1. Conceituação:
A Criminalística, enquanto ciência autônoma que se ocupa do estudo, análise e interpretação dos elementos deixados pelo crime no local em que a ação delitiva ocorreu, objetiva a comprovação da existência de um fato a ser investigado, bem como a identificação de seu autor.
Não deve ser confundida com a Criminologia que, em seu turno, conforme aduz Sérgio Salomão Shecaira (2014, p. 35), caracteriza-se como uma expressão utilizada para a designação de um grupo de temas estritamente ligados, são eles: o estudo e a explicação da infração legal; os meios formais e informais de que a sociedade se utiliza para lidar com o crime e com os atos desviantes; a natureza das posturas com que as vítimas desses crimes serão atendidas pela sociedade; o enfoque sobre o autor desses fatos desviantes.
O 1º Congresso Nacional de Polícia Técnica, realizado em São Paulo no ano de 1947, definiu a Criminalística nos seguintes termos (apud STUMVOLL, 2014, p. 2):
Disciplina que tem por objetivo o reconhecimento e interpretação dos indícios materiais extrínsecos relativos ao crime ou à identidade do criminoso. Os exames dos vestígios intrínsecos (na pessoa) são da alçada da Medicina Legal.
Destarte, à Criminalística incumbe a análise vestigial com dinamismo, estabelecendo ligações e interpretações, não devendo ater-se, tão somente, à descrição estática da apresentação dos vestígios expostos no palco em que o crime se deu.
De acordo com os escritos deixados por Públio Cornélio Tácito, historiador, orador e político romano, é possível sustentar que o primeiro exame direto de local de crime foi realizado na Roma Antiga por César, em momento ainda embrionário e pré-científico da Criminalística. Segundo consta, Plantius Silvanus fora levado à presença do Imperador sob a suspeita de ter defenestrado sua mulher, Aprônia, de uma janela. Deste modo, visando, através da análise dos elementos deixados na cena, formar sua convicção acerca do que efetivamente ocorreu e exarar sua decisão, César diligenciou ao quarto do casal e nele encontrou sinais de violência. Neste sentido, Gilberto Porto (1976, p. 24): “Ora, se o exame do local é parte integrante da Criminalística, foi o ato de César, talvez, o primeiro passo para a aplicação do método do exame direto de um local de crime, para verificação do ali ocorrido”.
Na obra “Elementos de Criminalística”, Carlos Kehdy define local de crime como sendo “toda área onde tenha ocorrido qualquer fato que reclame as providências da polícia”, dividindo-as em áreas imediatas, onde o fato efetivamente se deu, e em áreas mediatas, correspondendo estas às adjacências da primeira (apud STUMVOLL, 2014, p. 55).
Em seu turno, Eraldo Rabello no artigo “Contribuição ao estudo dos locais de crime” estabelece o local de crime como (1968, p. 77):
[...] porção do espaço compreendida num raio que, tendo por origem o ponto no qual é constatado o fato, se estenda de modo a abranger todos os lugares em que, aparente, necessária ou presumivelmente, hajam sido praticados, pelo criminoso, ou criminosos, os atos materiais, preliminares ou posteriores, à consumação do delito, e com este diretamente relacionados.
Tem-se, assim, que o local de crime equivale a toda área física ou geográfica, seja ela interna ou externa, onde se sucedeu acontecimento cuja ocorrência resultou na produção de vestígios, os quais, por sua natureza ou circunstâncias que o revestem, reclama a presença policial para seu fiel e cabal esclarecimento.
