RESUMO: O presente trabalho visa a analisar a regra que impõe a vedação à liberdade provisória nos crimes de tráfico de drogas, inserta no art. 44 da lei 11.343/2011 com base nos preceitos constitucionais e nas características ínsitas às prisões cautelares. Esta análise se faz relevante devido ao crescente número de decisões que aplicam referida regra sem qualquer apreciação crítica de suas implicações. É dizer, priva-se a liberdade de um ser humano de maneira automática, desarrazoada, sem que se pense nas conseqüências que podem gerar.
Palavras-Chave: Processo penal Constitucional; Liberdade Provisória; Prisão Preventiva; Tráfico de Drogas; Incompatibilidade com o Ordenamento Jurídico.
SUMÁRIO:1. INTRODUÇÃO..2. A LIBERDADE PROVISÓRIA NO TRÁFICO DE DROGAS..2.1 A Vedação. 2.1.1 As implicações da vedação. 2.2 A Incompatibilidade da Vedação com a Ordem Jurídica. 2.2.1 Os Regramentos Constitucionais. 2.2.2 Inafiançabilidade e Liberdade Provisória. 2.2.3 Liberdade como Regra e Sopro de Esperança. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..
1. INTRODUÇÃO
Ao longo da história, o homem vem desenvolvendo formas de garantia de um direito fundamental a qualquer pessoa: a liberdade. Já em 1215, a Magna Carta, imposta ao rei inglês João Sem-Terra, trazia previsão expressa de garantia da liberdade do homem. É certo que tal documento foi pensado para proteger, apenas, a nobreza. No entanto, de modo reflexo, seus efeitos foram estendidos a grande parcela da população.
Com o passar do tempo, outros movimentos contrários às arbitrariedades dos governantes ocorreram, sendo os mais emblemáticos a Revolução Francesa e a Independência das Treze Colônias (Estados Unidos). Em decorrência destes movimentos, declarações de direitos foram assinadas, afirmando, entre outros, o direito fundamental à liberdade: nos Estados Unidos, a Declaração de Direitos do Bom Povo de Virgínia e, posteriormente, a Declaração de Independência; na França, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
No pós-Segunda Guerra, mais um documento reafirmando os direitos do homem foi assinado. Em 1948, foi adotada pela ONU a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em seus primeiros artigos traz a previsão do direito fundamental à liberdade, direito este inerente a todos os homens.
No Brasil, a história de luta pela liberdade também se desenvolveu, agravada pela hedionda escravidão. Em 1835, tivemos a Revolta dos Malês, em Salvador, organizada por escravos muçulmanos, que buscou a libertação dos demais escravos de religião islâmica. Esta não foi a única revolta da época. Em verdade, devido ao período conturbado da Regência, outros levantes ocorreram, muitos com a bandeira de luta pela liberdade. No entanto, não foi neste período que ocorreu o primeiro movimento libertário no país. Na última década do século XVIII, aconteceram a Inconfidência Mineira e a Conjuração Baiana, movimentos influenciados pelos ideais iluministas.
Estes acontecimentos acabaram por influenciar diretamente o direito. Afinal, para garantir a liberdade dos homens, são necessários mecanismos jurídicos. O primeiro a ganhar importância foi o Habeas Corpus, proveniente da já citada Magna Carta, que tutelava (e ainda o faz) a liberdade de locomoção. No entanto, não foi o único instituto criado com este objetivo. Com o passar do tempo, o estudo da liberdade humana, em todas as suas vertentes, evoluiu. Novos institutos jurídicos foram criados com o intuito de garantir tal direito, entre eles o da liberdade provisória.
O instituto da liberdade provisória visa garantir que o preso em flagrante possa responder ao processo livre. Evita, portanto, que a pena seja antecipada, o que é de todo rejeitado pelo nosso ordenamento jurídico. No Brasil, encontra previsão desde as Ordenações Afonsinas, com um caráter eminentemente pessoal. No regime constitucional do império, adquiriu natureza real, já que sua concessão ocorria exclusivamente mediante fiança. O mesmo regime foi mantido na Constituição de 1891 e nas subseqüentes Cartas Constitucionais, exceto a de 1937.
Na Constituição atual, encontra previsão no art. 5º, LXVI. No entanto, sua aplicação vem sendo sistematicamente limitada por leis ordinárias decorrentes da pressão social. Maior expoente disso é a Lei de Crimes Hediondos, lei 8.072/90, que em seu art. 2º, II, na redação original, vedava a concessão desta garantia.
No ano de 2006 foi publicada a lei 11.343, trazendo novo regramento acerca do delito de tráfico de drogas, revogando as suas predecessoras lei 6368/75 e a natimorta lei 10.409/03.
A lei ora analisada, respondendo aos anseios da sociedade, acabou por endurecer o tratamento dispensado a determinados institutos penais (tanto de direito material como de direito processual), tais como o sursis, a liberdade provisória e a substituição de penas. Tal fenômeno ocorreu como resposta ao crescimento da criminalidade e ao sentimento de impunidade decorrente das freqüentes ondas de violência que vêm assolando as grandes cidades do país nos últimos anos.
O art. 44 da lei em comento endureceu o tratamento a determinados institutos jurídicos que representam verdadeiros benefícios ao acusado. Diz a lei:
“Os crimes previstos nos arts. 33 caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.”
