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Revisitando a Súmula Vinculante n. 24

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04/08/2017 às 15:15
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6. Os reflexos do pagamento do tributo devido sobre a responsabilização criminal

O Ministro Dias Toffoli argumentou que, por política fiscal, o legislador outorgou ao contribuinte a faculdade de pagar o débito tributário para extinguir a sua punibilidade, razão pela qual a exigência do “lançamento fiscal para a finalidade da tipificação do delito previsto na legislação tributária é consentâneo com uma política tributária”.[23]

De fato, atualmente, a lei estatui que o pagamento do tributo devido antes do recebimento da denúncia extingue a punibilidade dos crimes tipificados nos arts. 1º e 2º da Lei n. 8.137/1990 e arts. 168-A e 337-A do Código Penal (art. 83, §§ 4º e 6º da Lei n. 9.430, com a redação dada pela Lei n. 12.382/2011, c/c art. 34 da Lei n. 9.249/1995). Esse benefício, todavia, não tem a ver com a tipificação do crime, como concluiu o Ministro Dias Toffoli. Se o cidadão não quer sofrer a ação penal, pode muito bem pagar o tributo devido, independentemente do lançamento tributário. Para isso, basta emitir uma guia de pagamento e ir ao banco efetuar a liquidação do débito. Simples!

Porém, não é esse o ponto do Ministro Dias Toffoli. A questão é que, sem o lançamento, o contribuinte não teria a possibilidade de impugnar administrativamente e demonstrar que o tributo não é devido. Se, ao final, for confirmado o tributo, o contribuinte, aí sim, poderia optar pelo pagamento para extinguir a sua punibilidade. Mas se for admitida a ação penal antes do lançamento, o contribuinte, se quisesse extinguir a sua punibilidade, estaria obrigado ao pagamento do tributo apontado na denúncia como devido, sem a chance de impugnar essa obrigação no âmbito administrativo pelo simples fato de que não há uma exigência fiscal a ser impugnada.

O argumento só aparentemente convence. O equívoco do Ministro reside em confundir o direito de defesa no âmbito administrativo e judicial. O argumento do Ministro parte da premissa de que, sem o lançamento, o contribuinte não tem defesa. Ora, a defesa administrativa nada tem a ver com a defesa a ser exercida na ação penal. Sem lançamento, não há que se falar em exercício de defesa na esfera administrativa. Na ação penal, se o contribuinte está convencido de que o tributo não é devido, independentemente de haver ou não lançamento, deverá lançar mão dessa tese defensiva. O juiz criminal irá decidir se o tributo é ou não devido para o fim de condenar ou não o réu. É assim em toda ação penal. Não se exige um direito de defesa “casado”, quer dizer, um direito de defesa judicial que pressuponha anterior exercício desse direito perante a administração pública.

Novamente, o exemplo do crime ambiental é esclarecedor. Se um membro do Ministério Público tiver conhecimento da derrubada de floresta em área de preservação permanente, poderá determinar que a polícia realize uma diligência para constatar a prática criminosa. Uma vez confirmado o crime, oferecerá a ação penal ainda que não haja a lavratura de um auto de infração pelo órgão ambiental. Na ação penal, o réu poderá sustentar como matéria de defesa que a floresta não está localizada em área de preservação permanente. Essa alegação será apreciada pelo juiz criminal, independentemente de qualquer questionamento administrativo.

Voltando à questão do pagamento, trata-se de uma faculdade, não uma obrigação. O contribuinte só paga se quiser se livrar da ação penal. Por outro lado, se o contribuinte entende que o tributo não é devido e por isso não deseja pagar (com razão, aliás), aí terá que enfrentar a ação penal para provar a sua inocência. Provando, no juízo criminal, que o tributo não é devido, aí sim o delito não se tipificou e, por isso, será absolvido com base no art. 386, III, do Código de Processo Penal. Mas se ficar provado que o tributo é devido, aí pouco importa se houve ou não lançamento, pois o crime está configurado e provado, devendo o réu ser condenado, independentemente da apuração administrativa.

