Capa da publicação A nova lei autoriza realmente terceirização de toda atividade-fim?
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A lei da terceirização é exemplo de legislação simbólica?

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19/04/2017 às 12:38
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4. A LEI Nº 13.429/17, QUANTO AO TEMA DA TERCEIRIZAÇÃO, SERIA ENTÃO INÚTIL?

Resta em favor da corrente que defende a autorização da terceirização ampla pela Lei nº 13.429/17 a alegação de que a posição contrária esvazia o sentido do novo instrumento legal, no que tange à regulação do fenômeno em tela. Isso porque o regime jurídico trazido pelo diploma não difere essencialmente daquele estabelecido há tempos pela Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho.

Sabe-se que a interpretação da lei deve buscar sentido que lhe confira máxima efetividade. Se a nova lei em nada inova no campo da terceirização, qual a razão de sua elaboração?

A primeira resposta está na necessidade de regulação deste fenômeno. A Lei nº 13.429/17 preenche lacuna há muito sentida no ordenamento jurídico, suplementada pela Súmula nº 331 do TST apenas de forma acessória. O desempenho de função inegavelmente legislativa pelo Poder Judiciário nesse caso sempre foi motivo de críticas e controvérsias, sendo a matéria inclusive objeto de Recurso Extraordinário, com repercussão geral reconhecida (RE 958.252), e Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 324) junto ao Supremo Tribunal Federal, ainda pendentes de julgamento.

Portanto, o advento da lei confere maior substância ao teor da Súmula nº 331 do TST, que passa a ter sua função reajustada, agora desempenhando papel interpretativo, mais condizente com a função primária do Poder Judiciário.

Se antes a súmula inovava no ordenamento quando proibia a terceirização irrestrita, ainda que fundada em argumentos substanciosos,  agora passará a ser aplicada para explicitar a ilicitude desta prática, já que seus termos são mais claros do que o da legislação.

A Lei nº 13.429/17, portanto, desempenha importante missão ao estabilizar o regime jurídico da terceirização de serviços, ainda que de modo falho em razão das pontas soltas que deixou.

A segunda finalidade da produção normativa é compreendida a partir de sua função político-ideológica. Refere-se, aqui, ao seu importante papel na tentativa de conferir maior estabilidade política ao governo, na medida em que a lei atende a pressões de influentes grupos sociais.

A existência de um escopo político na lei é aspecto normal, tendo em vista que a relação entre Direito e Política é dialógica. No presente caso, porém, é possível questionar se a função política se sobrepõe à finalidade jurídico-normativa, o que pode conferir à "Lei da Terceirização" a condição de legislação simbólica.           


5. A LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA NA DOUTRINA DE MARCELO NEVES

O tema da legislação simbólica foi tratado com maestria pelo jurista Marcelo Neves, Professor Titular de Direito Público da Universidade de Brasília, em sua influente obra "A Constitucionalização Simbólica"[26].

A tese é inserida no contexto da relação entre os sistemas político e jurídico, desenvolvida a partir do estudo de diversos autores da teoria do direito e da ciência política, entre eles Niklas Luhmann.

Este eminente sociólogo jurídico, em sua Teoria dos Sistemas, compreende que a sociedade moderna é constituída por subsistemas sociais especializados, a exemplo da Política e do Direito,  cada um deles fechado do ponto de vista operacional e organizado a partir de seu próprio código.

É possível, porém, que alguns fenômenos gerem reações mútuas, sendo codificados por cada sistema de modo particular, a partir de uma linguagem própria, em uma relação de acoplamento estrutural. É nesse contexto que Luhmann entende a Constituição, por exemplo, como o acoplamento estrutural entre os subsistemas do Direito e da Política.

Nessa relação, enquanto "o Direito parece depender da Política para dotar de legitimidade suas normas", a "Política se utiliza do Direito para diversificar o uso do poder politicamente concentrado"[27]. 