Como que refletindo este endurecimento no tratamento, dados do Ministério da Justiça apontam que, em dezembro de 2007, a população carcerária chegava a números assustadores de 422.590. Hoje, esta marca ultrapassou a casa dos 500.000 presos.
No tocante às prisões provisórias, este quadro não é diferente. Em dezembro de 2007, 127.562 presos encontravam-se na situação de provisoriedade. Já em dezembro de 2010, 164.683. Houve, portanto, um aumento de 29% na população carcerária em caráter provisório. Estes números representam, em média, 30% da população carcerária total do país.[1]
Todo este contingente carcerário encontra-se em condições precárias de vida, em penitenciárias abarrotadas que abrigam um número de presos muito acima de sua capacidade, o que é apenas mais uma evidência da falência do sistema prisional brasileiro. Nesta mesma realidade encontram-se os presos preventivos e os já condenados. Ou seja, aqueles presumidamente inocentes ocupam o mesmo espaço destinado àqueles já condenados, o que vai de encontro ao bom senso, ao ordenamento jurídico, pois viola o art. 300 do Código de Processo Penal e, mais importante, ao princípio da dignidade da pessoa humana, e acaba contribuindo para que muitos presos que não possuem uma conduta imbuída de agressividade, passem a desenvolvê-la ante às injustiças com que convivem diariamente no cárcere.
Tudo isto é somado ao potencial estigmatizador que a prisão apresenta em relação ao preso. O processo penal em si já é capaz de marcar a vida de uma pessoa perante a sociedade, o que dizer então de uma prisão, ainda que cautelar. Toda a sociedade passa a olhar o indivíduo como um criminoso sem, sequer, buscar entender o ocorrido. E isto é agravado pela atuação da mídia que, de maneira indiscriminada e descuidada, relata fatos muitas vezes carentes de corroboração. No calor do momento, a imprensa passa a rotular o suspeito de cometimento do delito e acaba por fomentar no público uma sensação de indignação, aumentada pela morosidade do Judiciário (no processo penal, necessária), o que possibilita o crescimento da sensação de impunidade que afeta a sociedade como um todo.
Com este quadro em mente, faz-se necessário o seguinte questionamento: são verdadeiramente necessárias todas estas prisões? Como que buscando responder esta pergunta, o legislador trouxe sadia inovação no nosso ordenamento jurídico com a edição da lei 12.403/2011 que alterou profundamente o regime das medidas cautelares. Foram positivados os princípios da excepcionalidade da segregação cautelar, da proporcionalidade, consubstanciada na necessidade da medida, o que demonstra o caráter descarcerizador da norma.
Por outro lado, a nova redação do art. 323 trouxe para o Código de Processo Penal a regra da inafiançabilidade de determinados crimes, entre eles o tráfico de drogas, contribuindo para a polêmica jurisprudencial acerca da vedação à liberdade provisória contida na lei de Drogas. Isto porque muitos de nossos tribunais vêm entendendo esta vedação como decorrente da inafiançabilidade expressa na Constituição e repetida na legislação infraconstitucional.
Ou seja, de uma maneira geral a lei busca arrefecer o tratamento dado às prisões, o que é consentâneo com o espírito constitucional de consagração da presunção de inocência, mas neste ponto específico, dá azo a interpretações duvidosas acerca da possibilidade de vedação da liberdade provisória.
É neste contexto que surge mais este trabalho sobre o tema da vedação à liberdade provisória no tráfico de drogas. Porém, e isto é deveras importante ser ressaltado, o que aqui será dito, não se aplica somente aos delitos ligados à traficância de entorpecentes. Foi feita apenas uma escolha devido à relevância do delito em si, demonstrada pelos números: do total de presos acima exposto, observa-se que 20% da população carcerária masculina se encontravam nesta condição devido ao cometimento dos crimes previstos nas leis de drogas, seja a atual, lei 11.343/2006, ou a anterior, lei 6.368/76. Em relação à população carcerária feminina, os números chegam a 59%.
2. A LIBERDADE PROVISÓRIA NO TRÁFICO DE DROGAS
2.1 A Vedação
O tráfico de drogas é, de acordo com a Constituição e interpretação doutrinária, crime equiparado aos hediondos. Esta expressão foi cunhada pelo constituinte originário, que considerou determinados delitos mais graves. Como forma de transparecer esta maior gravidade, elencou algumas formas de tratamento mais gravosas a estes delitos, tais como a inafiançabilidade (art. 5º, XLIII, CRFB).
Posteriormente, foi editada a lei 8.072/90 para dar concretude ao comando constitucional. Neste sentido, a lei definiu os crimes hediondos e repetiu o conteúdo da norma constitucional do art. 5º, LXIII.
Assim, com base no disposto na referida lei e na Constituição, nossos tribunais vinham impedindo, de forma irrestrita, a aplicação da liberdade provisória aos delitos hediondos e equiparados, sob o argumento que a vedação decorria da própria inafiançabilidade do delito. Para ilustrar, veja-se a seguinte ementa:
RESP - HOMICÍDIO QUALIFICADO TENTADO - CRIME HEDIONDO - RÉU PRESO EM FLAGRANTE - LIBERDADE PROVISÓRIA - IMPOSSIBILIDADE - ART. 2º, II, DA LEI Nº 8.072/90.
