1.6. A difícil distinção entre o privacy e o publicity
Como foi visto, o right of publicity pode ser concebido, em linhas gerais, como o direito que cada pessoa tem de controlar o uso comercial de sua identidade, dirigindo sua tutela para aspectos meramente patrimoniais. O instituto é visto como uma espécie do gênero da concorrência desleal, uma vez que garante o privilégio exclusivo quanto à exploração da identidade, particularmente no que toca à publicação de fotografias[45].
Ocorre que o fato do right of publicity ser mencionado em ligação com a identidade não significa que a sua proteção está relacionada apenas com os bens da personalidade. Na verdade, essa tutela vai muito além, abrangendo todas as formas de identificação da pessoa, como a imagem, o nome ou a voz, bem como objetos materiais[46].
Nessa linha, a despeito da definição doutrinária aparentemente clara do right of publicity, bem como do estabelecimento de suas diferenças em relação ao privacy, na prática a distinção não é tão simples, mesmo porque existe uma grande afinidade entre esses direitos.
Normalmente, um dos critérios utilizados na distinção é o comportamento anterior da vítima. Assim, se a pessoa, como ocorreu no caso Zacchini, não se opõe à publicidade, contanto que ela receba as vantagens financeiras pela exposição, estaríamos diante do publicity. Também ocorrerá atentado apenas ao right of publicity quando uma pessoa autoriza a publicação de seu nome ou de sua imagem em um determinado periódico, mas não em um outro, ou quando a extensão da utilização publicitária excede o que foi previsto contratualmente[47].
Por outro lado, estaremos diante de invasão do privacy se os fatos em análise indicam que o indivíduo jamais explorou o valor associado a sua reputação ou a sua atividade profissional, bem como que não houve qualquer consentimento no que toca à utilização do seu nome ou de sua imagem[48].
A partir daí, parte da doutrina e da jurisprudência passaram a considerar, de modo geral, que a utilização do nome ou da imagem de pessoas célebres, sem autorização, em uma propaganda, somente afeta o right of publicity. De contrário, tratando-se de uma pessoa não conhecida do público, a defesa da utilização não autorizada do nome e da imagem deve ser feita pelo right of privacy[49].
Outrossim, podemos arrolar ainda a distinção no que toca à patrimonialidade e à transmissibilidade do interesse protegido. Assim sendo, considerando a patrimonialidade do publicity, a doutrina reconhece que ele faz parte do próprio patrimônio da pessoa (estate) e admite a possibilidade de sua cessão contratual ou transmissão hereditária. O mesmo não valendo para o right of privacy, que se volta para a proteção de interesses ideais e não permite a transmissão[50].
Por conseguinte, deve-se admitir que são poucas as situações em que a delimitação se apresenta tão evidente. A despeito disso é sem dúvida sempre conveniente analisar o comportamento anterior da vítima, investigar a natureza da agressão, bem como buscar interpretar o consentimento do sujeito para que se possa chegar à conclusão se estamos diante de um caso de privacy ou publicity, sobretudo quando foi contratualmente autorizada a exploração do nome ou da imagem[51].
1.7. O privacy na construção doutrinária de Prosser
Somente na década de 1960 é que vai ser visto o surgimento de novas discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do privacy. No que toca à doutrina, inicia-se então um debate contrapondo pontos de vista favoráveis e opostos às ideias de Warren e Brandeis.
Entre as críticas dirigidas à concepção, podem ser distinguidas diversas orientações, como a que substitui o conceito de privacy por outro considerado mais adequado, a que censura a utilização de um vocábulo único para diversos atos ilícitos e a que contesta a definição do privacy como o “direito de ser deixado só” [52].
Entretanto, vamos aqui destacar o embate mais célebre, que envolveu Prosser e Bloustein, tendo exercido, como será visto, indiscutível influência nos desenvolvimentos posteriores do privacy[53].
William Prosser, aclamado professor da California School of Law (Berkeley) e à época uma das maiores autoridades em responsabilidade civil (tort law), apresentou em 1960 um estudo bastante preciso acerca das decisões prolatadas sobre o right of privacy. Nele o estudioso procurou evidenciar as regras emanadas de cada caso e os desenvolvimentos jurídicos daí decorrentes[54]-[55].
