5. A independência das instâncias administrativa e judicial
Como se viu antes, a SV 24 enuncia que o crime do art. 1º, I a IV, da Lei n. 8.137/1990 não se tipifica antes do lançamento definitivo do tributo. Nos debates travados por ocasião da aprovação da súmula, a maioria dos Ministros do STF entendeu que o lançamento é um elemento do tipo penal, sem o qual o crime não se configura. No entanto, em vista dos argumentos lançados acima, parece bastante evidente que, definitivamente, o lançamento não é e nunca foi um elemento desse tipo penal.
Se é tão evidente que o lançamento não é elemento do tipo penal, então por que o STF forçou essa conclusão? A bem da verdade, depreende-se dos debates que antecederam a aprovação da súmula vinculante que a preocupação de fundo dos Ministros era com o exercício do direito de defesa do contribuinte perante a administração pública e os possíveis reflexos da decisão administrativa sobre a ação penal e não com a natureza em si do crime de sonegação fiscal.
Um dos argumentos lançados pelos Ministros do STF que votaram pela aprovação da SV 24 é de que o contribuinte tem o direito de discutir a legalidade do lançamento tributário e que eventual ação penal tolheria esse seu direito. O Ministro Carlos Britto invoca, inclusive, uma tal “jurisdição fiscal” para justificar a necessidade de conclusão do procedimento administrativo para se falar de tipicidade penal tributária:
“Então, para mim, eu fiquei pacificado, no meu entendimento, de que, de fato, sem o lançamento não se pode concluir pela tipicidade penal tributária. Não se pode. Até porque seria um processo jurisdicional atropelar o processo administrativo que ainda está a meio caminho. Ou seja, o administrado contribuinte tem o direito de ver o seu processo administrativo fiscal chegar ao fim. Esse processo não pode ser abortado pelo jurisdicional paralelo. As duas instâncias, a administrativa e a jurisdicional, em matéria fiscal, são realmente apartadas por desígnio constitucional, que fala de jurisdição fiscal no âmbito da administração e a vontade decisória do Estado, no sentido de cobrar tributo de alguém, é necessariamente processualizada.
[...]
É preciso deixar que o processo administrativo tributário chegue ao seu término que é um direito do contribuinte levar os meios e recursos de que fala o inciso LVV (sic) do art. 5º da Constituição às últimas consequências, pena de se transformar uma ampla defesa numa curta defesa.
[...]
Então, um processo administrativo tem que findar para o jurisdicional se iniciar. É uma coisa lógica.”[21]
O argumento é evidentemente casuístico e não convence. Como bem destacou o Ministro Marco Aurélio, em regra, não existe essa subordinação entre as esferas administrativa e judicial. Essa independência é “lição comezinha”, nas palavras do Ministro, para quem somente em duas situações o legislador constituinte condicionou o ingresso em juízo ao prévio exaurimento da via administrativa: dissídio coletivo do trabalho e questões esportivas:
“As responsabilidades, Presidente, administrativa, cível, penal, sabemos, isso é lição comezinha, são independentes.
Há mais: se formos à Carta da República, veremos que não remete mais ao legislador o estabelecimento de exceções a obstaculizarem o ingresso imediato no Judiciário. Esgota as situações em que, antes de ingressar no Judiciário, deve o cidadão, em geral, o Ministério Público, a parte legítima, a parte que esteja prevista como legitimada para atuar, recorrer à via administrativa. As exceções estão abertas apenas quanto à jurisdição cível do trabalho, presente o conflito coletivo, o dissídio coletivo, e a Justiça dita desportiva, em que, versando o conflito certame ou disciplina, antes de se ingressar em Juízo, se deve esgotar a fase administrativa.
[...]