1. Tratando-se de crime hediondo, a norma contida no art. 2º, inc.II, da Lei nº 8.072/90 é taxativa quanto à vedação da liberdade provisória. 2. Iterativa jurisprudência, do Excelso Pretório e desta Corte, afirma a constitucionalidade de tal preceito. 3. Recurso conhecido.[2]
Nesta esteira, com o intuito de endurecer o tratamento a outros crimes, o legislador tratou de vedar a aplicação da liberdade provisória através das leis do Crime Organizado e de Lavagem de Capitais e do Estatuto do Desarmamento. Entretanto, problema sério apresentam estas disposições, pois não possuem qualquer base para existirem, já que limitam a liberdade individual de maneira arbitrária, ignorando todo o arcabouço constitucional de garantias. Ademais, não versam sobre crimes hediondos ou equiparados, o que enfraquece sobremaneira a existência destas vedações no ordenamento jurídico pátrio.
Porém, conforme anteriormente ressaltado, através da ADI 3112-1, foi declarada a inconstitucionalidade do dispositivo que veda a liberdade provisória no Estatuto do Desarmamento. O mesmo tratamento deveria ser dispensado às outras duas leis, no tocante à vedação.
Em meio a um aumento significativo na criminalidade no país, sobretudo em relação ao delito de tráfico de drogas e seus correlatos, o legislador resolveu endurecer o tratamento a ele dispensado. Neste sentido, no art. 44 foi colocada regra que as leis anteriores que versavam sobre o tema não continham: a inafiançabilidade e a vedação à liberdade provisória, ao sursis, ao indulto, à graça e à anistia.
Ao fazer isto, o legislador reforçou o problema existente em relação à vedação em abstrato da liberdade provisória no tráfico de entorpecentes. Os tribunais, de uma maneira geral, passaram a aplicar com mais força a proibição. Agora, pautados não apenas na Constituição e na lei de Crimes Hediondos, mas também em uma lei específica.
Entretanto, em 2007 foi editada a lei 11.464 que alterou o art. 2º, II da lei 8072/90, que versava sobre a vedação de fiança e de liberdade provisória nos crimes hediondos e equiparados, suprimindo esta última. O dispositivo passa a vedar apenas a concessão de fiança.
Assim, cogitou-se em doutrina que a vedação à liberdade provisória contida no art. 44 da lei 11.343/2006 teria sido derrogada pela lei 11.464/2007. Porém, não é assim que têm se manifestado nossos tribunais.
Com isso, pode se dizer que a jurisprudência, de maneira majoritária, vem entendendo que a lei 11.464/2007 não teve o condão de revogar a vedação contida no art. 44 da lei 11.343.
Cabe ressaltar que o entendimento anterior de que a vedação em abstrato à aplicação da liberdade provisória decorre da inafiançabilidade expressada na Constituição continua bastante atraente para nossos tribunais. Afirmam os defensores desta tese não ser razoável impedir a aplicação da liberdade provisória com fiança, mais onerosa ao indivíduo, e, ao mesmo tempo, permitir a aplicação de sua modalidade sem fiança, que importa em menores restrições.
Neste sentido, seria possível a vedação à aplicação da liberdade provisória com base tão somente no dispositivo legal que versa sobre o tema, sem qualquer análise acerca da presença dos requisitos necessários para a aplicação da prisão cautelar no caso concreto, sendo suficiente a mera remissão ao art. 44 da Lei de Drogas.
Em doutrina, o entendimento pela vedação à aplicação da liberdade provisória também encontra ressonância. Guilherme de Souza Nucci, por exemplo, apresenta argumento no sentido de que o art. 5º, LXVI da Carta Magna, que versa sobre a liberdade provisória, admite que ela seja limitada pela norma infraconstitucional sem que haja qualquer vilipêndio ao texto constitucional.[3]
Hoje, após o advento da lei 12.403/2011, que alterou o regime das cautelares penais, esta questão ganha novos contornos. O novel art. 319 do Código de Processo Penal prevê diversas medidas cautelares aplicáveis de modo a evitar o encarceramento de um indivíduo. Assim, poderia surgir o questionamento acerca de eventual irrelevância da inafiançabilidade e da vedação da liberdade provisória face ao novo regime. Entretanto, se considerarmos a lógica presente no raciocínio acima esposado, podemos concluir que o mesmo também se aplica aqui, o que importaria na inafiançabilidade impossibilitando a aplicação de qualquer outra medida cautelar que não a prisão. Ora, se vedada a concessão de fiança, medida onerosa ao indivíduo, diriam os defensores desta tese não ser possível que se alcance a liberdade por meio menos gravoso.
Com base no exposto, possível perceber que o argumento nodal a favor da legitimidade desta vedação da liberdade provisória baseia-se no texto constitucional, em especial no dispositivo que afirma ser o tráfico de entorpecentes inafiançável. O art. 44 da lei 11.343/2006, ao vedar a sua aplicação, daria concretude à norma constitucional, sendo desnecessário qualquer outro fundamento para a segregação do preso em flagrante.
