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O surgimento e o desenvolvimento do right to privacy nos Estados Unidos

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Apresenta-se a evolução do right to privacy, cuja origem doutrinária foi lentamente sendo consagrada na jurisprudência, na legislação de um grande número de estados e, finalmente, elevada ao nível constitucional pela Suprema Corte.

SUMÁRIO: 1.1. Introdução. 1.2. O surgimento do right of privacy e a contribuição de Warren e Brandeis. 1.3. O reconhecimento do right of privacy nos tribunais dos Estados Unidos. 1.4. As dificuldades para o desenvolvimento do privacy até a década de 1950. 1.5. O right of publicity. 1.6. A difícil distinção entre o privacy e o publicity. 1.7. O privacy na construção doutrinária de Prosser . 1.8. O privacy como tutela da dignidade e da individualidade. 1.9. A formulação do privacy constitucional. 1.10. A consolidação do entendimento do caso Griswold. 1.11. A relação entre o right of privacy e os direitos da personalidade. 1.12. Considerações finais. BIBLIOGRAFIA           


1.1.   Introdução

O right of privacy surgiu nos Estados Unidos e difundiu-se para os países que adotam o sistema da common law. Tais países, entretanto, apresentam um grau bastante variado de proteção da personalidade humana, valendo notar, por exemplo, que no Direito inglês não haveria uma espécie de proteção geral, mas apenas uma tutela indireta, relacionada com elementos constitutivos de determinados delitos[1].

Desta feita, considerando sua origem e os grandes avanços de seu sistema protetivo, bem como que se trata de modelo utilizado por outros países de common law e mesmo de civil law, objetivamos realizar um breve estudo sobre o right of privacy nos Estados Unidos, passando pelas diversas fases de seu desenvolvimento até seu reconhecimento no âmbito constitucional.

Nossa análise, ao lado do estudo do privacy, também buscará a compreensão dos principais pontos de divergência e convergência entre o sistema dos Estados Unidos e o dos direitos da personalidade, tradicionalmente reconhecido pelos países de direito continental, como é o caso do Brasil.


1.2.  O surgimento do right of privacy e a contribuição de Warren e Brandeis

A ideia de privacy, conforme asseveram muitos autores, já estava presente no sistema jurídico dos Estados Unidos no século XIX, sendo possível o reconhecimento de uma primeira manifestação do interesse individual de “ser deixado só” no caso Wheaton v. Peters, decidido pela Suprema Corte no ano de 1834. No entanto, o conceito de privacy não chegou a receber reconhecimento formal da comunidade jurídica como um right, o que somente ocorreu com a publicação do artigo de Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis[2]-[3].

Antes do artigo de Warren e Brandeis, vamos encontrar na obra do juiz Thomas Cooley, publicada em 1880, sob o título “A Treatise on the Law of Torts”, a primeira utilização da expressão “right to be let alone”. Apesar de ter cunhado a expressão, Cooley não a relacionou com a noção de privacy[4], mencionando-a em seu trabalho sobre responsabilidade civil (torts) como parte do seguinte trecho: “The right to one’s person may be said to be a right of complete immunity: to be let alone” [5].

A expressão forjada por Cooley somente ganhou relevo com a publicação, em 15 de dezembro de 1890, na Harvard Law Review, do artigo de autoria de Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis, intitulado “The Right to Privacy”. Nele os autores colocam em evidência a ocorrência de transformações sociais, políticas e econômicas, bem como o surgimento de novos inventos, como a fotografia, que contribuíram para a ocorrência de violações da vida privada das pessoas[6]-[7].

Partindo desses problemas, os autores analisam um bom número de decisões de tribunais ingleses e americanos, deduzindo então a existência de um princípio geral na common law, o right of privacy. Assim, utilizando o termo “right to be let alone”, propõem um novo “tort”, a invasão do “privacy”, que constituiria uma profunda ofensa, que lesionaria o senso da própria pessoa sobre sua independência, individualidade, dignidade e honra[8].

Nessa linha, o direito em questão garantiria ao indivíduo uma ampla liberdade contra intromissões não desejadas em sua vida, tutelando seus pensamentos, sentimentos, emoções, dados pessoais e até mesmo o nome[9]. A imagem também foi incluída no âmbito de proteção do privacy[10], destacando-se que os avanços da fotografia tornaram possível a captação de forma oculta dos traços pessoais, pelo que se fazia necessária a utilização da lei de torts diante dos riscos inerentes ao progresso técnico[11].