Após a análise de substancial amostra do repertório jurisprudencial disponível, Prosser admitiu a existência de confusão e inconsistências no desenvolvimento do privacy, mas tentou sistematizar a matéria. Asseverou que não se estava diante de apenas um tort, mas sim de quatro grupos diversos, vendo em cada um deles a lesão de diferentes tipos de interesses protegidos. Nessa linha, destacou que os interesses tutelados pelo privacy não teriam quase nada em comum, exceto que todos eles representariam uma interferência no right to be let alone[56].
Prosser passa então a classificar o privacy nas seguintes espécies: 1) invasão em assuntos privados da pessoa (intrusion); 2) publicação de fatos embaraçosos relativos à vida privada de determinada pessoa (public disclosure); 3) publicação que leve a opinião pública a uma falsa compreensão (false light), o que se assimila à difamação (defamation), mas enquanto esta requer que a informação seja falsa, no privacy a informação geralmente é verdadeira, mas cria uma falsa impressão e; 4) abuso do nome ou da imagem de outrem para benefício próprio (appropriation)[57], conceito que se aproximaria do right of publicity, no entanto, este direito protege a pessoa contra a exploração comercial não autorizada (property right), enquanto que o privacy diz respeito à tutela de valores pessoais da personalidade[58].
O estudioso não foi, obviamente, o primeiro a apresentar uma classificação do right of privacy em diferentes tipos. Na verdade, o que torna seu trabalho relevante, a ponto de ser considerado por muitos como leitura obrigatória para as discussões sobre privacy, não é somente o fato de ter desenvolvido uma classificação que impôs ordem e clareza à matéria, mas também por ter identificado o bem jurídico protegido em cada uma das hipóteses apresentadas[59].
Destarte, ainda que de forma implícita, pode-se deduzir do pensamento de Prosser que não existe unidade na tutela do privacy, visto que não estaríamos diante de um valor independente, mas sim de uma composição de interesses que vai abranger a reputação, a tranquilidade emocional e a propriedade imaterial[60].
1.8. O privacy como tutela da dignidade e da individualidade
Os ensinamentos de Prosser não ficaram isentos a críticas, como a apresentada pelo professor Harry Kalven, no artigo intitulado “Privacy in Tort Law – Were Warren and Brandeis Wrong?”, publicado em 1966. Nele o estudioso questiona a proteção do privacy por meio da legislação de torts, concluindo que, com exceção dos casos de apropriação, a tentativa de proteger o privacy no âmbito da responsabilidade civil é um erro[61].
Edward Bloustein, em trabalho publicado em 1964, assevera que a análise em grupo de casos, apresentada por Prosser, contrariou o que Warren e Brandeis defendiam, uma vez que acabava indicando a incapacidade dos tribunais de continuarem o desenvolvimento do privacy sem que fosse necessário o apoio em figuras jurídicas tradicionais, como a propriedade e a honra[62].
Nessa linha, Bloustein destaca a existência de uma considerável confusão no que toca à natureza do bem jurídico protegido pelo privacy, entendendo que Prosser remete esse direito novamente às antigas instituições jurídicas, o que estaria em contradição com o pensamento de Warren e Brandeis, na medida em que viam no privacy uma figura jurídica nova e unitária[63].
Partindo desses problemas, Bloustein propõe em seu artigo uma teoria geral do privacy, levando em conta, para tanto, o bem jurídico protegido em todos os casos. Considera então que a dignidade humana seria esse bem jurídico, que ligaria o right of privacy do direito privado ao direito público, vínculo este totalmente ignorado por Prosser. Acrescenta ainda que o privacy não é limitado à common law, abrangendo o direito como um todo, inclusive as disposições de direito processual penal[64].
Outrossim, Bloustein lembra da existência de muitas leis mais recentes, que regulam o uso de sistemas eletrônicos de vigilância ou que proíbem a interceptação telefônica de conversas, exemplos que seriam suficientes para comprovar a proteção do right of privacy de forma independente, não somente como uma proteção civil contra atos ilícitos[65].
