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O financiamento privado de campanha política e a dignidade cívica

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10/03/2018 às 19:10
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Dignidade cívica

No plano dos direitos políticos, a dignidade se expressa como autonomia pública, identificando o direito de cada um participar do processo democrático. Entendida a democracia como uma parceria de todos em um projeto de autogoverno, cada pessoa tem o direito de participar politicamente e de influenciar o processo de tomada de decisões, não apenas do ponto de vista eleitoral, mas também através do debate público e da organização social.

Assim, em algumas circunstâncias é legítima a restrição à autonomia privada para proteção dos direitos civis constitucionalmente garantidos. Essa imposição de determinados valores fundamentais é o que corrobora o Estado Democrático de Direito.

Há possibilidade teórica de se legitimar restrições à liberdade com fundamento na proteção à dignidade cívica, definida com base em valores socialmente compartilhados, como é o caso de se mitigar o direito das pessoas jurídicas de financiar campanhas políticas ou de fazer doações a partidos políticos, bem como a proibição ou maior fiscalização frente a formação de “bancadas" no Congresso Nacional representantes de grupos econômicos de grande influência.

Deve haver restrição à autonomia privada quando a intenção for proteger direito de terceiros, ou imposição de determinados valores cívicos. Vale ressaltar que não se quer proibir o desenvolvimento econômico do País, realizando uma ruptura incomunicável entre público e privado, quer-se simplesmente, traçar diretrizes para que o processo político ocorra da forma mais transparente e democrática possível.

Existem pelo menos três motivos contundentes para serem levados em conta quanto à escolha pela imposição coercitiva dos valores sociais, políticos e civis em nome dessa dimensão comunitária da dignidade: a) a existência de um e mais direitos fundamentais em questão; b) a existência de consenso social forte em relação ao tema; e c) a existência de risco efetivo para a democracia. A dignidade da vida cívica jamais deverá ser suprimida, seja por ação própria ou de terceiros. A todos deve ser dado o direito de participar da vida pública em igualdade de condições.

O que é mais saudável para uma democracia? Que todos participem da vida pública com paridade de armas ou que uns tenham mecanismos mais potentes capazes de manipular e influenciar o jogo democrático?

Não se quer, com esse entendimento, legitimar a ditadura da maioria ou mesmo os perigos do moralismo, e nem muito menos, o enfraquecimento de direitos fundamentais em seu embate com as “razões do Estado”. O que se deseja é justamente a efetivação da participação democrática dando sentido e abrangência ao sistema representativo. Em última análise quer-se concretizar o pluralismo político.


A dignidade cívica e as decisões jurídicas dos casos que envolvam o mercado

O STF está orientado no sentido de que ao se perceber - colisões entre normas constitucionais e direitos fundamentais – como, por exemplo, entre direito de voto (direito político dado tanto a pessoas físicas quanto jurídicas) e dignidade da pessoa humana (em sentido lato, consubstanciado na dignidade cívica), deve-se fazer predileção pela dignidade.

Deste modo, o artigo 14 da Constituição Federal estabelece que: “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I – plebiscito; II – referendo; III – iniciativa popular”.

Nesse sentido, prescreve o artigo 1º da Constituição Federal: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Ambos os dispositivos são normas constitucionais, não há hierarquia entre eles, entretanto quando suscitamos o princípio da dignidade da pessoa humana, consubstanciada na dignidade cívica que todo cidadão em sociedade possui, devemos fazer um juízo de ponderação a fim de eliminar esse conflito e buscar a saída mais eficiente, aquela que expressa melhor o “espírito da constituição”.

De um lado, conforme versado pelo artigo 14 da CF/88, temos que “o voto tem valor igual para todos”, isso incluiria pessoas físicas e jurídicas na participação democrática do sufrágio universal. De outro lado, segundo o artigo 1º o legislador coloca que “todo poder emana do povo”. Povo neste contexto deve ser entendido como conjunto de pessoas que vivem em comunidade em um determinado território. São os indivíduos os detentores de direitos políticos e não as pessoas jurídicas, abstratas por natureza.

Só podemos resolver esse imbróglio jurídico e institucional adotando um princípio norteador suficientemente eficaz para guiar a interpretação da norma. E este princípio é o da dignidade da pessoa humana, mais precisamente, a dignidade cívica.

A dignidade cívica e seu conteúdo devem ser usados como fio condutor da decisão, especialmente em casos verdadeiramente difíceis em que a ingerência do poder econômico ameaça a efetivação dos direitos políticos.

O Ministro Barroso do STF percebe como um dos conteúdos mínimos da dignidade, o valor comunitário. Para Barroso é importante dar ao intérprete da norma, quando surpreendido em disputas judiciais envolvendo colisões de direitos ou desacordos morais, a possibilidade de solucioná-las, valendo-se desse supra princípio, inclusive para verificar se seus argumentos são laicos, politicamente neutros e universalizáveis. Essa é a real imparcialidade que todos esperam de um juiz. Não se quer retirar a subjetividade do intérprete, mas apenas conduzi-lo ao caminho democraticamente mais justo de se decidir.

A dignidade da pessoa humana é um valor moral que, absorvido pela política, tornou-se um valor fundamental dos Estados democráticos em geral. A eficácia interpretativa significa que as normas jurídicas devem ter o seu sentido e alcance determinados da maneira que melhor realize a dignidade humana, que servirá, ademais, como critério de ponderação na hipótese de colisão de normas. Por fim, a eficácia negativa paralisa, em caráter geral ou particular, a incidência de regra jurídica que seja incompatível – ou produza, no caso concreto, resultado incompatível – com a dignidade humana.