Por outro lado, não se ignora que a confirmação ou não do lançamento na esfera administrativa pode gerar uma situação de aparente injusta para o contribuinte. Explica-se.

Se a apuração da responsabilidade criminal for independente da administrativa, a ação penal poderá ser proposta enquanto o contribuinte discute administrativamente o débito. Se, antes de recebida a denúncia, o lançamento for confirmado em definitivo, o contribuinte tem a chance de pagar o débito e extinguir a sua punibilidade na esfera criminal.

O problema está na hipótese de o lançamento (1) não ser confirmado ou (2) ser confirmado após o recebimento da denúncia.

A primeira hipótese colocaria o contribuinte em uma situação, no mínimo, curiosa. Veja-se: se o lançamento é confirmado antes do recebimento da denúncia, o sonegador pode pagar o débito e livrar-se da responsabilidade penal. Agora, se o lançamento não é confirmado, ou seja, o tributo não é devido, não há crédito tributário a ser pago. Portanto, rigorosamente, o contribuinte não terá oportunidade de se livrar da responsabilidade criminal, mediante o pagamento, porque simplesmente não há tributo a pagar. Seria uma situação incongruente, pois o contribuinte que prova perante a administração que o lançamento é indevido – situação que deveria ser mais vantajosa para ele – corre o risco de ser condenado criminalmente, enquanto aquele que tem o lançamento confirmado – situação que deveria lhe ser prejudicial – pode se livrar da sanção penal simplesmente quitando o débito.

Na segunda hipótese, o lançamento é confirmado, logo há tributo a pagar. Porém, o eventual pagamento do tributo devido não ensejará a extinção da punibilidade, pois terá ocorrido após o recebimento da denúncia.

Nessas situações, não se nega que o tratamento conferido aos contribuintes é mesmo iníquo. Essa injustiça se corrige modificando a lei e extirpando do ordenamento jurídico essa estapafúrdia previsão de extinção da punibilidade em face do pagamento, e não distorcendo conceitos fundamentais de direito penal – como a tipicidade – ou ignorando lições comezinhas de direito – como a independência entre as instâncias administrativa e judicial.

Note-se que essa injustiça pode também acometer quem for acusado da prática do delito tipificado no art. 2º, I, da Lei n. 8.137/1990. Como se demonstrou antes, a ação penal relativa a esse delito não depende do lançamento definitivo do tributo. Aqui também o pagamento do tributo devido enseja a extinção da punibilidade do agente. Então, se houver o lançamento e, por meio da regular impugnação, ao final for considerado indevido, não haverá tributo a pagar, de modo que o contribuinte continuará sujeito à responsabilização criminal. Ainda, se o lançamento for confirmado após o recebimento da denúncia, o pagamento não terá qualquer efeito sobre a responsabilidade penal. Diferentemente, se o contribuinte não impugnar o lançamento e pagar o débito antes do recebimento da denúncia, já estará livre da ação penal. Do mesmo modo, se impugnar, mas a decisão administrativa definitiva for tomada antes do recebimento da denúncia, o contribuinte ainda poderá pagar o tributo devido para se livrar da persecução penal.

O resultado da discussão administrativa pode implicar essas situações de iniquidade. É bastante improvável, já que, se o sujeito provou no âmbito administrativo que o tributo é indevido, muito provavelmente conseguirá produzir a mesma prova no âmbito penal. Mas pode acontecer de o resultado na ação penal ser diferente. Porém, quem garante que o erro foi cometido pelo juiz criminal e não pelo julgador administrativo?