Quer dizer, nem mesmo o legislador pode criar uma fase administrativa, porquanto as fases administrativas que devem anteceder o ingresso em juízo, mitigando a norma do art. 5º, inciso XXXV, estão previstas, de forma exaustiva, na Carta de 1988, ao contrário do que ocorria na Carta de 1967, que remetia a estipulação ao legislador. Mas o Supremo pode ir além. Sabem por quê? Porque acima dele não há órgão para corrigir as respectivas decisões.”[22]
De fato, há um sem número de infrações que configuram ao mesmo tempo violação de normas administrativas e penais e nunca antes se cogitou do esgotamento da discussão administrativa acerca dessa infração para o exercício da ação penal respectiva. Tome-se, como exemplo, as infrações ambientais. Segundo a Lei n. 9.605/1998, essas infrações são apuradas em processo administrativo próprio, assegurado o direito de ampla defesa e o contraditório (art. 70, § 4º). Assim, se um fiscal ambiental constatar o corte ilegal de árvores em floresta considerada de preservação permanente, lavrará o auto de infração ambiental, que poderá ser impugnado pelo infrator. Como o infrator tem o direito de ver o seu processo administrativo ambiental chegar ao fim, então, seguindo-se o raciocínio do Ministro Carlos Britto, o esgotamento dessa discussão administrativa deveria também ser condição para o exercício da ação penal relativa ao crime ambiental (art. 39 da Lei n. 9.605/1998).
Outro exemplo: sabe-se que conduzir veículo sob efeito de álcool também é, ao mesmo tempo, infração administrativa e penal. Igualmente, o infrator tem direito de impugnar o auto de infração lavrado para aplicação das sanções administrativas e ver o respectivo procedimento administrativo chegar até o fim. Nessa hipótese, haveria também a necessidade de se aguardar o julgamento do recurso para se propor a ação penal pelo crime tipificado no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro.
Todavia, em se tratando de crimes ambientais ou de trânsito ou de qualquer outro crime, diga-se de passagem, nunca se cogitou dessa interdependência entre as esferas administrativa e judicial. Como disse o Ministro Marco Aurélio, a independência entre as instâncias é lição comezinha. Então, como os Ministros ignoraram essa lição ou por que excepcionaram essa regra em relação aos crimes contra a ordem tributária?
Aparentemente, os Ministros estão preocupados com eventual condenação de alguém por crime contra a ordem tributária, quando, na esfera administrativa, se conclui pela inexistência de tributo devido. Essa seria uma situação um tanto absurda mesmo e evidentemente difícil de acontecer, afinal, se o tributo realmente não for devido e isso ficar provado no âmbito administrativo, é bastante provável que o réu consiga provar essa mesma circunstância perante o juízo criminal, afastando a sua responsabilidade penal. Mas não se descarta a possibilidade – improvável, mas possível, repita-se – de haver decisões contraditórias, isto é, a administração pública pode entender que o tributo não é devido, livrando o contribuinte do dever de pagar, e, por outro lado, o juiz criminal pode concluir que o tributo é devido, condenando o réu pelo delito de sonegação.
Essa possibilidade, de fato, existe. Só que essa situação pode acontecer também em se tratando de outros crimes que configuram também infrações administrativas. Retome-se os casos de violação das normas ambientais ou de trânsito. A impugnação aos autos de infração poderá resultar em um julgamento administrativo favorável ao infrator, reconhecendo-se, por exemplo, que as árvores cortadas não são consideradas vegetação de preservação permanente ou que os sinais visíveis relatados pelo policial não são suficientes para caracterizar a embriaguez. Nessas hipóteses, é muito provável que o infrator consiga provar a sua inocência no juízo criminal também com base nos mesmos argumentos. Todavia, é possível que o juiz criminal conclua que a vegetação derrubada fazia parte de uma floresta de preservação permanente, bem como que os sinais apontados pela autoridade policial são suficientes para provar o estado de embriaguez, de modo a ensejar um decreto condenatório em ambos os casos. Haverá, a toda evidência, um conflito de decisões, mas isso nunca serviu de argumento para condicionar o exercício da jurisdição penal ao esgotamento da via administrativa nas hipóteses de crimes ambientais ou de trânsito.
No caso dos crimes contra a ordem tributária, é possível que o recurso administrativo resulte mesmo no reconhecimento de que o tributo lançado é indevido. Nesse caso, eventual condenação pela prática de crime contra a ordem tributária encerraria também um conflito entre as decisões. Mas e daí? Por que, em se tratando de crime tributário, esse conflito reclama tratamento diferenciado? Será que apenas o conflito de decisões na esfera tributária é um absurdo?