A autonomia tem uma dimensão privada, subjacente aos direitos e liberdades individuais, e uma dimensão pública, sobre a qual se apóiam os direitos políticos, isto é, o direito de participar do processo eleitoral e do debate público. Condição do exercício adequado da autonomia pública e privada é o mínimo existencial, isto é, a satisfação das necessidades vitais básicas. (Barroso)


Mecanismos jurídicos para defesa dos direitos políticos

Cada vez mais a política tem-se tornado um mercado privado de grandes empresários. O financiamento privado nas campanhas eleitorais é um ultraje a nossa democracia, pois entendemos que os deveres cívicos não devem ser encarados como propriedade privada, mas sim como responsabilidade pública.

O caráter mercadológico da vida pública tem afastado grupos sociais inteiros da participação política efetiva. O Judiciário deve ser o poder responsável por colocar limites morais no mercado, não permitindo que ele invada searas e valores sociais que não é chamado. Mas como fazê-lo? Quais mecanismos jurídicos capazes de frear essa incursão dos mercados no domínio público?

Um deles certamente é o da proibição dos investimentos privados em campanhas políticas. O STF já deu um passo importante nesse sentido ao votar a ADIN 4650

Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Ministro Relator, julgou procedente em parte o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que autorizavam as contribuições de pessoas jurídicas às campanhas eleitorais, vencidos, em menor extensão, os Ministros Teori Zavascki, Celso de Mello e Gilmar Mendes, que davam interpretação conforme, nos termos do voto ora reajustado do Ministro Teori Zavascki. O Tribunal rejeitou a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade por não ter alcançado o número de votos exigido pelo art. 27 da Lei 9.868/99, e, consequentemente, a decisão aplica-se às eleições de 2016 e seguintes, a partir da Sessão de Julgamento, independentemente da publicação do acórdão. Com relação às pessoas físicas, as contribuições ficam reguladas pela lei em vigor. Ausentes, justificadamente, o Ministro Dias Toffoli, participando, na qualidade de Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, do Encontro do Conselho Ministerial dos Estados Membros e Sessão Comemorativa do 20º Aniversário do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (IDEA Internacional), na Suécia, e o Ministro Roberto Barroso, participando do Global Constitutionalism Seminar na Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 17.09.2015. (http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=4650&classe=ADI&origem=AP&recurso=0&tipoJulgamento=M)

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Segundo o voto vencedor, do ministro Luiz Fux, “a doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, antes de refletir eventuais preferências políticas, denota um agir estratégico destes grandes doadores, no afã de estreitar suas relações com o poder público, em pactos, muitas vezes, desprovidos de espírito republicano”.

O relator aponta que, no modelo então vigente, cerca de 20 mil pessoas jurídicas — menos de 0,5% do total de empresas brasileiras —financiavam campanhas políticas. Fux diz ainda que “uma mesma empresa contribui para a campanha dos principais candidatos em disputa e para mais de um partido político, razão pela qual a doação por pessoas jurídicas não pode ser concebida, ao menos em termos gerais, como um corolário da liberdade de expressão”.

A vida é corrompida quando transformada em mercadoria. Desse modo, para decidir em que circunstâncias o mercado faz sentido e quais aquelas em que deveria ser mantido à distância, temos de decidir que valor atribuir aos bens em questão – cidadania, direitos políticos, deveres cívicos e assim por diante. São questões de ordem moral, política e especialmente jurídica, e não apenas econômicas. Para resolvê-las, precisamos debater sobre o novo papel do judiciário frente à essa ascensão dos mercados na vida social.

A Constituição Federal de 1988 trouxe em seu Título II, os Direitos e Garantias Fundamentais, subdivididos em cinco capítulos, vamos elencar três deles:

Direitos individuais e coletivos – ligados ao conceito de pessoa humana e à sua personalidade, tais como a vida, à igualdade, à dignidade, à segurança, à honra, à liberdade e à propriedade.

Direitos sociais – O Estado Social de Direito deve garantir as liberdades positivas aos indivíduos. Esses direitos são referentes à educação, saúde, trabalho, previdência social, lazer, segurança, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados. Sua finalidade é a melhoria das condições de vida dos menos favorecidos, concretizando portanto a igualdade social.

Direitos políticos - permitem ao indivíduo, através de direitos públicos subjetivos exercer sua cidadania, participando de forma ativa dos negócios do Estado.

Pode-se notar que essas três esferas de direitos estão sendo abaladas pela força impetuosa dos mercados de penetrar em áreas que até então estavam de fora. É fácil perceber que as relações de mercado sobrepujam as normas alheias a ele. O financiamento privado nas campanhas ferem tanto os direitos individuais, sociais quanto os políticos como um todo.

As liberdades individuais entram em rota de colisão com os direitos individuais e sociais, toda vez que os mercados passam a invadir a vida social modificando os próprios valores dos bens com os quais transaciona. A liberdade do indivíduo frente à sociedade e o Estado não deve ser total e absoluta, uma vez que o livre-mercado, como vimos, corrompe valores morais tão caros ao convívio em sociedade.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Diego Quixabeira. O financiamento privado de campanha política e a dignidade cívica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5365, 10 mar. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/58189. Acesso em: 16 abr. 2024.

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