Ademais, como já se destacou antes, mesmo confirmado o lançamento na instância administrativa, o contribuinte poderá questionar o débito na esfera judicial. Se nessa ação for reconhecido que o tributo é indevido, o problema será exatamente o mesmo, pois não haverá tributo a ser pago para extinguir a punibilidade do agente na esfera penal. Apesar disso, a ação cível não obsta a tramitação da ação penal. Se nem mesmo outra ação judicial impede o oferecimento da denúncia, porque um procedimento administrativo haveria de fazê-lo?

Distorções existem porque as leis são imperfeitas e é preciso conviver com isso.

Veja-se, por exemplo, os crimes de trânsito. Com o advento da Lei n. 12.971/2014, criou-se uma situação absurda: quem praticasse homicídio culposo na condução de veículo automotor sob efeito de álcool poderia ser apenado com 2 a 4 anos de reclusão (crime único tipificado no art. 301, § 2º, da Lei n. 9.503/1997). Por outro lado, se um condutor também embriagado apenas lesionasse uma vítima, poderia ser punido por lesão culposa na direção de veículo somada à pena do delito de embriaguez (artigos 303 c/c 306 em concurso). A pena máxima, então, poderia chegar a 5 (cinco) anos de detenção. Isso perdurou até a edição da Lei n. 13.281/2016, quando se revogou o § 2º do art. 301. Ou seja, entre 2014 e 2016, o sujeito embriagado que matasse alguém na direção de veículo poderia ser punido com uma sanção mais branda do que aquele que apenas causasse uma leve lesão na vítima. Trata-se de uma injustiça flagrante, mas conviveu-se com ela até a edição da lei que corrigiu a distorção.

No caso dos crimes tributários, enquanto não reformada a lei, a possível iniquidade pode ser contornada sem distorcer institutos jurídicos como a tipicidade penal. Se a ação penal ainda está em andamento, o contribuinte poderá juntar a decisão administrativa que considerou indevido o lançamento como prova de que o crime não se tipificou (não pela falta do lançamento, mas porque o tributo considerado suprimido ou reduzido, na verdade, não é devido) e, assim, ser inocentado. Se a condenação já é definitiva ao tempo da conclusão do procedimento administrativo, o contribuinte poderá requerer revisão criminal com base na ulterior decisão administrativa que reconhecer ser indevido o tributo, pois essa pode ser considerada uma nova prova da sua inocência (art. 621, III, primeira parte).

Se, mesmo diante da decisão administrativa que considerou indevido o tributo, o juiz entender o contrário e condenar o acusado, aí resta ao réu se conformar, pois – vale repisar – as instâncias administrativa e penal são independentes, sempre foram e sempre serão. E se alguma delas deve se subordinar a outra, com certeza haverá de ser a instância administrativa e não a judicial.

Em vista de tudo quanto foi exposto, fica claro que não há justificativa para condicionar o exercício da ação penal ao esgotamento da via administrativa, quando se trata de crime contra a ordem tributária. Isso significa que o lançamento do tributo, além de não ser elemento do tipo penal, também não pode ser considerado uma condição objetiva de procedibilidade.

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Agora, se o lançamento não é elemento do tipo penal descrito no art. 1º da Lei n. 8.137/1990 nem condição de procedibilidade, então qual é a relação do lançamento com esse delito?


7. A relação do lançamento com os crimes contra a ordem tributária

O lançamento do tributo representa apenas e tão somente um elemento de prova do delito contra a ordem tributária. Simples assim!

O lançamento é isso: um documento que, dentre vários outros elementos, serve para provar a infração penal. Em outras palavras, o lançamento prova que efetivamente o contribuinte obteve o resultado buscado com a sua conduta, qual sejam reduzir ou suprimir tributo devido. Do mesmo modo que o exame cadavérico prova a materialidade de um crime de homicídio, o lançamento prova a materialidade do crime contra a ordem tributária consistente em reduzir ou suprimir tributo.

