

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19/04/2017 às 12:38
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A Lei 13.429/17 não permite a terceirização em atividades-fim da empresa, contrariando o discurso feito na mídia em torno de sua aprovação. Diante deste fato, questiona-se, a partir da doutrina de Marcelo Neves, se a lei é exemplo de legislação simbólica.

RESUMO: O presente artigo objetiva inicialmente verificar se a nova "Lei da Terceirização" autoriza a terceirização ampla. Em seguida, a partir de uma resposta negativa, lança questionamentos quanto à possibilidade de enquadramento da Lei nº 13.429/2017 na categoria de "legislação simbólica", definição abordada sob o prisma da doutrina do jurista Marcelo Neves.

PALAVRAS-CHAVE: Lei da Terceirização; atividade-fim; interpretação lógico-sistemática; legislação simbólica; legislação-álibi.

ABSTRACT: The present article aims initially to verify if the new "Law of Outsourcing" authorizes the wide outsourcing. Then, based on a negative response, it raises questions about the possibility of framing Law 13.429/2017 in the category of "symbolic legislation", as defined in the Marcelo Neves's doctrine.

KEYWORDS: Law of Outsourcing; final activity; logical-systematical interpretation; symbolic legislation; alibi-legislation.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Terceirização de serviços: breve abordagem teórica; 2. A distinção entre terceirização e trabalho temporário; 3. A Lei nº 13.429/2017 autoriza a terceirização ampla?; 3.1.  Prevalência da resposta negativa; 4. A Lei nº 13.429/17, quanto ao tema da terceirização, seria então inútil; 5. A legislação simbólica na doutrina de Marcelo Neves; 6. Quanto ao tema da terceirização ampla ou irrestrita, pode-se dizer que a Lei nº 13.429/2017 é exemplo de legislação simbólica; 6.1. A Lei nº 13.429/2017 enquanto legislação-álibi; Conclusão; Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO

A Lei nº 13.429/2017, publicada em 31/03/2017 com vigência imediata, tem sido anunciada com alarde por políticos e parcela dos meios de comunicação como instrumento de propulsão da economia brasileira, por finalmente regulamentar de forma ampla e inovadora o disseminado fenômeno da terceirização de serviços.

A conclusão tem por premissa central e mais polêmica a autorização para a terceirização de atividades-fim das empresas, pretensamente contemplada na nova lei, que assim superaria a restrição trazida pela Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho.

De acordo com o pensamento disseminado nos meios midiáticos, a nova lei torna lícita a terceirização das atividades finalísticas de uma empresa, aquelas consideradas essenciais para o funcionamento do empreendimento.

Antes, apenas atividades periféricas ou "atividades-meio" poderiam ser desempenhadas por trabalhadores pertencentes aos quadros das empresas prestadoras de serviço. Agora, alega-se, uma escola poderia terceirizar não apenas zeladores e seguranças, mas também todos os professores e diretores, sem com isso ofender o ordenamento jurídico e correr o risco de ver o vínculo empregatício formado diretamente com o tomador dos serviços.

Entretanto, a leitura atenta da Lei nº 13.429/2017, associada à interpretação mais afinada com a Constituição e os princípios trabalhistas, demonstra que a regulação da "terceirização de serviços" não atinge as dimensões propaladas. Arrisca-se a afirmar que, na realidade, não há muitas mudanças significativas, permanecendo incólume o regramento da Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho.

Adotada esta premissa, questiona-se se a aprovação de lei maculada por tal pecha de ineficácia se deu por descuido do legislador, ou se há preponderância da função simbólica na atividade legiferante que a produziu.

A questão passa a ser apreciada, então, sob o prisma da teoria da legislação simbólica, abordada a partir dos ensinamentos do jurista Marcelo Neves.

Ao final, são apresentadas impressões e inquietações sobre o tema, com a singela pretensão de estimular o debate.


1. TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS: BREVE ABORDAGEM TEÓRICA

Para Maurício Godinho Delgado, a terceirização trabalhista "é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente" (destaques no original)[1].

O doutrinador explica que, no processo terceirizante, a clássica relação bilateral entre empregado e empregador sofre a interferência da terceiro, tornando-se trilateral. Desta forma, a relação econômica de trabalho passa a ser firmada com a empresa tomadora, enquanto a relação jurídica empregatícia se conforma com a empresa intermediadora[2].

Haverá terceirização em sentido amplo sempre que uma primeira empresa utilizar a força de trabalho de empregados de uma segunda, remunerando a prestação de serviços diretamente a esta, e não aos trabalhadores, com fundamento em contrato de natureza civil.