2.1.1 As implicações da vedação
Quando um magistrado aplica o disposto no art. 44 da lei 11.343/2006 e impede que seja aplicada a liberdade provisória a um preso em flagrante, conseqüentemente, impõe que o mesmo venha a responder ao processo no cárcere. Neste sentido, para que esta conversão seja válida, devem ser invocados os requisitos exigidos para a aplicação de uma medida cautelar previamente elencados. Caso contrário, haverá a segregação de um indivíduo com base, apenas, em uma medida precária, de natureza meramente pré-cautelar, que não tem o condão de manter alguém preso por si só.
Ademais, aplicada esta regra de maneira irrestrita e impensada, cria-se um cenário que fere substancialmente não só a liberdade como a igualdade, já que pessoas em uma mesma situação seriam tratadas de formas distintas. Ao preso em flagrante, o cárcere; àquele que logrou êxito em escapar do flagrante, a liberdade.
Demais disso, a prisão tem o potencial para causar conseqüências graves. Ela, qualquer que seja, é extremamente prejudicial devido à sua capacidade de estigmatizar o indivíduo perante seus pares. As possibilidades dele conseguir sua reinserção social restam diminutas e sua vida na sociedade é duramente afetada.
Assim, pode-se falar em duas dimensões de estigmatização: uma social e uma econômica. Pela social, o indivíduo vê suas oportunidades a vida reduzidas, posto que passa a ser visto como um inimigo da sociedade. Ele passa a ser a escória, “um cidadão de última categoria”.[4]
Além disso, a auto-estima do preso fica abalada. A própria moral do indivíduo é afetada, impossibilitando que ele se veja como parte da coletividade, quadro este agravado pela segregação social imposta pelos demais membros da sociedade no pós-cárcere.
No aspecto econômico, há uma conseqüência direta desta segregação do indivíduo. Preso, não tem oportunidades profissionais por razões óbvias. Já no pós-cárcere, vê um número muito reduzido de possibilidades de emprego. São poucos os cidadãos dispostos a abrir suas atividades econômicas para indivíduos com passagem pelo cárcere. Não raro, nem perguntam a razão de tal passagem; apenas se limitam a rejeitar aquela pessoa.
Por isso, diz-se a prisão medida excepcional. Para que ela seja implementada, deve passar por todo o trâmite processual, com a observância dos requisitos decorrentes do devido processo legal, tais como o contraditório e a ampla defesa, pois limita sobremaneira o direito fundamental de liberdade de um indivíduo. No atinente às prisões cautelares, devem ser observados, ainda, o fumus commissi delicti e o periculum libertatis, como requisitos obrigatórios.
Outra grave conseqüência da vedação irrestrita à liberdade provisória podemos encontrar nos números estatísticos. Nos últimos 20 anos, houve um aumento de 1253% no número de presos provisórios no nosso sistema penitenciário[5]. Muitos destes são, com toda a certeza, decorrentes da conversão automática do flagrante em preventiva dado o número elevado de prisões decorrentes deste delito.
Este quadro contribuiu para o aumento vertiginoso no número de habitantes do sistema prisional pátrio. Em 2010, chegou-se à assustadora marca de 500.000 detentos. Deste total, aproximadamente 40% se encontram em situação de cautelaridade, presos sem que haja uma sentença definitiva.
Por conta destes dados, é fundamental que se faça uma análise crítica acerca da vedação à aplicação da liberdade provisória nos crimes de tráfico de drogas.
2.2 A Incompatibilidade da Vedação com a Ordem Jurídica
Preliminarmente, entende-se pela derrogação do disposto na lei 11.343/2006. Porém, ainda que se entenda pela subsistência da vedação, o dispositivo da Lei de Drogas encontra-se em claro conflito com o restante do ordenamento jurídico.
Como visto acima, a lei 11.464/2007 modificou o regime dos crimes hediondos também em relação à liberdade provisória, tendo sido suprimida do art. 2º, II da lei 8072/90 a expressão que a ela fazia alusão.
Claro está, portanto, que, hoje, após esta alteração, fica possibilitada a aplicação da liberdade provisória aos crimes hediondos. Assim, preso em flagrante um indivíduo pelo cometimento de um latrocínio, por exemplo, poderá ele responder ao processo em liberdade caso não estejam presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis para a aplicação da prisão preventiva. Nada impede que, estando presentes elementos suficientes, possa o magistrado aplicar a liberdade provisória.
O mesmo se aplica aos delitos equiparados a hediondos que não possuem legislação específica regulando-os ou suas leis não versam sobre o assunto liberdade provisória. No entanto, em relação aos delitos relacionados ao tráfico de drogas, que possui legislação específica tratando do tema, fica a pergunta: pode ser aplicada a liberdade provisória após a alteração realizada pela lei 11.464/2007?
Há quem entenda que não. Afirmam que a lei de Drogas é norma especial e deve se sobrepor às alterações realizadas na lei 8072/90, já que esta é a norma geral que rege os crimes hediondos. Neste sentido, aplicam pura e simplesmente o critério da especialidade para concluir desta forma. Como visto mais acima, esta é a posição majoritária de nossos tribunais.
Este é um caso de antinomia jurídica que, em regra, é resolvido pelos critérios clássicos de hermenêutica jurídica: o critério cronológico, o critério da especialidade e o critério hierárquico.