Marcelo Neves, partindo da Teoria dos Sistemas, dentre outras, aborda em sua obra o significado social e político de textos constitucionais, em contraposição à sua concretização normativo-jurídico. Desenvolve, pois, o tema da hipertrofia da função simbólica de diplomas constitucionais, em contraste com a reduzida concretização jurídica destes. O foco é a constitucionalização simbólica, entendida como realidade em que se observa a hipertrofia da função político-simbólica em relação à eficácia normativo-jurídico da Constituição (sobreposição do subsistema político sobre o jurídico).

O tema da constitucionalização simbólica se insere em contexto mais amplo, o da legislação simbólica, que é tratada pelo autor no primeiro capítulo da obra referida.

Após discorrer, sob diferentes prismas, acerca dos conceitos de "símbolo", "simbólico" e "simbolismos", Marcelo Neves adota o termo "simbólico" para indicar a dimensão em que o discurso conotativo é mais forte do que o discurso denotativo, ou seja, o sentido manifesto é menos importante do que o latente[28]. Nas palavras do jurista, o “agir simbólico é conotativo na medida em que ele adquire um sentido mediato e impreciso que se acrescenta ao seu significado imediato e manifesto, e prevalece em relação a esse” [29].

Adotada tal premissa, o professor da UNB desenvolve seu conceito de "legislação simbólica" nos seguintes termos:

“(...) Considerando-se que a atividade legiferante constitui um momento de confluência concentrada entre sistemas político e jurídico, pode-se definir a legislação simbólica como produção de textos cuja referência manifesta à realidade é normativo-jurídica, mas que serve, primária e hipertroficamente, a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico”[30].

Em uma lei, as funções político-simbólica e normativo-jurídica estão geralmente presentes em equilíbrio. Diferentemente desta situação ideal, na legislação simbólica há predomínio da função simbólica da atividade legiferante e da própria lei, sobrepujando a função jurídico-instrumental.

Avançando no estudo do tema, Marcelo Neves adota a tipologia de Kindermann, que propôs um modelo tricotômico, baseado no conteúdo da legislação simbólica. A classificação considera que tais leis podem pretender: a) confirmar valores sociais; b) demonstrar a capacidade de ação do Estado; c) adiar a solução de conflitos sociais através de compromissos dilatórios[31].

Na primeira categoria, a legislação simbólica é utilizada para a confirmação de valores sociais de um grupo dominante, em superação a valores de outros grupos. A lei, nesse caso, tem como função precípua a consagração de valores específicos, simbolizando sua superioridade em relação aos demais, ainda que não apresente verdadeira capacidade para regular a vida social de acordo com os valores que alcançaram a “vitória legislativa”. Sua eficácia normativa, portanto, é secundária.

Um dos exemplos citados por Neves é o da “lei seca” nos Estados Unidos, que teria servido mais para simbolizar a vitória dos valores de protestantes/nativos em detrimento de católicos/emigrantes, do que propriamente para evitar o consumo de bebidas alcoólicas[32].

Especialmente relevante para o presente estudo é a segunda categoria, da “legislação-álibi”, utilizada para demonstrar a capacidade de ação do Estado em situações de crise social. Nesses casos, o Estado legisla com a intenção de transmitir uma mensagem positiva à sociedade, tranqüilizando-a, ainda que a lei resultante tenha reduzida ou nenhuma eficácia.

A “legislação-álibi” se apresenta como resposta (“reação substitutiva”) à pressão social sofrida pelo Estado, produzindo, na sociedade, a confiança quanto aos sistemas jurídico e político. Conforme síntese de Marcelo Neves, “através dela o legislador procura descarregar-se de pressões políticas ou apresentar o Estado como sensível às exigências e expectativas dos cidadãos” [33]. Nesse caso, a lei é utilizada como se fosse capaz, por si só, de alterar a realidade de forma direta, quando se sabe que “a resolução dos problemas da sociedade depende da interferência de variáveis não normativo-juridicas”[34].