Essa espécie de "locação de serviços" tem por fundamento originário atender às necessidades do capitalismo pós-industrial, que demanda maior especialização e externalização das atividades da empresa[3] que se pretende competitiva. No panorama da globalização, seu escopo é propiciar a prestação de serviços com maior eficiência, tornando o empreendimento mais dinâmico e menos custoso.

Na maioria dos casos, é relação do tipo permanente, já que a atividade subcontratada costuma ser contínua, como é o caso das empresas que fornecem serviços de conservação e limpeza (Súmula 331 do TST, III). É possível, porém, que a relação seja transitória, a exemplo do que se dá no trabalho temporário (Súmula 331, I), no qual a integração do trabalhador à dinâmica da tomadora ocorre apenas por certo período em que a substituição ou acréscimo de mão de obra se fazem necessários.

Outra classificação, consagrada na Súmula 331 do TST, distingue a terceirização quanto ao seu objeto em "atividade-fim" e "atividade-meio". No primeiro caso, o terceirizado desempenha atividades essenciais do tomador, que integram o núcleo do empreendimento (ex: engenheiros em uma empresa de engenharia; professores em uma escola; atendentes de caixa em um banco). No segundo, a atividade terceirizada é periférica, ainda que também importante para o bom desempenho do empreendimento, como é o serviço de conservação e limpeza em uma empresa de engenharia, uma escola ou um banco.

Por fim, a terceirização pode ser ainda lícita ou ilícita.

A primeira é a modalidade autorizada pelo ordenamento jurídico, que por sua vez tinha como principal baliza a Súmula 331 do TST até o advento da Lei nº 13.429/2017. Ilícita seria aquela que desrespeita os parâmetros lançados pela súmula aludida, concepção que hodiernamente passa a compreender - também - o desrespeito às regras da Lei nº 6.019/74, com a nova redação dada pela Lei nº 13.429/2017.

Maurício Godinho Delgado, em obra publicada antes da nova lei, identificava quatro situações-tipo de terceirização lícita: a) trabalho temporário que atenda aos requisitos da Lei nº 6.019/74 (Súmula 331, I); b) atividades de vigilância, regidas pela Lei nº 7.102/83 (Súmula 331, III, ab initio); c) atividades de conservação e limpeza (Súmula 331, III); d) serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador[4].

Combinando as duas últimas classificações, é interessante registrar que, já antes do advento da nova lei, o ordenamento acolhia casos de terceirização de atividade-fim lícita, como é o exemplo do trabalho temporário, regulado pela Lei nº 6.019/74.

Ainda que se apresente muitas vezes de forma lícita e com o legítimo fundamento de modernização das relações econômicas, a prática terceirizante tem sido adotada, com frequência, como mero atalho para o desrespeito de direitos fundamentais do trabalhador.

Por tal razão, a doutrina juslaboral adota, majoritariamente, postura de censura em relação à terceirização trabalhista, justificável diante da constatação fática de que o fenômeno está frequentemente atrelado à precarização do trabalho e às fraudes trabalhistas. 

Há, porém, vozes que se levantam em defesa da prática, geralmente fundadas na necessidade de adaptar as relações trabalhistas à nova realidade da economia global.

É nesse sentido a opinião de José Eduardo de Resende Chaves Júnior e Marcus Menezes Barberino Mendes, argumentando que “a empresa contemporânea que não se organizar numa estrutura reticular, perde agilidade, criatividade, produtividade, enfim, a empresa-pirâmide não consegue mais competir com a empresa-rede”. Por isso, estes juristas defendem a autorização da prática, pois “com uma terceirização regulada, todos se beneficiam e todos se responsabilizam pelo trabalho e pelo risco econômico da atividade” [5].

É de se destacar, contudo, que mesmo defensores da terceirização costumam ressaltar que esta exige limites, sob pena de se degenerar em mera mercantilização da mão de obra, com redução do patamar mínimo civilizatório nas relações de trabalho, notadamente no que tange a salário e proteção da saúde e segurança do trabalhador.

Chaves Júnior e Barberino Mendes se manifestam nesse sentido, focando na necessidade de regulação do fenômeno:

“O problema de uma externalização desregulada, entretanto, é o de transformar a terceirização em merchandage, ou seja, o de transformar o ser humano trabalhador em simples objeto ou mercadoria. Ao fim e ao cabo, o ímpeto pelo aumento de criatividade e produtividade da empresa se acomoda, pois os excedentes obtidos com a pura e simples redução da remuneração do empregado acaba satisfazendo. Perdem com isso os trabalhadores, sem dúvida, mas também o Brasil, em competitividade. Ganhar competitividade em cima dos salários é uma medida que só aumenta a espiral de desqualificação do trabalhador”[6].           