Além disso, outra questão que se colocava era a respeito dos desenvolvimentos futuros do privacy. De acordo com o estudioso, a influência do trabalho de Prosser era patente, já que nos anos que se seguiram à sua publicação quase toda decisão sobre privacy mencionava sua concepção, bem como também refletiu na elaboração do Restatement of Torts. Assim sendo, nas palavras de Bloustein, se seu posicionamento não estivesse correto, então seria importante demonstrar suas falhas e apresentar uma teoria alternativa[66].
Desse modo, em suma, sugere Bloustein que o raciocínio de Prosser não estava correto, pois o privacy envolveria o mesmo interesse na preservação da dignidade e da individualidade do ser humano, falando-se então em apenas um tort, que garantiria uma proteção abrangente e sem lacunas[67].
Alguns autores americanos concordaram com Bloustein, especialmente diante dos fortes argumentos lançados contra Prosser no sentido de que sua visão se limitava à common law, bem como que a classificação por ele proposta não era exaustiva e ainda apresentava distinções insuficientemente esclarecidas[68].
Contudo, boa parte dos estudiosos acabou seguindo o posicionamento de Prosser, sendo certo que alguns deles, como é o caso de Wade, até avançaram em suas ideias[69]. De qualquer forma, é interessante notar que as ideias de Bloustein em muito se assemelham à concepção em vigor no direito continental, especialmente pela menção à tutela da dignidade humana.
Por conseguinte, o fato é que as ideias de Prosser acabaram saindo vitoriosas e sua sistemática passou a exercer uma influência tão grande que foi seguida de forma quase unânime pela doutrina e pela jurisprudência, ecoando ainda no Second Restatement of Torts, de 1977, bem como na constituição, nas leis e na common law de vários estados[70]. E o resultado não poderia ser diverso, uma vez que independentemente da denominação utilizada, o fato é que o conceito de privacy procura realmente dar uma visão unitária a um grande número de situações ou de relações que são heterogêneas[71], isso sem falar na ampla e já tradicional aceitação pela jurisprudência da inclusão desse instituto entre os torts[72].
1.9. A formulação do privacy constitucional
Paralelamente ao debate doutrinário, viu-se que ao longo do tempo o right of privacy, desenvolvido como um conceito da common law, passou a aparecer em casos envolvendo a Constituição dos Estados Unidos. Todavia, apesar do início dos debates ter ocorrido ainda na primeira metade do século XX, o reconhecimento do right of privacy na Constituição somente veio com o caso Griswold v. Connecticut, decido em 1965 pela Suprema Corte dos Estados Unidos[73].
Na demanda, foi debatida uma lei de Connecticut, que tornou ilegal o uso ou a distribuição de anticoncepcionais, o que configuraria ingerência do Estado no privacy. A lei deu causa à condenação de um médico, que examinou uma mulher casada e prescreveu métodos contraceptivos, bem como do senhor Griswold, diretor da clínica onde o referido médico trabalhava[74].
Na Suprema Corte dos Estados Unidos o juiz Douglas, que tinha assumido a cadeira de Brandeis, redigiu o voto do caso Griswold v. Connecticut, que se tornou célebre. Nele o magistrado declarou a inconstitucionalidade da lei e reconheceu a existência de um direito geral de privacy, que decorreria das seguintes emendas à Constituição dos Estados Unidos: primeira (liberdade de expressão), terceira (restrição ao aquartelamento de soldados em casas particulares), quarta (busca e apreensões ilícitas), quinta (autoincriminação) e nona (declara que os direitos não especificados na Declaração de Direito são também protegidos por ela)[75].
A decisão ainda destaca o caráter sacro da união conjugal e o respeito que merece a intimidade do casal, considerando, por conseguinte, inadmissível que a polícia pudesse estender suas investigações ao quarto do casal (“the sacred precincts of marital bedrooms”)[76].
Dessa forma, somente a partir do caso Griswold v. Connecticut que vai ser reconhecido constitucionalmente, pela primeira vez, o right of privacy, que apesar de não ser expressamente mencionado pela Constituição, estaria localizado, conforme o voto do juiz Douglas, no interior das penumbras ou zonas de liberdade criadas por uma interpretação mais abrangente da declaração de direitos[77].