No Brasil, o exemplo apontado pelo autor é o da legislação penal mais rigorosa como forma de resposta à escalada da criminalidade, tendo em vista que o problema “não decorre da falta de legislação tipificadora, mas sim, fundamentalmente, da inexistência de pressupostos socioeconômicos e políticos para a efetivação da legislação penal em vigor” [35].

Ainda sobre a “legislação-álibi”, Neves destaca que ela pode servir como “mecanismo de exposição simbólica das instituições”, estando relacionada, de forma mais genérica, “à exposição abstrata do Estado como instituição merecedora da confiança pública” [36].

Em tom crítico, Marcelo Neves aduz que

“A legislação-álibi decorre da tentativa de dar a aparência de uma solução dos respectivos problemas sociais ou, no mínimo, da pretensão de convencer o público das boas intenções do legislador. Como se tem observado, ela não apenas deixa os problemas sem solução, mas além disso obstrui o caminho para que eles sejam resolvidos”[37].

Por fim, a terceira categoria é a da legislação como fórmula de compromisso dilatório. Neste tipo, a legislação simbólica nasce do acordo entre forças políticas que tem por principal efeito a postergação da resolução do problema. O compromisso dilatório em momento de acirramento de embates políticos somente é possível porque há uma perspectiva de ineficácia da lei, o que significa, na prática, que a solução do conflito social subjacente é transferida para momento futuro e indeterminado.

O caso referido pelo autor é o da Lei norueguesa sobre empregados domésticos (1948), que tutelava direitos trabalhistas sem prever sanções efetivas para os empregadores que os descumprissem, gerando nestes a expectativa quanto à sua ineficácia. Assim, empregados e empregadores se satisfizeram com a lei, abrandando o conflito político, mas a questão dos direitos dos trabalhadores domésticos foi postergada para o futuro[38].


6. QUANTO AO TEMA DA TERCEIRIZAÇÃO AMPLA OU IRRESTRITA, PODE-SE DIZER QUE A LEI Nº 13.429/2017 É EXEMPLO DE LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA?

O imediato enquadramento da “Lei da Terceirização” no campo da legislação simbólica, quando o novo instrumento normativo ainda causa perplexidades, é tarefa difícil e arriscada, por exigir apurada análise política e jurídica em um contexto turvo e indefinido. Corre-se o risco de alcançar conclusões prematuras, sujeitas ao sobrepujamento por circunstâncias fáticas não percebidas na complexa conjuntura política atual.

Ciente de tais complicações, o presente trabalho não pretende trazer resposta definitiva para o questionamento, mas registrar dúvidas e inquietações que possam inspirar análises mais apuradas sobre o assunto.

Perquire-se, pois, se é possível apontar uma tendência à hipertrofia da função político-ideológica na Lei nº 13.429/17, em detrimento da concretização normativa do texto legal, principalmente no que se refere à regulação da terceirização ampla.

A inquietação se funda, primeiro, na percepção de que o diploma possui baixa densidade jurídico-normativa quando trata da terceirização de serviços em atividades essenciais, sendo silente nesse ponto, o que fortalece o entendimento de que tal modalidade de terceirização permanece vedada no ordenamento jurídico, como demonstrado no tópico 3.1.

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Diante da dúvida razoável quanto à licitude ou não desta prática, vislumbra-se a tendência de que boa parte dos tomadores de serviços decida, por cautela, evitá-la no presente momento, pelo menos formalmente. De outra ponta, é previsível que os tomadores de serviços que decidam se arriscar tenham dificuldades quando acionados na Justiça do Trabalho, já que a consistência dos argumentos pela ilicitude da terceirização de atividades-fim certamente influenciará decisões desfavoráveis a quem a pratica.

Aliás, em interessante observação, o professor Gustavo Filipe Barbosa Garcia prenuncia que qualquer lei chancelando a terceirização de atividades-fim tende a sofrer forte resistência na jurisprudência pátria. A previsão parte da constatação de que outras leis que autorizam a prática na Administração Pública (Lei nº 9.472/1997 e Lei nº 8.987/1995) têm sido desconsideradas em julgados do TST, que aplicam a Súmula nº 331 para decidir pela ilicitude da terceirização de atividades nucleares mesmo nesses casos em que a lei a autoriza expressamente[39].