Considerando a extensão territorial e os vestígios por ela espalhados, de acordo com o Caderno Temático de Referência do Ministério da Justiça "Investigação Criminal de Homicídios" (2014, p. 41/42), é possível estabelecer uma classificação dos locais de crime em:
- Local imediato: aquele abrangido pelo corpo de delito e o seu entorno, sendo, em regra, onde está depositada a maioria dos vestígios materiais que servirão de base para as atividades periciais que subsidiarão o esclarecimento do delito;
- Local mediato: é a área adjacente, espacialmente próxima, ao local imediata e a ele geograficamente ligada, passível de conter vestígios relacionados com o crime e que também serão foco da atividade pericial;
- Local relacionado: qualquer local que possa conter vestígios relacionados ao crime, mas que não guarde relação de continuidade espacial com os locais imediato e mediato.
Deste modo, deve-se abandonar a ideia corriqueira de que o local de crime constitui apenas a região onde constatou-se o fato, devendo ser ampliada para todo e qualquer local onde existam vestígios relacionados com o evento, procedendo à salvaguarda da totalidade de vestígios do crime. É cediço que o local do crime equivale ao prelúdio fundamental de qualquer investigação criminal, não sendo aceitável qualquer procedimento investigatório que prescinda do prévio comparecimento ao sítio dos fatos.
De acordo com o “Guide for law enforcement” (2000, p.13) do Federal Bureau of Investigation (FBI), os investigadores devem abordar a investigação da cena do crime como se fosse a única oportunidade de preservar e recuperar essas pistas físicas, considerando outras informações de caso ou declarações de testemunhas ou suspeitos cuidadosamente em sua avaliação objetiva da cena. Tendo em vista que, as investigações podem mudar de curso na medida em que pistas físicas, inicialmente consideradas irrelevantes, podem tornar-se cruciais para uma resolução bem-sucedida do caso[1].
Isto posto, a investigação de local é o ponto de encontro entre a ciência, a lógica e a lei, cujo o transcurso temporal é o maior inimigo, pois o tempo institui regência no meio social e em matéria penal é fulcral na estrutura da “persecutio criminis”. Na medida em que tanto cria como mata o direito, ou seja, o avançar do tempo simboliza o escape da realidade e a perda da pretensão punitiva estatal, diante do desaparecimento dos efeitos do crime para a sociedade.
Ergue-se, então, em termos processuais, um paradoxo temporal que é ínsito ao ritual judiciário, conforme aduz Aury Lopes Júnior (2014, p. 549/552):
[...] um juiz julgando no presente (hoje) um homem e seu fato ocorrido num passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã) [...] Em suma, o processo penal tem uma finalidade retrospectiva, em que, através das provas, pretende-se criar condições para a atividade recognitiva do juiz acerca de um fato passado, sendo que o saber decorrente do conhecimento desse fato legitimará o poder contido na sentença.
Nesta medida, a instrução probatória na persecução penal equivale a recolher elementos que possibilitem a máxima aproximação à realidade investigada, uma tarefa que possui como principal algoz o transcurso do tempo, pois é este inimigo silencioso que vai, aos poucos, diluindo verdades no implacável caminhar dos ponteiros.
Fala-se em “aproximação à realidade” e não a famigerada “verdade real”, esta última um grande mito que paira sobre o Processo Penal. Isto porque, historicamente sempre buscou-se de forma desmedida uma verdade material e consistente e a ausência de limites na atividade de busca, admitindo inclusive a tortura como meio de prova, produziu uma “pseudo verdade” de baixa qualidade. Portanto, o mito da verdade real nasce na inquisição e, desde então, presta (des)serviços como instrumento capaz de justificar atos estatais abusivos.
A caçada pela verdade real foi o norteador do Processo Penal durante longo período da história humana, caracterizava-se por um processo de reconstrução histórica dos fatos. Na lição de Carrara “a certeza está em nós, a verdade está nos fatos” (apud NUCCI, 2011, 115). Também conhecido como princípio da verdade material ou da verdade substancial, hoje é teoria superada, asseverava que o fato investigado no processo deve corresponder ao que está fora dele, sem artifícios, presunções ou ficções. Esse verdadeiro mito encontra suas raízes no Sistema Inquisitório, ligado à concepção de um Estado Autoritário. Em contraposição a este princípio hoje se fala em verdade processualmente válida. A verdade almejada no processo não há de ser uma verdade absoluta, mas sim uma verdade judicial, prática, não aquela obtida a todo preço, mas aquela processualmente válida.