Para fundamentar o privacy, os autores recorreram ao direito à vida, expressamente enunciado na declaração de independência dos Estados Unidos e formalmente reconhecido pela quinta emenda da Constituição. Acrescentaram ainda que apesar da Constituição não fazer qualquer menção à palavra privacy, seus princípios já faziam parte da common law, particularmente no que diz respeito à proteção do domicílio, tendo o desenvolvimento tecnológico apenas tornado necessário reconhecer expressamente e separadamente esta proteção sob o nome de privacy[12].

Outrossim, apresentam no artigo limitações ao privacy, como por exemplo: a permissão de publicação de material de interesse geral e público, a possibilidade de publicação de fatos danosos quando o indivíduo consente, bem como a inexistência de defesa quando se alega que o fato é verdadeiro ou então que não houve “malícia” na publicação[13].

O artigo de Warren e Brandeis vai provocar um impacto considerável no sistema jurídico norte-americano, mas isso não vai ocorrer de maneira imediata. De fato, em um primeiro momento ocorreu hesitação por parte da doutrina quanto ao privacy, pois muitos autores negaram energicamente as novas ideias, enquanto que outros defenderam o instituto com entusiasmo[14].

Nos tribunais o efeito da publicação do artigo também não foi imediato, uma vez que os primeiros casos julgados não reconheceram a existência do privacy. Contudo, a ideia foi aos poucos sendo adotada e até expandida pelos tribunais estaduais e federais, valendo ainda notar que nas primeiras décadas de existência o right of privacy foi defendido ao abrigo da property theory, mas depois passou a ser progressivamente abordado como um direito pessoal[15].

De qualquer forma, é interessante notar que para o sistema da common law dos Estados Unidos é bastante incomum que um artigo publicado em uma revista tenha sido decisivo para desenvolvimento de um direito. Também é muito supreendente o fato de que um artigo publicado em 1890 ainda continue a ser considerado hodiernamente como a obra fundamental sobre o tema, sem tem perdido sua validade, especialmente se levarmos em conta a importância e atualidade da matéria[16].


1.3.  O reconhecimento do right of privacy nos tribunais dos Estados Unidos

Os casos Schuyler v. Curtis (1891)[17] e Marks v. Jaffa (1893) são normalmente apontados, por um grande número de doutrinadores, como aqueles que teriam iniciado as discussões a respeito do right of privacy nos tribunais dos Estados Unidos. Apesar da precedência, mais célebres se tornaram outros dois casos, que foram julgados de forma diversa e coincidentemente envolveram lesão ao direito à imagem[18].

O primeiro deles, o caso Roberson v. Rochester Folding Box Co., conhecido como “Flour of the Family”, diz respeito à inserção da fotografia de uma moça em um cartaz publicitário divulgado por um fabricante de farinha. A ação foi rejeitada em 1902 pela Court of Appeals de Nova Iorque, mas a existência do right of privacy aparentemente tinha sido reconhecida pelas duas cortes inferiores[19].

Na decisão da Court of Appeals, tomada por estreita maioria de quatro votos a favor e três contra, foi negada a existência do direito em questão pela falta de precedente, pelo caráter puramente mental da lesão, pela dificuldade de se estabelecer a distinção entre natureza pública e privada, bem como pela indevida restrição à liberdade de imprensa e liberdade de expressão[20].

Em seguida, três anos mais tarde, o caso Pavesich v. New England Life Ins. Co. foi levado à Suprema Corte da Georgia. Nele foi debatida a reprodução não autorizada em um jornal do retrato do senhor Pavesich, que foi colocado ao lado da foto de um homem em farrapos, tendo sido atribuída a prosperidade do primeiro ao fato de ter contratado uma apólice de seguro[21].

Na decisão, proferida em 1905, a corte rejeitou os argumentos levados anteriormente ao caso Roberson, pelo que acabou aceitando o entendimento de Warren e Brandeis. Assim, os juízes consideraram que a publicação da imagem de uma pessoa, sem seu consentimento e com o propósito de exploração comercial, configuraria uma violação do right of privacy, o que não demandaria da pessoa retratada prova especial do dano[22].

A decisão do caso Pavesich v. New England Life Ins. Co. foi então sendo paulatinamente seguida por tribunais de vários outros estados americanos, de modo que na década de 1950 a oposição ao right of privacy já tinha praticamente desaparecido[23].