A necessidade de regulação da terceirização é, aliás, um ponto reconhecido por ambos os lados da contenda. Seja para restringir, seja para ampliar o fenômeno, há certo consenso de que há necessidade de lei para tratar do tema, sendo a Súmula 331 do TST um mero paliativo, ainda que elogiável pelo esforço em superar a inércia do legislador e pela razoabilidade das balizas fornecidas pela jurisprudência.

A questão que toca ao presente texto não é a valoração do fenômeno. Não se pretende, aqui, defender ou condenar o processo terceirizante, ainda que se concorde com as críticas que lhe são feitas. O que se perquire é a eficácia da nova lei na missão de regulamentá-lo. Mais precisamente, questiona-se a consistência da alegação disseminada de que a nova lei autoriza a terceirização irrestrita, já que, em uma primeira análise, tal conclusão parece não se coadunar com o texto legal.           


2.A DISTINÇÃO ENTRE TERCEIRIZAÇÃO E TRABALHO TEMPORÁRIO

Antes de adentrar à análise da Lei nº 13.429/2017, é preciso frisar a diferença entre “terceirização” e “trabalho temporário”, vez que a adequada interpretação da lei toma tal distinção como premissa básica.          

Como já apontado rapidamente no tópico anterior, a terceirização corresponde a gênero, sendo o trabalho temporário espécie de terceirização (considerada esta em seu sentido amplo).

De fato, no trabalho temporário há a triangulação da relação de trabalho, com a participação do trabalhador, da empresa tomadora e da empresa de trabalho temporário, no que se assemelha a outras modalidades de terceirização.

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Alguns aspectos, porém, conferem especificidade ao trabalho temporário: a) existência de previsão legal desde a década de setenta (Lei nº 6.019/74), enquanto a terceirização somente foi regulamentada com a nova lei; b) trabalho a termo (com prazo determinado) em relação à tomadora; c) possibilidade de terceirização de atividade-fim, como já antes reconhecido, e agora ratificado pela nova lei (art. 9º, §3º da Lei nº 6.019/74, com nova redação); d) restrição quanto às hipóteses de terceirização, sendo cabível apenas para substituição temporária de mão de obra ou para atender a demanda extra de serviço, de natureza meramente complementar (art. 2º da Lei nº 6.019/74, com nova redação).

O professor e advogado Raphael Miziara aborda o tema com fundamento na distinção entre terceirização de serviço e terceirização de trabalhadores, enquadrando o trabalho temporário na segunda hipótese. Em suas palavras:

“Nessa diretriz, a terceirização de trabalhadores objetiva a contratação de trabalhadores e revela a possibilidade de uma empresa contratar com outra empresa para que esta lhe forneça a força laboral de qualquer trabalhador singularmente considerado. É o que a corrente anterior chama de ‘intermediação de mão de obra’. Já a terceirização de serviços é aquela na qual uma empresa, visando concentrar esforços em sua atividade-fim, contrata outra empresa, entendida como periférica, para lhe dar suporte em serviços especializados. É o que a corrente anterior chama de terceirização, pura e simplesmente” (grifos no original) [7].

Nessa linha, ao analisar o projeto que originou a Lei nº 13.429/2017, conclui o professor que o texto em questão busca regular dois tipos de terceirização, “a produzida pelo trabalho temporário (terceirização de trabalhadores ou intermediação de mão de obra)” e aquela mais abrangente, “a geral, advinda da prestação de serviços a terceiros (terceirização de serviços)” (grifos no original) [8].

A partir destes apontamentos e do conceito trazido por Maurício Godinho Delgado para "terceirização trabalhista", defende-se aqui que a relação existente entre as expressões não é de sinonímia. A terceirização é fenômeno amplo, caracterizado pela triangulação da relação trabalhista, enquanto o trabalho temporário é modalidade específica de relação triangular, com várias singularidades que a distinguem de outras hipóteses como a terceirização de serviços.

Portanto, é possível falar na existência de um fenômeno mais amplo, a “terceirização trabalhista” ou apenas “terceirização”, caracterizada pela triangulação da relação de trabalho, que abarca as categorias “terceirização de serviços” e “terceirização de trabalhadores”, sendo o “trabalho temporário” um exemplo desta última modalidade.

Independentemente da terminologia adotada, o relevante é perceber que os institutos são distintos, submetidos a regimes jurídicos também diversos.

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Sobre o autor
Bruno Ítalo Sousa Pinto

Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG, em Direito do Trabalho e Previdenciário na Atualidade pela PUC-MG e em Direito Civil e Processual Civil pela UCDB-MS. Bacharel em Direito (UFPI). Analista Judiciário, desempenhando a função de Assistente de Juiz no TRT da 16ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Bruno Ítalo Sousa. A lei da terceirização é exemplo de legislação simbólica?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5040, 19 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57102. Acesso em: 26 abr. 2024.

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