Para a resolução de um conflito de normas, deve o intérprete, primeiramente, lançar mão do critério hierárquico: verificar qual norma é superior na pirâmide kelseniana. Assim, em qualquer conflito entre a Constituição, norma superior que habita o topo da pirâmide, e uma lei infraconstitucional, será aplicada a Carta Magna.
Em sendo as normas em choque de mesma hierarquia, utiliza-se o critério da especialidade. Explicitado pelo brocardo latino lex specialis derogat legi generali, impõe que se uma norma tratar do assunto de maneira mais específica, deve esta prevalecer sobre a que versa de maneira meramente geral.
Não sendo resolvido o conflito com base nos dois critérios previamente esposados, deve ser utilizado o critério da anterioridade, representado pelo brocardo latino lex posteriori derogat lex priori, que impõe a prevalência da regra mais recente em relação à mais antiga.
Esta é o raciocínio aplicado quando há a chamada antinomia de primeiro grau ou aparente, ou seja, conflito puro e simples entre normas. Neste caso, pela lógica do sistema, possível chegar à harmonização entre as normas. Entretanto, há a possibilidade de existência das antinomias chamadas reais ou insolúveis, que são aquelas para as quais o sistema não encontra soluções prontas para resolvê-las. Elas dependem da avaliação do caso concreto.
Dentre as chamadas antinomias reais, estão as antinomias de segundo grau que decorrem do conflito entre dois dos critérios previamente elencados para a resolução dos conflitos, como no caso de haver um choque entre uma norma inferior posterior e uma norma superior anterior. Cabe, desde logo, ressaltar que o critério hierárquico vence sempre. Assim, norma superior irá sempre prevalecer neste confronto. O real problema está no conflito entre norma geral posterior e norma especial anterior.
Em geral, a solução se daria pela aplicação da meta-regra lex posteriori generalis non derogat lex priori speciali. Ou seja, haveria uma prevalência da do critério da especialidade. Entretanto, não é a todos os casos que será aplicada esta solução. Dependendo do caso concreto, pode haver um resultado diferente. O magistrado, de acordo com critérios outros que não os três clássicos, tais como a eqüidade, os costumes ou até mesmo o, hoje em desuso, lex favorabilis derogat lex odiosa, pode solucionar o conflito da forma mais justa para aquele caso específico.
Assim, não é sempre que lei especial prevalecerá sobre a lei geral. Aliás, o Superior Tribunal de Justiça já entendeu desta forma em caso que versava sobre a contagem do prazo para a interposição de embargos à execução para a penhora hipotecária, sendo os embargantes cônjuges. A lei 5.741/71, que versa sobre o financiamento de imóveis vinculados ao Sistema Financeiro de Habitação, prevê prazo de 10 dias a iniciar da intimação da penhora, diferente do disposto no Código de Processo Civil que, após alteração datada de 1994, através da lei 8953, em seu art. 738, I, prevê prazo de 15 dias para apresentação de embargos contados a partir da juntada da citação de ambos os cônjuges.
Entendeu o Superior Tribunal de Justiça que deveria prevalecer o regramento contido no Código de Processo Civil, norma geral posterior, em detrimento da lei 5471/71, norma especial anterior. Isto porque a alteração levada a cabo, em 1994, pela lei 8953, não fez qualquer ressalva quanto à lei especial, nela operando, portanto, verdadeira alteração.[6]
Percebe-se, portanto, grande semelhança do caso analisado pelo Superior Tribunal de Justiça com o ora em análise. A lei 11.464/2007, que alterou a lei geral dos crimes hediondos, posterior à lei especial do tráfico de drogas, como exaustivamente abordado, modificou o regime da liberdade provisória nos delitos hediondos e equiparados, passando a possibilitar sua aplicação.
Assim, pode-se dizer que a lei 11.343/2006, no tocante à liberdade provisória, foi derrogada pela lei 11.464/2007, posto que esta não fez qualquer ressalva em relação àquela, tratando, portanto, da aplicação da medida a todos os crimes hediondos e equiparados.
Ademais, o legislador, ao manter na redação do caput do art. 2º, II da lei 8072/90, o delito de tráfico ilícito de entorpecentes, não retirou este crime de seu âmbito de aplicação, o que demonstra a vontade do legislador em possibilitar a liberdade provisória para os detidos pela prática dos delitos ligados à traficância de entorpecentes.
Entendendo desta mesma forma, Aury Lopes Junior diz que o art. 44 da lei 11.343/2006 “não mais subsiste diante da alteração legislativa contida na Lei nº 11.464.” [7]
Concluir de maneira distinta é legitimar tratamento desigual a pessoas na mesma condição, violando, portanto, a igualdade material que impõe o mesmo tratamento a quem se encontra na mesma situação. Mais, permitir a liberdade provisória a crime verdadeiramente dotado de hediondez e vedá-la a crimes meramente equiparados a hediondos, inverte toda a lógica do sistema, pois trata de maneira mais gravosa pessoa em situação de reprovabilidade menor e, de outro lado, trata de maneira mais branda quem se encontra em situação de maior reprovabilidade.