O princípio da verdade real restou-se obsoleto, sobretudo, diante da impossibilidade de se alcançar uma verdade absoluta. Desde a antiguidade que os filósofos debatem essa questão da verdade. Em voto do ministro do STJ Felix Fischer, no Habeas Corpus 155.149, encontramos citação do jurista Jorge Figueiredo Dias, em excepcional conceituação: “A verdade material que se busca em processo penal não é o conhecimento ou apreensão absoluta de um acontecimento, que todos sabem escapar à capacidade do conhecimento humano”.
A descoberta da verdade será sempre relativa, pois cada parte no litígio judicial penal terá a sua verdade, sua visão acerca do que aconteceu. Cabe aos envolvidos na lide trazerem ao processo sua versão fundada em provas lícitas, juridicamente aceitas, para que, com isso, possam chegar ao convencimento do magistrado da ocorrência factual sob o seu prisma.
2. Provas, indícios e vestígios:
Na doutrina temos três sentidos para esta terminologia “prova”, são elas: o ato de provar, o meio de prova e o resultado da ação de provar. Na lição de Antônio Magalhães Gomes Filho, os dois primeiros sentidos se referem à ótica objetiva da prova, enquanto o terceiro refere-se à ótica subjetiva, decorrente da atividade probatória desenvolvida. Isto é, o ato de provar e o meio de prova se materializam como sendo, efetivamente, a atividade probatória das partes processuais, as quais buscam através dos mecanismos legais demonstrar seus argumentos, alegações e versões dos fatos. Já o resultado da ação de provar, é o efeito que essa prova encontra no âmago do magistrado, o qual formará sua convicção pela livre apreciação da prova, tendo que fundamentar sua decisão em provas produzidas diante de contraditório judicial (1997, p. 33-34).
A terminologia origina-se do latim “probatio” que pode ser traduzida como experimentação, verificação, exame, confirmação, reconhecimento, confronto, dando origem ao verbo “probare”. De acordo com Nicola Malatesta (1995, p. 19) "a prova é o meio objetivo pelo qual o espírito humano se apodera da verdade". Juridicamente, as provas são os atos e meios utilizados pelas partes e formalmente admitidos pelo Magistrado como sendo a fidedignidade dos fatos alegados em juízo, ou seja, meio utilizado pelo homem para demonstrar uma verdade através de sua percepção.
Existem basicamente três formas de manifestação probatórias na persecução penal:
- Provas Testemunhais - assentada de testemunhas, declarações da vítima, acareações etc.
- Provas Instrumentais (ou Documentais) – escritos públicos ou particulares, cartas, livros comerciais, notas fiscais etc.
- Provas Materiais – exames periciais de corpo de delito, instrumento do crime, vistorias etc.
O objeto da prova é o fato cuja a existência deseja-se reconhecer, deste modo, pode ser direta, referindo-se de forma imediata ao fato a ser provado, ou indireta, caso afirme outro fato, a partir do qual seja possível chegar à prova através de raciocínio indutivo, assim, são provas indiretas as presunções e os indícios, pois demandam a formulação de hipóteses, exclusões e aceitações para a formação da conclusão final.
Presunções são opiniões pessoais, convicções ou suspeitas que formam-se na consciência do investigador, acerca da existência de um fato ou circunstância desconhecidos, diante de outros fatos ou circunstâncias conhecidos. De outro lado, indícios são todos e quaisquer fatos, sinais, marcas ou vestígios, que, por sua relação com fato desconhecido, prova ou leva à presunção da existência deste. À vista disso, toda presunção é gerada a partir de indícios ou circunstâncias.
