RESUMO: O presente artigo tem como escopo delinear as principais controvérsias existentes no instituto da superfície, incorporado na legislação brasileira através do Estatuto da Cidade e do Código Civil. As duas legislações trouxeram importante inovação no cenário do direito imobiliário; a primeira, em linhas gerais, trata da política de desenvolvimento urbano e da função social da propriedade consagrada na Constituição Federal, em seus artigos 182 e 183; na segunda, prepondera o direito privado, sem abstrair o interesse social. Pela nova figura jurídica, o proprietário de imóvel urbano ou rural poderá conceder a terceiro, de modo gratuito ou oneroso, por tempo determinado ou indeterminado, o direito de edificar ou plantar em seu terreno, atendida a legislação urbanística. Ocorre que, por tratar-se de uma inovação, bem como pelo fato de constar em duas legislações distintas e bem próximas, surgiram muitas controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais sobre a sua aplicabilidade. Em se tratando de matéria tributária, muitas lacunas ainda pairam sobre o tema, o que tem gerado consequentemente ações judiciais sobre incidência e base de cálculo, tópicos que serão melhor explorados no decorrer deste artigo.
Palavras-chave: Direito de superfície. Direito real. Política de desenvolvimento.Incidências tributárias.
SUMÁRIO: 1.INTRODUÇÃO. 2.BREVE HISTÓRICO. 3.CONFLITO APARENTE DE NORMAS – ESTATUTO DA CIDADE E NOVO CÓDIGO CIVIL. 4.O DIREITO DE SUPERFÍCIE E A ENFITEUSE . 5.ASPECTOS TRIBUTÁRIOS. 5.1.IPTU/ITR. 5.2. ITBI/ITCMD. 6.CONCLUSÃO.
1 INTRODUÇÃO
A escolha da matéria em questão, direito de superfície, deu-se pelo fato de tratar-se de um instituto relativamente novo, e, por conseguinte, de escassa literatura nacional a seu respeito. O tema a ser discutido ainda é desconhecido para muitos e, para outros, representa um conhecimento apenas superficial. Tem-se como objeto de estudo neste trabalho a legislação brasileira, com destaque na distinção do instituto nos dois diplomas legais, Estatuto da Cidade e Código Civil, bem como uma abordagem mais profunda da incidência dos tributos e sua base de cálculo. A discussão do último tópico, incidência de tributação, é ainda mais escassa, sendo o presente trabalho direcionado para esse aspecto com o fito de auxiliar aqueles que atuam na Fazenda municipal, bem como notários e registradores, e ainda os que participam direta ou indiretamente desse negócio jurídico. A abordagem aqui exposta, porém, não tem a pretensão de englobar todo o seu conteúdo nem de considerar esgotado o tema, tamanha a sua envergadura e dada a limitação do presente estudo.
Os dados foram coletados por meio de pesquisas bibliográficas, doutrinas, artigos científicos, decisões judiciais, teses e dissertações com informações pertinentes ao assunto.
No presente estudo, objetiva-se traçar linhas gerais sobre a instituição do direito de superfície na legislação brasileira. A abordagem será concentrada nos pontos principais e controversos: a incidência tributária e sua base de cálculo. Para que se tenha um melhor alcance do objetivo pretendido,o trabalho foi dividido em quatro seções. A primeira aborda o conceito de direito de superfície diante das duas legislações que o regem, em um breve histórico; a segunda volta-se ao conflito aparente entre as normas; a terceira abrange a sutil semelhança do objeto com o instituto da enfiteuse; por fim, a quarta e última seção aprofunda a abordagem quanto aos aspectos tributários. O intuito desta pesquisa é auxiliar todos que tenham interesse de aprimorar o conhecimento dessa nova figura jurídica prevista no direito civil e na legislação urbanística e, consequentemente,sua ligação com o direito tributário.