Para Barbosa Garcia, como a jurisprudência é responsável pela interpretação e aplicação da lei no caso concreto, "a tão debatida mudança legislativa sobre a terceirização pode não ter a repercussão prática que se supõe, ou mesmo todo o alcance imaginado"[40].

Se qualquer lei voltada para a regulação da matéria se submete a resistência que pode culminar em baixa eficácia, com maior razão se espera pouca eficácia de lei que, ainda por cima, regula o tema de forma precária.

A tendência, pois, é que a norma padeça tanto de ineficácia autônoma (falta de observância voluntária da lei) quanto de ineficácia heterônoma (falta de observância por imposição de terceiro) no que tange à autorização da terceirização irrestrita[41].

É plausível antever, então, um déficit de concretização jurídico-normativa quanto ao tema, isto é, uma provável falta de vigência social da norma que se distancia do otimismo dos anúncios efusivos feitos por membros do governo nos meios de comunicação.

Se, de um lado, aponta-se para o possível esvaziamento da função jurídico-instrumental da "Lei da Terceirização" no que se refere à regulação da terceirização ampla, de outro lado divisa-se alguns sinais de hipertrofia da sua função político-ideológica.

Como se sabe, a regulação da terceirização ampla de serviços foi anunciada insistentemente pelo governo como importante parcela de um conjunto de medidas ("reformas") voltadas para a recuperação da economia, geração de empregos, saneamento da dívida pública e superação da crise política, entre elas as reformas trabalhista (PL nº 678/2016) e previdenciária (PEC nº 287/2016).

A terceirização ampla tem sido defendida como ação do Estado voltada para o enfrentamento "da maior recessão da história", sendo sua aprovação anunciada como fruto de "uma quase ousadia" do governo[42]. O discurso é no sentido de ser necessário "formalizar o emprego e caminhar no rumo da terceirização"[43].

Como se percebe, a aprovação da Lei nº 13.429/17 possui aguda dimensão político-ideológica, na medida em que tem sido utilizada pelos governantes como sinal do seu esforço para impulsionar a economia e gerar empregos, auxiliando no enfrentamento da grave crise que assola o país.

A existência deste viés político-ideológico não é, por si só, um problema. Toda lei possui alguma função simbólica e a luta pelo soerguimento da economia é programa governamental absolutamente legítimo e necessário.

A situação torna-se problemática, contudo, quando o efeito latente da legislação (legitimação do governo) torna-se mais importante do que seu esvaziado efeito manifesto (pretensa autorização da terceirização ampla, soerguimento da economia, geração de empregos, proteção de direitos trabalhistas, etc.).

A suspeita quanto ao superdimensionamento da função político-valorativa no presente caso é estimulada por algumas situações fáticas, como as referidas a seguir:

a) A Lei nº 13.429/17 resultou de projeto de lei que tramitava no Congresso Nacional há quase 20 anos (PL 4.302/1998) e foi “retirado da gaveta” para atender a uma demanda social considerada urgente pelo governo. Este fato leva à presunção de que a lei não foi gestada para atender às demandas sociais hodiernas, que certamente não são as mesmas de 1998. A lei já nasceu “velha”, o que pode reduzir seu potencial para obter vigência social, reforçando o argumento quanto à esvaziamento da função instrumental.

No campo propriamente da função simbólica, o fato indica que a opção pelo PL 4.302/1998 decorreu da necessidade de apresentar resposta pronta e rápida a uma demanda de parcela da sociedade, tendo em vista que o projeto em questão já se encontrava em fase adiantada do processo legislativo, evitando todo o desgaste político gerado pela longa tramitação de um novo projeto mais adequado.