Assim, pelas razões expostas, percebe-se que a lei teve o condão, sim, de derrogar tacitamente o conteúdo do art. 44 da lei de Drogas, diferentemente do que vêm entendendo de maneira majoritária nossos tribunais. Portanto, não mais subsiste no nosso ordenamento jurídico a vedação à liberdade provisória nos crimes de tráfico de drogas.
2.2.2 Os Regramentos Constitucionais
Ainda que não se entenda pela derrogação do art. 44 da lei de Drogas, fato é que a vedação à aplicação da liberdade provisória vai de encontro a todo o sistema constitucional montado em torno do instituto.
O constituinte consagrou a liberdade provisória como garantia fundamental ao indivíduo. Dispôs que ninguém poderá ser preso quando possível a aplicação da medida, seja com ou sem fiança. A partir desta disposição, é possível chegar a duas conclusões que indicam dois raciocínios extremamente importantes para apontar o equívoco da vedação à liberdade provisória não só nos delitos de tráfico de drogas, como em qualquer hipótese: 1) a liberdade é a regra do sistema; a prisão, a exceção; 2) existem duas modalidades de aplicação da medida: uma com fiança e outra sem fiança. À primeira vista, estas conclusões podem parecer óbvias e/ou insignificantes, mas são bastante significativas. Por razões didáticas, elas serão tratadas separadamente.
2.2.2.1 Inafiançabilidade e Liberdade Provisória
Como visto acima, existem duas grandes espécies de liberdade provisória: uma com fiança e outra sem fiança. Isto está expresso na Constituição. Também consta do texto constitucional que os crimes hediondos e os a eles equiparados são considerados inafiançáveis. Inclusive, é desta última regra que nossos tribunais vêm retirando a impossibilidade de aplicação da liberdade provisória a estes delitos. Entretanto, esta conclusão é de todo equivocada. Senão vejamos.
O Código de Processo Penal, em sua redação original, previa que a única forma de se alcançar a liberdade após a lavratura de um auto de prisão em flagrante era através da liberdade provisória com fiança (à exceção das hipóteses em que presentes causas excludentes de ilicitude). Caso o crime fosse inafiançável, deveria o indivíduo deveria responder ao processo preso. Operava-se, portanto, uma presunção de culpabilidade do indivíduo.
Neste sentido, dizer, àquela época, que determinado crime era considerado inafiançável, realmente possuía algum significado, pois se preso em flagrante pelo cometimento de tais crimes, o indivíduo via sua liberdade cerceada. Desta forma, a inafiançabilidade significava que a liberdade provisória era vedada (ainda que criticável, fazia sentido para a época).
Isto é muito bem explicado pela influência que sofreu o nosso Código da conjuntura da época. O diploma processual penal data de 1941, pleno Estado Novo, governo ditatorial de inspirações claramente fascistas. E isto refletiu diretamente na legislação da época. Inspirado no Código Rocco italiano de 1930, de origem fascista, traz um espírito repressivo bastante acentuado, como é possível perceber da simples leitura da sua Exposição de Motivos:
As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência das provas, um extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do individuo sobre o da tutela social. Não se pode contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum. (...) Este o critério que presidiu à elaboração do presente projeto de Código.
Com a edição da lei 6.416 em 1977, houve uma virada completa neste regime. Referida lei modificou o Código de Processo Penal, a ele acrescentando o parágrafo único do art. 310 que previa hipótese de aplicação da liberdade provisória sem fiança. Esta seria aplicada caso não estivessem presentes as razões para a decretação da prisão preventiva. Esta modalidade passou a ser a regra, como bem aduz Eugênio Pacelli de Oliveira.[8]
Assim, até a alteração operada no ano de 1977, a única espécie de liberdade provisória era mediante fiança. A partir de então, passou-se a admitir a aplicação da medida sem a prestação da caução como regra, já que esta era (e ainda é) aplicável a qualquer crime, ainda que inafiançável. A alteração, portanto, tornou sem sentido esta expressão, já que uma pessoa poderia alcançar sua liberdade nos delitos ditos inafiançáveis apenas mediante a vinculação ao processo. Portanto, depois da edição da supracitada lei, dizer que um delito era considerado inafiançável perdeu todo o sentido que um dia teve. Significa, apenas, a vedação da aplicação da fiança, mas, como visto, o indivíduo pode alcançar sua liberdade através da liberdade provisória sem fiança.
O constituinte, portanto, ao trazer para o texto da Carta Magna a expressão inafiançabilidade demonstrou desconhecimento do assunto e falta de técnica. Não se nega que a sua intenção tenha sido a de endurecer o tratamento a determinados crimes. Porém, o fez de maneira totalmente equivocada. Ao mesmo tempo em que veda a fiança para os delitos chamados hediondos, prevê a possibilidade de aplicação da liberdade provisória com ou sem fiança. Ou seja, ele apenas previu que àqueles delitos não será possível a aplicação da liberdade provisória com fiança.