2 BREVE HISTÓRICO
O direito de superfície foi instituído previamente pelo Estatuto da Cidade,Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamentou os artigos 182 e 183 da Constituição Federal e estabeleceu diretrizes gerais da política urbana, sendo novamente recepcionado pelo Código Civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
O direito de superfície é definido como direito real, dado sua inclusão no rol legal de tais direitos. São direitos reais considerados no art. 1.225 do Código Civil: a propriedade, a superfície, as servidões, o usufruto, o uso, a habitação, a usucapião, o direito do promitente comprador do imóvel, o penhor, a hipoteca, a anticrese, a concessão de uso especial para fins de moradia e a concessão de direito real de uso.
Conforme FIUZA (2003, pg. 900):
Direito de superfície é um direito real sobre um terreno, conferido a uma pessoa, o superficiário, a fim de que nele possa construir e/ou plantar a título gratuito ou oneroso.
Em virtude da omissão do Estatuto da Cidade e do Código Civil quanto à natureza jurídica do modelo (ROSENVALD, 2006, p. 406), repercute-se na doutrina uma polêmica. Seria o direito real de superfície uma verdadeira propriedade ou um direito real sobre coisa alheia? A resposta é: ambos. O direito de superfície é um direito real sobre coisa alheia (lote ou gleba), pois sua formação resulta de uma concessão do titular da propriedade para fins de futura edificação (sobre ou sob o solo) ou plantação que, quando concretizada pelo superficiário (concessionário), converterá o direito inicialmente incorpóreo em um bem materialmente autônomo à propriedade do solo do concedente.
Quanto a seu conteúdo, assim define o instituto Loureiro (2002, p. 273):
A superfície é um direito real, fixado por tempo determinado ou indeterminado, que confere ao superficiário a propriedade da construção ou plantação, ainda que em caráter resolúvel, gratuito ou mediante o pagamento de uma pensão periódica e que pode ser transmitido por atos inter vivos ou causa mortis.
Segundo Rezende (2010, p. 37):
Direito de Superfície é um direito real onde se constata a existência de duas partes em uma relação jurídica. O primeiro polo, denominado proprietário ou concedente transfere ao segundo, chamado superficiário, o direito de construir ou plantar em imóvel de seu domínio.
Tradicionalmente, vigora o princípio superfície solo cedit que expressa o vínculo indissociável existente entre o solo e a superfície, de sorte que tudo aquilo que se planta ou se constrói pertence ao dono do solo. Porém, o direito de superfície excepciona tal princípio, já que permite a separação entre o domínio daquilo que é construído ou plantado e a propriedade do solo que abriga a construção ou plantação, não se apresentando nesta situação, a figura jurídica da propriedade, mais coexistência de dois direitos reais distintos.
Pode-se perceber a importância da constituição desse instituto, pela pequena quantidade existente, até então, de locações ou arrendamentos de terrenos por parte de seus proprietários, temendo eles prejuízos tanto dos aluguéis quanto dos encargos contratuais, e levando-se em conta ainda a lentidão da Justiça, tanto para despejar o inquilino ou arrendatário inadimplente como para cobrar os aluguéis ou encargos atrasados. Tais temores certamente se apresentavam como um desestímulo para os proprietários colocarem seus bens em mãos de terceiros, mesmo que em uma locação ou arrendamento aparentemente proveitosos.
Nesse sentido, a característica do contrato de superfície é algo inovador e não se pode desconsiderar os aspectos comerciais altamente positivos para aqueles que têm terreno nu e não possuem condições de nele promover investimentos, passando, por conseguinte, ao superficiário o direito de exploração. Além do valor acertado contratualmente, ainda poderá usufruir das benfeitorias realizadas ao término do contrato.
Outra vantagem primordial do direito de superfície sobre o contrato de locação surge no momento da extinção do daquele (por encerramento do prazo ou por descumprimento das obrigações do superficiário), pois, nesse caso, o proprietário pode interpor uma ação possessória para recuperar o terreno cedido, enquanto que, no contrato de locação ou arrendamento, o locador conta apenas com a ação de despejo. Isso pode significar uma agilidade muito grande na recuperação do terreno e, portanto, um risco menor de prejuízos para o proprietário.