Portanto, é plausível a inferência de que sua aprovação em momento oportuno, na atual conjuntura de crise econômica e política, se deu menos por sua efetiva capacidade de autorizar a terceirização irrestrita e solucionar problemas sociais, e mais em razão de sua aptidão para simbolizar uma atuação imediata dos governantes no sentido de atender às pressões do grupo social dominante.

b) Os legisladores aparentemente aprovaram a Lei nº 13.429/17 conscientes de suas falhas e lacunas, tanto que cogitaram, mesmo antes da sanção presidencial, a possibilidade de sanar seus vícios por meio de outras (futuras) leis, a exemplo do PL nº 4.330/2004 (atual PLC nº 30/2015 no Senado) ou do projeto da “Reforma Trabalhista” (PL nº 6.787/2016)[44]. Alguns meios de comunicação têm noticiado que, em razão de resistência sofrida pela proposta no Senado, avalia-se também a possibilidade de preencher as lacunas da lei por meio de medida provisória[45].

A desconfiança foi recentemente fortalecida pelo PL 6.787/16 (Reforma Trabalhista), já que o texto do Substitutivo apresentado na Câmara dos Deputados contém proposta de alteração do art. 4º-A da Lei nº 6.019/74, que havia sido incluído pela Lei nº 13.429/17, para que o dispositivo passe a autorizar a terceirização da atividade principal da empresa tomadora.

Segundo o parecer da Comissão Especial, a mudança veio para "definir o que seja a prestação de serviços a terceiros, permitindo a sua contratação para a execução de quaisquer de suas atividades". O legislador acaba por reconhecer, portanto, que a autorização inexistia na redação original trazida pela nº 13.429/17.

Tais circunstâncias sugerem que, no processo legislativo da Lei da Terceirização, a sua higidez enquanto instrumento normativo pode ter sido preterida em prol de sua aptidão como instrumento político-ideológico.

Nesse ponto, é importante esclarecer que a atuação consciente e deliberada do legislador não é elemento essencial da definição de legislação simbólica, até porque, na complexidade das relações sociais, o próprio legislador pode não ter plena percepção do significado de sua atuação.

Nas palavras de Marcelo Neves:

"Embora retorne a esse problema mais à frente, cabe adiantar que não concebo a legislação simbólica em termos do modelo simplificador que a explica ou a define a partir das intenções do legislador. Evidentemente, quando o legislador se restringe a formular uma pretensão de produzir normas, sem tomar nenhuma providência no sentido de criar os pressupostos para a eficácia, apesar de estar em condições de criá-los, há indício de legislação simbólica. Porém, o problema da legislação simbólica é condicionado estruturalmente, sendo antes de se falar em interesses sociais que a possibilitam do que de vontade ou intenção do legislador. Por outro lado, não cabe, no sentido oposto, distinguir a legislação simbólica da legislação instrumental com base na diferença entre, respectivamente, efeitos não-tencionados e tencionados, pois nada impede que haja legislação intencionalmente orientada para funcionar simbolicamente. Parece-me sim adequada a contraposição dos efeitos latentes da legislação simbólica aos efeitos manifestos da legislação instrumental (...)"[46].

Vê-se que a consciência do legislador quanto à precariedade da lei enquanto instrumento normativo não é imprescindível para a configuração da sua natureza simbólica. Entretanto, se confirmada, pode reforçá-la.

A hipótese aqui ventilada assume que o legislador pretendeu, de fato, autorizar a terceirização ampla ou irrestrita. Contudo, em razão de dificuldades envolvidas na aprovação de outra lei com maior grau de instrumentalidade, apressou-se em aprovar texto legal inepto, sem aptidão para atingir os fins colimados, na esperança, talvez, de conferir-lhe eficácia por meio de reformas posteriores, ou através do fortalecimento do discurso em torno da existência de aprovação da terceirização irrestrita no texto atual.