Assim, a inafiançabilidade apenas impossibilita a concessão da liberdade provisória com fiança. Como diz Gilmar Mendes, “a simples inafiançabilidade não impede a concessão da liberdade provisória.” [9]·. Neste sentido, Eugênio Pacelli de Oliveira:
“Por isso, quando a Constituição veio a se referir à inafiançabilidade para os crimes de racismo e de tortura, e outros, incluindo os previstos no Estatuto do Desarmamento (arts. 14 e 15) e na Lei de Tóxicos (Lei nº 11.343/06), a única conclusão que se poderia e que se pode extrair do texto é a vedação da concessão da liberdade provisória com fiança.” [10]
E interpretar de maneira distinta, como vem fazendo nossos tribunais, importa em grave erro. Como já ressaltado, a liberdade provisória é garantia fundamental prevista para tutelar o direito de locomoção do indivíduo, direito fundamental. Entender que a inafiançabilidade comporta a impossibilidade de liberdade provisória tanto com fiança como sem fiança é restringir direitos fundamentais onde o constituinte não o fez. É estender a restrição para além do previsto no texto constitucional. O que não pode ser feito, pois toda e qualquer norma que imponha limitações a direitos fundamentais deve ser interpretada de maneira restritiva.
Assim, a interpretação, freqüentemente utilizada por grande parte de nossos tribunais, de que a vedação à liberdade provisória decorre da inafiançabilidade dos crimes hediondos e equiparados, prevista no texto constitucional, se mostra de todo equivocada e deve ser prontamente rechaçada.
2.2.2.2 Liberdade como Regra e Sopro de Esperança
Diz o art. 5º da Constituição, em seu caput, que a liberdade é direito fundamental, garantida a todos sua inviolabilidade. Entretanto, a doutrina clássica dos direitos fundamentais afirma, com muita propriedade, que os direitos fundamentais não gozam de intangibilidade absoluta, podendo ser limitados quando em confronto com outros direitos de igual ou superior valor na ordem jurídica.
Neste sentido, o art. 5º, LXVI prevê que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando for admitida a liberdade provisória, ou seja, admite que um indivíduo seja preso quando presentes os requisitos ínsitos à medida restritiva. Assim, a ciência criminal tem o condão de restringir a liberdade de um indivíduo, seja através de uma medida cautelar, seja através de uma pena.
No entanto, ressalte-se que, pelo mesmo dispositivo constitucional, é possível se entender que a prisão é medida excepcional, pois não admitida quando possível a aplicação de liberdade provisória. É dizer: a regra do nosso ordenamento jurídico é a liberdade do indivíduo; a prisão é a exceção. Esta conclusão se coaduna com o espírito da Constituição, que traz todo um sistema de garantias inerentes ao indivíduo pautado na presunção de inocência e protegido pelo devido processo legal, através da exigência do contraditório e da ampla defesa.
A regra do art. 44 da lei 11.343/2006, ao vedar a aplicação da liberdade provisória, impõe que o preso em flagrante venha a responder ao processo preso de maneira automática, sem qualquer juízo acerca da necessidade da segregação. A prisão, assim, decorre da lei, com base apenas no flagrante.
Como é sabido, a prisão, salvo em função do flagrante delito, decorre de ordem judicial, seja em razão de cautelaridade, seja após o trânsito em julgado de sentença condenatória, conforme inteligência do art. 5º, LXI da Constituição. Percebe-se, portanto, que a lei não pode, de maneira alguma, prever hipótese de prisão obrigatória. Ela só tem o condão de delimitar as circunstâncias e os requisitos para a prisão, de acordo com a política criminal da época.
Isto é de essencial compreensão. Entender que a vedação decorre pura e simplesmente da lei é legitimar a prisão ex lege, que, em última análise, é o que vem sendo feito por nossos tribunais.
Há, portanto, uma afronta direta ao texto constitucional, pois prende-se sem qualquer justificativa para tanto, única e exclusivamente com base no flagrante. Há, portanto, uma inversão na presunção: presume-se a culpabilidade do indivíduo, o que nos remete ao espírito original do Código de Processo Penal, de orientação fascista.
A Constituição prevê que a liberdade é a regra e a prisão é excepcional, devendo ser devidamente fundamentada para que seja dotada de validade. No caso das prisões no curso do processo, devem se fundar nas razões ínsitas às medidas cautelares quais sejam, o fumus comissi delicti e o periculum libertatis.
A disposição do art. 44 da lei de Drogas parte do pressuposto de que a prisão será sempre necessária, sem que se considere as circunstâncias específicas do caso concreto. A necessidade da prisão decorre, portanto, diretamente da lei, o que acaba por retirar do juiz o poder de avaliar a presença dos requisitos insertos no art. 312 do Código de Processo Penal.
Assim, tendo em vista o disposto no art. 5º, LVII da Constituição, que prevê a presunção de inocência, a proibição da liberdade provisória prevista no art. 44 da lei 11.343/2006 é flagrantemente inconstitucional.
Além disso, referido dispositivo inverte o regramento constitucional que exige a fundamentação para toda e qualquer decisão que imponha uma prisão, já que diretamente impõe a prisão preventiva, afastando a atuação do juiz para avaliar se presentes os requisitos para a segregação.
O principio da inocência impõe que toda prisão, antes do trânsito em julgado, esteja fundada em razões justificadoras da necessidade de se tutelar, de maneira eficaz, a jurisdição penal. Essa análise da efetiva necessidade da prisão, apenas como medida cautelar no processo, deve se basear nas circunstancias do caso concreto e, por isso, constitui função eminentemente jurisdicional.