O art. 239 do Código de Processo Penal define indício como sendo “a circunstância conhecida e provada que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência de outra ou outras circunstâncias”. Por sua vez, o ordenamento jurídico brasileiro não cuidou de definir vestígio, porém, de acordo com o “Novo Dicionário da Língua Portuguesa” (2004, p. 478) trata-se de “sinal que homem ou animal deixa com os pés no lugar por onde passa; rastro, pegada, pista; no sentido figurado, indício, sinal, pista, rastro”.
A simples leitura do parágrafo acima pode conduzir o leitor à errônea concepção de que vestígios e indícios são sinônimos (ou quase isso), mas, em verdade, sob o prisma da Criminalística e do Processo Penal, há cristalina delimitação e diferenciação. Qualquer elemento detectado em local onde houve a prática de crime será considerado, “a priori”, um vestígio. Todavia, após análise, interpretação e associação a exames periciais e dados colhidos na investigação, estabelecendo relação inequívoca com o fato delituoso ele será transmutado em indício, ou seja, “o vestígio encaminha; o indício aponta” (PORTO, 1968, p. 74). Sendo assim, em uma cena de crime, em princípio, todos os vestígios não podem ser preliminarmente descartados, pois poderão demonstrar sua utilidade posteriormente.
Vestígio é todo o objeto ou material em seu estado bruto que fora constatado e/ou recolhido em local de crime para sua ulterior análise, ou seja, elementos que podem vir a ser tecnicamente transformados em indícios capazes da comprovação da natureza do fato investigado e de suas causalidades. Entre os mais típicos vestígios encontrados em uma cena incluem-se: resíduos deixados por disparos de arma de fogo, gotas de tinta, cacos de vidro, produtos químicos desconhecidos, drogas, impressões digitais, pegadas, marcas de ferramentas, fluidos corporais, cabelos, pelos etc. Por seu turno, o vestígio em que, após as devidas análises e pesquisas, constata-se sua relação com o crime investigado, de forma técnica e científica, passa a ser apontado com evidência.
Objetivando segurança e integridade do valor probatório do que fora arrecadado na cena, estes devem ser protegidos em sua integralidade, sob os pontos de vista científico e jurídico. Alterações das características vestigiais podem ocorrer por causas naturais, como exposição a altas temperaturas ou umidade; causas acidentes, oriundas de falhas na proteção dos indícios; e causas propositais, como a destruição dolosa por parte de pessoas interessadas na impunidade do crime investigado.
Acerca da cadeia de custódia da prova Geraldo Prado (2014, p.7) preleciona que:
O rastreamento das fontes de prova será uma tarefa impossível se parcela dos elementos probatórios colhidos de forma encadeada vier a ser destruída. Sem esse rastreamento, a identificação do vínculo eventualmente existente entre uma prova aparentemente lícita e outra, anterior, ilícita, de que a primeira é derivada, dificilmente será revelado. Os suportes técnicos, pois, têm uma importância para o processo penal que transcende a simples condição de ferramentas de apoio à polícia para execução de ordens judiciais.’
Deve-se dispensar zeloso tratamento aos vestígios em geral, revestindo-se de uma série de precauções para que não pairem dúvidas, técnicas ou legais, sobre as informações por eles trazidas. Entre estes cuidados possuem especial importância a detecção, coleta, preservação, armazenamento, embalagem, identificação (etiquetamento) e o acondicionamento final.
Parte importante da preservação vestigial é consequência do adequado isolamento e delimitação da área, através da vigilância policial, vedando todo e qualquer acesso no interior da extensão restrita. Este cenário propicia ao Perito Criminal deparar-se com a cena do crime idônea, isto é, tal qual como fora deixada pelos sujeitos ativo e passivo, possibilitando, deste modo, condições técnicas aptas à análise de todos os elementos nela contidos. Além disso, constitui garantia para a investigação como um todo, pois angaria-se mais elementos probatórios para sua inserção no bojo do Inquérito Policial para que seja possível subsidiar a existência de relação processual futura.