Tal pressa pode ser explicada pela hipertrofiada função político-ideológica da Lei nº 13.429/17, razão pela qual seria possível falar em legislação simbólica, independentemente da real vontade ou intenção do legislador de autorizar, de forma eficaz, a subcontratação de atividade-fim nas empresas.

c) As benesses associadas à Lei nº 13.429/17, principalmente aquelas vinculadas à terceirização ampla, são duvidosas. Ainda que a prática tivesse sido autorizada pela lei - posição com a qual não se concorda - a efetividade da terceirização irrestrita como medida de combate ao desemprego e estímulo ao crescimento econômico é rechaçada por parcela dos estudiosos[47]. A fragilidade da tese governista não se reflete, porém, no discurso feito em torno dela, que não revela qualquer hesitação.

Em relação a este terceiro ponto, frise-se que, conforme doutrina de Marcelo Neves, a incapacidade da lei para atingir sua finalidade (não implementação do "programa finalístico") diz respeito ao conceito de "inefetividade", enquanto a "ineficácia" se refere à não observância, aplicação, execução ou uso da lei, isto é, reflete a não "concreção do vínculo 'se-então' abstrata e hipoteticamente previsto na norma legal"[48].

Para o jurista, a nota característica da legislação simbólica é a ineficácia normativa, sendo insuficiente a mera inefetividade. Caso a lei seja eficaz, não poderá ser enquadrada como legislação simbólica, ainda que inefetiva.

No presente caso, porém, a referência à potencial inefetividade da lei serve para reforçar a suspeita quanto à hipertrofia da função simbólica, pois aponta para o descompasso entre a fragilidade da aptidão para atingir a finalidade oficialmente propalada (promover estímulo econômico e empregabilidade) e a força desproporcional do discurso que defende tal tese.

6.1. A LEI Nº 13.429/2017 ENQUANTO LEGISLAÇÃO-ÁLIBI

Como se nota, os aspectos citados até aqui podem conferir à Lei nº 13.429/17 os contornos de legislação simbólica, do tipo "legislação-álibi". Nessa perspectiva, tanto o processo legiferante quanto seu resultado (a própria lei) estariam focados na pretensão de demonstrar a capacidade de ação do Estado em face de um problema grave (crise econômica e política), em detrimento da aptidão da regulação normativa para solucionar as questões que afligem a sociedade.

Em relação à classificação da Lei da Terceirização como legislação-álibi - tratada aqui como hipótese a ser testada -, é pertinente fazer dois esclarecimentos:

a) A condição de legislação simbólica é mais perceptível quanto ao tema da terceirização de atividades-fim das empresas, diante do déficit instrumental que a lei aparenta ter nesse ponto.

Entretanto, é válido ponderar se a natureza de legislação-álibi poderia ser atribuída a todos os dispositivos que cuidam do regime jurídico da terceirização de serviços. Primeiro, por não trazer muitas inovações na matéria em comparação ao regime criado pela Súmula nº 331 do TST - a não ser o importante aspecto da regulação do fenômeno passar a ser feita por meio do instrumento mais adequado (a lei). Segundo, por ser duvidosa sua aptidão para impulsionar a economia e a empregabilidade no Brasil, como referido.

A questão, contudo, não merece prosperar. A lei tende a ser eficaz quanto à regulação da terceirização em atividades-meio, por ter sido menos lacunosa nesse ponto e por receber o suporte da jurisprudência. Nesta circunstância, mesmo inefetiva, a lei não poderia ser classificada como legislação simbólica, porque eficaz.

Ademais, Marcelo Neves adverte que o fato de uma lei nova regular matéria já suficientemente tratada por outro diploma normativo não lhe confere, só por isso, a natureza de legislação simbólica, já que pode servir para conferir maior efetivação ao respectivo conteúdo normativo[49].

Por trazer a previsão legal inaugural de um fenômeno (terceirização de serviços na atividade-meio), a classificação como legislação simbólica da Lei nº 13.429/17 neste ponto não é condizente com seu caráter instrumental.