Consequentemente, a prisão cautelar só poderá ser aplicada nos casos em que clara a presença de seus requisitos, o fumus comissi delicti e o periculum libertatis. Neste sentido, qualquer vedação legal à aplicação da liberdade provisória representa grave afronta aos princípios da inocência e do devido processo legal, já que o legislador não é legitimado para aferir a necessidade da prisão com base, apenas, na gravidade, em abstrato, do delito.
O legislador viola a presunção de inocência quando, no âmbito de uma política criminal de endurecimento do controle de certas atividades, proíbe a liberdade provisória, tornando obrigatória a prisão cautelar do acusado pelos crimes por ele definidos e, dessa forma, retira das mãos do juiz a avaliação da real necessidade dessa medida cautelar. Transforma o juiz, portanto, em uma mera máquina reprodutora daquilo ali previsto.
E isto é inconcebível em um regime de Separação de Poderes como o nosso. Ao legislador, a função de legislar; ao juiz, a função de apreciar o caso concreto e confrontá-lo com todo o ordenamento jurídico.
Ademais, esta prisão obrigatória, além de afrontar a presunção de inocência, viola a regra do devido processo legal. Senão vejamos.
O indivíduo, ao ser preso em flagrante pelo delito do tráfico de drogas, é encaminhado ao juízo, que, por haver a vedação legal, não aplica a liberdade provisória. Ou seja, o mantém preso apenas em função da lei, que, como vimos acima, importa em verdadeira antecipação de pena. Neste sentido, o magistério de Alberto Silva Franco, apoiado em Odone Sanguiné:
“(...) a impossibilidade de concessão da liberdade provisória ‘equivale à privação de liberdade obrigatória infligida como pena antecipada, sem prévio e regular processo e julgamento. É uma espécie de Bill of attainder (reconecido como abusivo pela jurisprudência norte-americana), ou seja, uma ato legislativo que implica considerar alguém culpado diretamente e destinado a infligir-lhe uma sanção sem processo ou decisão judicial’.”[11]
Para que seja aplicada uma pena, deve ser observado todo o trâmite processual, que se faz necessário para assegurar o respeito às garantias do réu. Neste sentido, devem ser observados o contraditório e a ampla defesa, oportunizando-se ao réu a possibilidade de se defender.
O mesmo pode ser dito em relação a uma prisão cautelar. Ao indivíduo deve ser concedida a possibilidade de se manifestar acerca da necessidade de sua aplicação, conforme previamente ressaltado. E esta oportunidade lhe é retirada quando há a determinação de uma prisão apenas com base na lei.
Entendendo desta forma, na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3112-1, que versava sobre o Estatuto do Desarmamento, decidiu-se pela inconstitucionalidade da regra contida no art. 21 que veda a liberdade provisória a determinados delitos ali previstos.
Considerou-se impossível a vedação da liberdade provisória prevista na lei, pois, em última análise, haveria uma legitimação da prisão ex lege, o que não é admitido pela Constituição, que exige decisão fundamentada para a determinação de uma prisão. Afinal, a liberdade é a regra do sistema; a prisão, exceção.
Neste sentido o voto do relator Ministro Ricardo Lewandowski, que, além de entender haver a necessidade de motivação das decisões, em consonância não só com o art. 5º, LIV, mas também com o art. 93, IX também da Constituição, entendeu haver frontal violação à presunção de inocência e ao devido processo legal, no que foi seguido pelos demais Ministros.
Reconhecer a inconstitucionalidade da cláusula que veda a aplicação da liberdade provisória fundamenta-se na necessidade de defesa da ordem constitucional, sobretudo na tutela dos direitos e garantias fundamentais.
Assim, toda esta estruturação argumentativa utilizada para declarar a inconstitucionalidade do art. 21 do Estatuto do Desarmamento pode e deve ser aplicada quando da análise de qualquer caso versando sobre a vedação legal à liberdade provisória. Independente do crime, se hediondo ou não, a situação é a mesma: o legislador faz um juízo de periculosidade do preso em flagrante, retirando da esfera do juiz a decisão acerca da necessidade ou não de se aplicar a medida cautelar.
Não é desta forma, todavia, que vêm entendendo a maior parte de nossos tribunais, como foi visto mais acima, já que, apesar da bem fundamentada decisão na Ação Direta, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal continua aplicando de maneira irrestrita a regra insculpida no art. 44 da lei de Drogas. E neste ponto, é seguida pela grande maioria dos tribunais pátrios. .
Entretanto, a situação na Segunda Turma daquela Corte é diferente. No HC 100.959/TO, por exemplo, entendeu-se pela incompatibilidade da vedação da liberdade provisória, prevista no art. 44 da lei de Drogas, com o ordenamento jurídico brasileiro. Entendeu-se pela excepcionalidade da prisão cautelar cuja necessidade deve ser aferida no caso concreto. Presentes os requisitos para sua aplicação, ela pode ser realizada, sempre de maneira motivada. Caso contrário, a aplicação da liberdade provisória é imperativa.
Desta forma, percebe-se que a não aplicação da liberdade provisória dependerá da análise do caso concreto, consideradas todas circunstâncias que o envolvem, sendo que a prisão cautelar só poderá ser aplicada se observados os requisitos necessários para tanto, respeitadas suas características.