3 CONFLITO APARENTE DE NORMAS – ESTATUTO DA CIDADE E NOVO CÓDIGO CIVIL
Levando-se em conta que o direito de superfície foi instituído e regulamentado pelo artigo 21 da Lei no10.257, de 10 de julho de 2001, denominada de Estatuto da Cidade, sendo novamente recepcionado pela Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Novo Código Civil, em seu artigo 1.225, inciso II, e no título IV, artigos 1.369 a 1.377, cujo anteprojeto teve impulsionamento anterior ao Estatuto da Cidade, porém sancionado depois, parece haver entre os dispositivos legais em questão conflito de normas, já que os artigos que tratam do tema no Estatuto da Cidade não foram derrogados.
Nesta seção, são analisados os dois diplomas legais e suas divergências sob diversos ângulos, como localização – se urbano ou rural; aspecto temporal do contrato – se por prazo determinado ou indeterminado; abrangência do objeto da concessão – solo, subsolo e espaço aéreo; causas de extinção, entre outros.
Como vimos, o Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/2001, foi que instituiu inicialmente a superfície ao ordenamento jurídico, como reflexo da iniciativa estatal de atingir a plena utilização da propriedade, podendo ser considerada como um marco de referência para questões ligadas ao uso, ocupação e parcelamento do solo urbano e servindo ainda de parâmetro às práticas de gestão urbana, sobretudo as municipais, tendo como principal diretriz o processo de urbanização em atendimento ao interesse social, por meio da cooperação mútua entre a iniciativa privada e o poder público.
Segundo análises realizadas pelos principais centros de pesquisa acadêmica no cenário internacional, o século XXI é tido como o “século das cidades”. Destarte, o conceito de cidade e sua ocupação, passa por um amplo processo de revisão e redefinição, desafiando pesquisadores e especialistas. Não se pode esquecerde que, para ser atingido o pleno desenvolvimento social das cidades, deve haver, por parte dos órgãos públicos, um planejamento no intuito de evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e suas consequências.
Já o Código Civil, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, elencou o direito de superfície no rol dos direitos reais abrangendo tanto as edificações como as plantações localizadas em área rural, admitindo, assim, a constituição do direito de superfície e abolindo o surgimento de novas enfiteuses, mantidas as existentes até sua extinção.
Ainda se discute se o regime do contrato de superfície tratado no Estatuto da Cidade teria sido revogado, mas a melhor doutrina já pacificou o entendimento de que o Código Civil, apesar de ser uma lei posterior ao Estatuto da Cidade e de tratar do mesmo assunto, não o derrogou nesse ponto. O contrato de superfície passa a ter duas facetas: uma, prevista no Estatuto da Cidade, que somente se aplica aos terrenos urbanos; e outra, tratada no Código Civil, que se aplica a todos os outros terrenos, ou seja, aos terrenos e glebas rurais (valendo também as normas do Código Civil, mesmo em relação aos contratos de superfície de solos urbanos, nos casos em que o Estatuto da Cidade for omisso).
Fazendo um estudo sistêmico em Rezende (2010, p. 54), conclui-se que o direito de superfície no Código Civil e no Estatuto da Cidade não possui substanciais diferenças, apenas algumas particularidades que podem ser esquematizadas:
Quadro 1– Esquema comparativo das Leis no10.406/02 e no10.257/01
Código Civil (Lei no10.406/02) |
Estatuto da Cidade (Lei no10.257/01) |
É constituído sempre por prazo determinado, quer em áreas urbanas ou rurais – art. 1.369 |
Pode ser constituído por prazo determinado ou indeterminado, sempre em áreas urbanas – art. 21 |
Em regra, não autoriza obra no subsolo – art. 1.369, parágrafo único |
Permite a utilização do subsolo, desde que atendida a legislação urbanística – art. 21,§ 1º |
É omisso em relação a ter por objeto o espaço aéreo |
Expressamente permite ter por objeto o espaço aéreo, desde que atendida a legislação urbanística – art. 21, § 1º |
Determina que o sujeito passivo das obrigações tributárias incidentes sobre o imóvel é o superficiário – art. 1.371 |
De forma pormenorizada, determina que as obrigações tributárias serão distribuídas nos termos do documento que deu origem à superfície, estipulando previamente que o superficiário deve arcar com os encargos e tributos na proporção de sua ocupação efetiva – art. 21, § 3º |
Proíbe expressamente a cobrança de valor por ocasião da transferência da superfície - art. 1.372, parágrafo único |
É omisso em relação ao pagamento pela transferência |
Prevê a extinção por desapropriação – art. 1.376 |
É omisso em relação à extinção por desapropriação |
Não impõe expressamente a necessidade de averbação da extinção |
Determina que a averbação da extinção no Cartório de Registro de Imóveis é necessária – art. 24, §2º |
Fonte: Elaborado pela autora.