Não se ignora, contudo, ser possível, ainda assim, apontar certo superdimensionamento do discurso conotativo, já que o legislador vem atribuindo à lei grande poder de inovação que não condiz com seu teor.

b) Há a expectativa de que a regulação da terceirização de serviços seja complementada por meio de leis futuras, no propósito de solucionar lacunas e incoerências da norma. Caso ocorra, a reforma poderá aprimorar a concretização normativa do texto legal, reduzindo o possível desnível entre a função instrumental e a função simbólica da lei.

Contudo, o melhoramento não afastaria a natureza simbólica do ato legiferante, apreendida no momento da sua produção. Muito pelo contrário, o ratificaria, por evidenciar que a aprovação da lei se deu em razão de um senso de oportunidade, diante da gravidade da situação econômica e política do país. Em outras palavras, reforçaria o indício de que uma lei reconhecidamente lacunosa foi aprovada naquele momento porque não havia clima político nem tempo para elaborar outra, diante da urgente demanda por seus efeitos pacificadores.

Percebe-se ser admissível, pois, o entendimento de que a Lei nº 13.429/17, no que tange ao tema da terceirização irrestrita, tem contornos da legislação-álibi, ou, no mínimo, apresenta grande potencial para desenvolver o protagonismo da função simbólica (legitimação do governo) em detrimento da função instrumental (autorização da terceirização em atividades essenciais das empresas) .

Trata-se de tese a ser explorada pela doutrina, que poderá ratificá-la ou afastá-la principalmente a partir da análise do nível de eficácia e vigência social que a lei venha a atingir.

Contudo, caso se confirme, tal classificação facilitará o diagnóstico de algumas vicissitudes da Lei nº 13.429/17, comuns à categoria aludida:

a) A legislação álibi não apenas deixa os problemas sem solução, como ainda obstrui a adoção de medidas realmente eficazes[50]. Aplicando o raciocínio para o caso em tela, a aprovação da Lei nº 13.429/17 dificultaria o advento de nova lei que trate do tema da terceirização em atividade-fim de forma mais clara e técnica, vez que, em tese, já supriu a demanda por tal regulação.

b) "Constitui uma forma de manipulação ou ilusão que imuniza o sistema político contra outras alternativas, desempenhando uma função 'ideológica'"[51]. Nesse prisma, o foco na terceirização irrestrita como parte da solução para a crise do país seria pernicioso por desviar a atenção da população de outras soluções com maior potencial de efetividade, como a redução da carga tributária e da burocracia ou a reforma política, alternativas talvez menos interessantes para o sistema político.

c) Seu emprego abusivo contribui para o descrédito do "direito como sistema garantidor de expectativas normativas e regulador de condutas", levando o público a se sentir enganado e os atores políticos a se tornarem cínicos[52]. O efeito pode ser visualizado na factível hipótese em que a terceirização de atividades essenciais realizada por determinada empresa, com fundamento na Lei nº 13.429/17, seja considerada ilícita quando judicializada, gerando nos empresários o compreensível descrédito em relação à capacidade regulatória do direito.

Sobre o tema, Bernardo Gonçalves Fernandes aponta que o principal problema da legislação simbólica não é sua ineficácia, mas sua falta de vigência social, vez que sua estrutura prejudica a função da norma de assegurar expectativas de comportamento generalizáveis, deixando de ser levada como uma orientação normativa do agir[53].

Caso a hipótese da natureza simbólica da Lei nº 13.429/17 se confirme, este diploma se somará a outros tantos no danoso despropósito de minguar a confiança da sociedade no ordenamento jurídico brasileiro, já tão combalida.

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Sobre o autor
Bruno Ítalo Sousa Pinto

Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG, em Direito do Trabalho e Previdenciário na Atualidade pela PUC-MG e em Direito Civil e Processual Civil pela UCDB-MS. Bacharel em Direito (UFPI). Analista Judiciário, desempenhando a função de Assistente de Juiz no TRT da 16ª Região.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Bruno Ítalo Sousa. A lei da terceirização é exemplo de legislação simbólica?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5040, 19 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57102. Acesso em: 18 abr. 2024.

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