É o único meio de se provar o crime contra a ordem tributária? Claro que não. Se o contribuinte falsificar uma nota fiscal para suprimir ou reduzir o tributo (art. 1º, III, da Lei n. 8.137/1990), a perícia que ateste a falsificação é também um elemento de prova do delito. A movimentação bancária do contribuinte também é outro elemento de prova de eventual omissão de receitas que redundaram na supressão ou redução de tributos (art. 1º, I, da Lei n. 8.137/1990). E assim por diante.

Os Ministros da Suprema Corte fizeram, na verdade, uma confusão entre elemento do tipo e elemento de prova. O lançamento não representa a consumação do delito, mas a prova de que o delito ocorreu. Antes de efetuar o lançamento, a autoridade fiscal examina livros, registros, extratos, declarações, entre tantos outros documentos, e apura se determinadas condutas do contribuinte resultaram na redução ou supressão fraudulenta de tributos. Mal comparando, o trabalho do fiscal de tributos equivale à função de um delegado de polícia, consistente na colheita de elementos de prova de uma infração penal. Ao final do procedimento, esses elementos reunidos embasam o lançamento fiscal, no qual consta a descrição das condutas praticadas pelo contribuinte, as provas amealhadas no curso da fiscalização e o enquadramento das condutas no rol de infrações, tal qual um relatório de conclusão de um inquérito policial. Aliás, a representação fiscal para fins penais prevista no art. 83 da Lei n. 9.430/1996 faz as vezes de um relatório de investigação criminal.

Por certo, o trabalho de investigação criminal pode oferecer subsídios importantes para a formação do convencimento do membro do Ministério Público acerca da ocorrência do delito e sobre a identificação do seu autor. Mas desde quando as conclusões de um inquérito policial são indispensáveis para a propositura de uma ação penal? É consabido que o inquérito policial é prescindível para a formação da opinião do representante ministerial sobre a prática do delito.

Ora, se é assim relativamente a qualquer infração penal, por que haveria de ser diferente quando se trata de crime contra a ordem tributária? Por que a ação do representante do Parquet estaria adstrita ao trabalho de fiscalização tributária, que tem natureza eminentemente administrativa, quando pode por outros meios se convencer acerca da prática do delito de sonegação fiscal?

Considerando-se que o lançamento é uma prova do crime, mas não a única, nada obsta que o membro do Ministério Público ou a autoridade policial tome a iniciativa de apurar as fraudes perpetradas por um determinado contribuinte para suprimir ou reduzir tributos. Se, ao final da investigação, houver provas outras suficientes da prática do delito, o lançamento revela-se não só dispensável como absolutamente desnecessário para embasar a denúncia criminal. Havendo o lançamento, tanto melhor para a acusação. Mas se não houver esse ato, a acusação será julgada com base nas provas produzidas na investigação criminal.

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Sobre o autor
Leandro G. M. Govinda

Leandro G.M. Govinda formou-se em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina e é especialista em Direito Tributário pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Foi pesquisador do CNPq, escriturário do Banco do Brasil, Técnico da Receita Federal, Auditor-Fiscal da Receita Federal e Procurador da Fazenda Nacional. Atualmente, é Promotor de Justiça do Ministério Público de Santa Catarina, Professor da Escola do Ministério Público e integrante do Conselho Editorial da Revista Jurídica Atuação do Ministério Público Catarinense. Escreveu artigos publicados na Revista Tributária e de Finanças Públicas, na Revista Fórum de Direito Tributário e na Revista dos Tribunais (RTSUL).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOVINDA, Leandro G. M.. Revisitando a Súmula Vinculante n. 24. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5147, 4 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/57928. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

Outras publicações do autor: A polêmica sobre a falsidade ideológica das faturas nas importações. RTFP, n. 106, set./out. 2012. Tributos e penalidades no despacho antecipado de mercadorias a granel. RTFP, n. 70, set./out. 2006. Controle sobre as operações por conta e ordem de terceiros nos regimes aduaneiros especiais. RTFP, n. 60, jan./fev. 2005. A falta de interesse de agir dos municípios nas ações demolitórias. RT Sul, v. 6-7-8.

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