Quando o Código Civil dispõe, em seu artigo 1.369, parágrafo único, que não é permitida obra no subsolo, salvo se for inerente ao objeto da construção, não fica evidente a intenção do legislador. Assim não seria viável um direito de superfície para a construção de uma garagem subterrânea, mas seria possível a construção de tal garagem, desde que sobre ela fossem edificados diversos andares, como, por exemplo, uma superfície tendo como objeto a construção de um centro comercial.
Perceba-se que o parágrafo primeiro do artigo 21 do Estatuto da Cidade regula diferentemente que o Código Civil, pois, expressamente, se refere à utilização do subsolo, da superfície e do espaço aéreo.
O que a maioria ainda desconhece é a possibilidade de compra do espaço aéreo à frente de um imóvel, através do direito de superfície, sendo compreensível e natural a insatisfação de alguém que efetuou a compra de um imóvel com uma bela vista da cidade e se depara futuramente com uma construção vizinha, tirando assim a privacidade e desvalorizando seu imóvel.
É importante salientar que a extinção automática do direito de superfície no Estatuto da Cidade ocorre pelo término do prazo contratual ou pelo descumprimento das obrigações contratuais assumidas pelo superficiário. Assim, em tese, não é necessário, nesses casos, requerer ao Judiciário a rescisão do contrato, podendo o proprietário desde logo pedir a sua reintegração na posse, liminarmente, bastando provar, já na petição inicial, por documentos, a causa da extinção do direito de superfície (descumprimento das obrigações do superficiário ou término do contrato). Ocorre aqui mais uma divergência entre as duas leis, pois no Código Civil não há previsão de extinção automática, sendo recomendado que, nos contratos de superfície de áreas rurais, as partes insiram cláusula expressa de extinção no caso de descumprimento das obrigações do superficiário ou de término do prazo, independentemente de prévia notificação.
Analisando-se a obra de Rima Gorayb (2007, p. 113), nota-se que a intenção do legislador ao criar um instituto jurídico que possibilitasse uma nova modalidade do uso do solo foi louvável e necessária.Todavia, daí resultou instituto de denominação nitidamente administrativa e que, no entanto, cria entre nós um novo direito real que passou a ser denominado concessão de direito real de uso; um instituto híbrido, portanto, de denominação ambígua. Percebe-se que seu objetivo principal é provocar a utilização de terrenos que permanecem estéreis, tanto aqueles pertencentes aos poderes públicos como os de particulares.
Afinal, qual a utilização prática desse instituto? Alguns exemplos podem ser citados:
- instalação e exploração de estacionamento;
- construção de hotel ou restaurante em terreno de outrem, para exploração dessas atividades;
- instalação de equipamentos e estruturas para transmissão de telecomunicações por rádio, TV ou outro veículo de comunicação;
- construção para abrigar eventos esportivos, como alojamentos ou arenas esportivas;
- plantação de hortaliças em terreno alheio, para exploração do ramo de alimentos orgânicos;
- outros;
Interessante notar o crescente interesse pelo direito de superfície por parte do Poder Público, visto que o mesmo poderá ter larga utilização nos planos de urbanização sobre terras públicas e nos planos habitacionais destinados ao assentamento de famílias de baixa renda.
Dentre outros interesses sociais, os mais significativos no entanto, seriam àqueles voltados para os planos habitacionais. Com efeito, valendo-se do negócio superficiário, o Poder Público disporia de ampla margem de liberdade para modelar o contrato de acordo com os objetivos especificamente perseguidos.