Por conseguinte, fica evidente que as duas últimas decisões mencionadas são extremamente importantes para o desenvolvimento do privacy nos Estados Unidos, motivo pelo qual são reiteradamente analisadas nos manuais. Também é interessante observar que os casos apresentados estão associados à defesa de valores patrimoniais, ainda que ligados a valores pessoais. Ademais, vale ainda destacar que apesar de no caso Roberson v. Rochester Folding Box Co. ter sido rejeitada a concepção de Warren e Brandeis, não podemos nos esquecer que tal julgado contou com opiniões divergentes, bem como deu causa à promulgação de uma lei sobre privacy no Estado de Nova Iorque[24].


1.4.  As dificuldades para o desenvolvimento do privacy até a década de 1950

O período que vai do início até a metade do século XX não apresentou evolução aparente da doutrina do privacy, registrando apenas decisões que confirmaram a concepção desenvolvida por Warren e Brandeis. Perdeu-se então a oportunidade de incluir os avanços tecnológicos do período na proteção[25].

A estagnação do desenvolvimento do privacy provavelmente está associada à apresentação aos tribunais de um reduzido número de casos com novos pontos de vista, bem como pelo fato de que os tribunais não estavam dispostos a avançar no tema sem apoio em figuras jurídicas tradicionais, como a proteção da honra ou da propriedade[26].

A problemática é muito bem representada pela decisão do caso Olmstead v. United States, que pode ser considerada como uma das corresponsáveis pela referida estagnação da doutrina do privacy. O processo envolvia escutas telefônicas feitas pelo FBI contra Roy Olmstead e muitas outras pessoas, que teriam transportado e vendido bebidas alcoólicas em violação à lei nacional[27].

O tribunal decidiu que as escutas telefônicas realizadas, que constituíam o principal meio de prova, não tinham sido feitas com invasão da propriedade privada, já que os cabos telefônicos interceptados se localizavam na rua, em áreas próximas das casas e dos escritórios investigados. No voto vencedor, o juiz Taft esclareceu que a escuta por meios eletrônicos não poderia ser considerada como busca, no sentido empregado pela Constituição, uma vez que não houve invasão física, e que não teria ocorrido apreensão inconstitucional, na medida em que não envolveu nenhum bem tangível[28].  

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Desse modo, como os locais investigados não foram fisicamente invadidos, as interceptações telefônicas não violariam a Quarta Emenda da Constituição, que garante a inviolabilidade da pessoa, da sua casa, de seus documentos e dos seus bens contra a realização de buscas e apreensões ilegítimas. Assim, foi dada interpretação literal à Quarta Emenda constitucional, que seria aplicável somente na hipótese de busca envolvendo invasão física e de apreensão de objetos tangíveis[29].

Apesar do entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos, o juiz Brandeis, coautor do famoso artigo já mencionado, apresentou voto em sentido contrário, propugnando por uma aplicação liberal da Quarta Emenda constitucional, que protegeria o cidadão contra qualquer violação injustificada do privacy, seja qual for o meio utilizado. Asseverou ainda que o governo deveria ter obtido um mandado de busca antes de ter invadido a privacidade alheia, mesmo porque a Constituição protege os cidadãos não apenas em aspectos materiais, mas também em suas crenças, pensamentos, emoções e sensações[30].

Nessa linha, Brandeis, usando na decisão linguagem similar àquela do artigo publicado muitos anos antes, ampliou o foco do privacy, destacando que o right to be let alone encontra proteção não somente na common law, mas também na Constituição. Também identificou o Estado como um potencial ofensor desse direito[31].

Nos anos que se seguiram, a posição defendida por Brandeis foi continuamente sustentada por outros juízes, mas a Suprema Corte dos Estados Unidos, apesar de pronunciamentos ousados em muitos julgados, manteve reserva ao right of privacy quando se discutia seu reconhecimento constitucional e a admissão de provas em processos criminais[32].

Assim, também não foi reconhecida a ocorrência de violação ao privacy no caso Goldman v. United States (1942), em que a conversa do acusado foi gravada por um microfone instalado na parede do apartamento contíguo, uma vez que a prova não teria sido obtida com invasão física[33]. O posicionamento foi mais uma vez confirmado no caso On Lee v. United States (1952), quando o tribunal admitiu as provas colhidas pela escuta de conversações entre On Lee e um agente infiltrado, que estava com um microfone. O mesmo pode ser constatado em Silvermann v. United States (1961), que, confirmando a regra do caso Olmstead, apenas condenou a utilização de microfones pelo fato de ter ocorrido invasão de propriedade[34].