Aliás, por que apenas o crime tipificado no art. 1º da Lei n. 8.137/1990 exige esse tratamento diverso? Note-se que, se a imputação ao contribuinte for da prática do crime tipificado no art. 2º, I, da mesma Lei n. 8.137/1990, não se cogita de lançamento para fins de configuração do delito, apesar de o tipo penal exigir o especial fim de agir consistente em se eximir total ou parcialmente de pagamento de tributo. Ora, nesse caso, se houver lançamento e, por meio da impugnação administrativa, o contribuinte provar que o tributo supostamente inadimplido por meio fraudulento não é devido, eventual condenação criminal por essa conduta seria igualmente incompatível com essa decisão na esfera administrativa. Claro, se o tributo não é devido, logicamente não estaria presente aquele especial fim de agir, logo o fato seria atípico. Apesar disso, nunca se cogitou estender o alcance da SV 24 para o crime descrito nesse art. 2º da lei.
O que se quer evidenciar é que qualquer situação assim – conflito entre decisão administrativa e criminal – soa como um absurdo, mas até hoje convive-se muito bem com esses absurdos e nunca se ouviu reclamos na doutrina ou na jurisprudência em prol da superação do consagrado entendimento sobre a independência das instâncias no caso de outras infrações. Só nos casos de crimes contra a ordem tributária. Por que? Essa questão precisa ser respondida para se justificar a SV 24.
Note-se que, no caso de infração ambiental ou de trânsito, a lavratura de auto de infração é absolutamente prescindível para a atuação do Ministério Público. Se o membro do Parquet tiver conhecimento da prática do delito por outros meios, poderá agir, ainda que o infrator nem sequer tenha sido autuado por infração administrativa.
De novo: por que haveria de ser necessária a autuação do contribuinte por infração administrativa – leia-se: lançamento do tributo – para se propor a ação penal pelo crime contra a ordem tributária? E por que seria necessário aguardar o deslinde da discussão administrativa para se deflagrar a ação penal?
Se alguém ainda acha justo aguardar o resultado do litígio na esfera administrativa, uma última observação poderá demovê-lo desse convencimento. A discussão administrativa não é a última fronteira de irresignação do cidadão. O lançamento, se mantido na esfera administrativa, poderá ser atacado mediante ação judicial. Se o contribuinte provar no juízo cível que o tributo não é devido, o resultado da ação será a anulação do lançamento. Portanto, levado às últimas consequências, o argumento da necessidade de se aguardar a confirmação administrativa do lançamento serviria para sustentar também a necessidade de se aguardar o resultado definitivo de eventual ação judicial proposta pelo contribuinte com o mesmo objeto. Afinal, também parece absurdo condenar criminalmente um sujeito por sonegação fiscal, se, no juízo cível, esse cidadão consegue provar que o tributo é indevido, por exemplo, por inconstitucionalidade da lei que embasa a exigência tributária. Essa inconstitucionalidade não poderia ser arguida no recurso administrativo, mas poderia muito bem ser invocada e acolhida na ação judicial cível, o que resultaria na anulação do lançamento tributário. Não se tratando de questão prejudicial sobre o estado civil das pessoas, o juiz criminal não estaria obrigado a suspender o curso da ação criminal e, ao final, poderia entender que o crime está configurado, condenando o acusado. E aí, esse conflito entre as decisões judiciais cível e criminal não encerra também uma contradição absurda? Seria o caso, então, de obrigatoriamente aguardar o deslinde da ação cível também? E se o contribuinte não propusesse imediatamente a ação cível, dever-se-ia esperar até o decurso do prazo prescricional? Ou, enquanto não proposta a ação cível, já seria possível dar início à ação penal? E se a ação cível for ajuizada depois de deflagrada a ação penal ou até após o trânsito em julgado de uma condenação, seria o caso de se sustar o andamento do processo criminal ou a execução da penal?
Essas questões não foram enfrentadas pelo STF. Porém, percebe-se a desconexão entre os fundamentos que embasam a SV 24 (necessário esgotamento da via administrativa) e o seu próprio enunciado (lançamento como elemento do tipo penal). Ademais, o argumento subjacente (contradição entre decisão administrativa e criminal), a par de ser casuístico (só aplicável nos casos de crimes contra a ordem tributária), se levado às últimas consequências, exigiria também o esgotamento da via judicial de defesa do contribuinte como condição para o exercício da ação penal.
Uma última questão que poderia justificar o enunciado da SV 24 merece reflexão. Trata-se da extinção da punibilidade dos crimes tributários, mediante o pagamento do tributo devido, essa sim uma peculiaridade dessa espécie penal.