1.5.  O right of publicity

Em 1953 mais um passo importante é dado no julgamento do caso Haelan Laboratories Inc v. Topps Chewing Gum Inc, que colocou em evidência a falta de adaptação e a insuficiência do privacy para a resolução de problemas relativos a interesses patrimoniais, estabelecendo novos limites para esse direito[35].

A demanda envolveu a celebração de vários contratos entre a empresa Haelan Laboratories Inc e jogadores profissionais de baseball, nos quais foi estabelecido um direito exclusivo de utilização da imagem, do nome e de elementos biográficos dos jogadores para a venda de produtos da empresa. Conhecendo a existência do contrato, a empresa concorrente Topps Chewing Gum Inc procurou os mesmos jogadores e obteve, em violação à obrigação contratual anterior, semelhante autorização para utilização da imagem, o que deu ensejo à demanda judicial por parte da primeira empresa[36].

Em sua defesa, a ré asseverou que os contratos celebrados entre a autora e os jogadores não poderiam transferir o right of privacy, visto que tal direito tinha natureza pessoal e intransferível. Também argumentou que nos contratos não havia previsão de nenhum property right que pudesse ser invocado[37].

Entretanto, o tribunal rejeitou os argumentos da defesa, considerando, sem nenhuma preocupação teórica, a necessidade de se destacar uma parte do right of privacy e reconhecer a existência de um right of publicity. Tal direito foi considerado independente do privacy e garantiria um privilégio exclusivo à pessoa quanto ao aproveitamento econômico de sua notoriedade, o que poderia ser considerado um property right, na medida em que teria valor pecuniário[38].

Assim sendo, apesar de guardar suas origens históricas no right of privacy, o surgimento do right of publicity não decorreu de um processo evolutivo, mas é resultado de uma radical ruptura do right of privacy, que produziu um direito transmissível, inclusive, na opinião da doutrina majoritária, por herança[39].

Após a decisão do caso Haelan, a nova figura jurídica foi rejeitada por alguns tribunais e aceita por outros. A mesma diversidade de entendimentos pôde ser vista na doutrina, que contou, entre os defensores do right of publicity, com Grodin e Nimmer. Este último acabou fixando os contornos do novo instituto, destacando que o right of privacy não era adequado para a integral proteção do cidadão na segunda metade do século XX, em especial pela presença maciça da publicidade[40].

No âmbito da Suprema Corte dos Estados Unidos, o right of publicity somente foi reconhecido em 1977, no julgamento do caso Zacchini v. Scripps-Howard Broadcasting Company, quando se admitiu a existência de interesse econômico na apresentação de um “homem-bala” que foi transmitida pela televisão sem sua autorização[41].

Na demanda, o tribunal atribuiu ao right of publicity um interesse análogo à propriedade (propietary interest) e afirmou ainda que a finalidade de tal direito é muito próxima à de uma patente ou de um copyright, na medida em que é protegido o direito de colher os frutos de uma atividade individual, que nada tem a ver com a proteção dos sentimentos ou da reputação[42].

Depois dessa decisão o right of publicity foi sendo progressivamente admitido pelos Estados do país, muitos deles consagrando até mesmo uma legislação específica sobre o tema[43].

Portanto, a proteção do direito à imagem na common law passou a compreender um modelo dualista, composto tanto pelo right of privacy como pelo right of publicity. O primeiro voltado para a tutela de valores pessoais, enquanto que o segundo se destina à proteção de valores patrimoniais[44].

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Sobre o autor
Leonardo Estevam de Assis Zanini

Livre-docente em Direito Civil pela USP. Pós-doutorado em Direito Civil pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Alemanha). Pós-doutorado em Direito Penal pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Strafrecht (Alemanha). Doutor em Direito Civil pela USP, com estágio de doutorado na Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Bacharel em Direito pela USP. Juiz Federal. Professor Universitário. Pesquisador do grupo Novos Direitos CNPq/UFSCar. Pesquisador do grupo Direito e Desenvolvimento Público da Universidade de Araraquara (UNIARA). Autor de livros e artigos publicados nas áreas de Direito Civil, Direitos Intelectuais, Direito do Consumidor e Direito Ambiental. Foi bolsista da Max-Planck-Gesellschaft e da CAPES. Foi Delegado de Polícia Federal. Foi Procurador do Banco Central do Brasil. Foi Defensor Público Federal. Foi Diretor da Associação dos Juízes Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Foi Diretor Acadêmico da Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores da Justiça Federal em São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ZANINI, Leonardo Estevam Assis. O surgimento e o desenvolvimento do right to privacy nos Estados Unidos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5130, 18 jul. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57228. Acesso em: 22 dez. 2024.

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