Nos dias atuais, a delação premiada é um tema que vem gerando uma grande polêmica nas mídias sociais, em virtude de uma sucessão de escândalos de ordem política sem precedentes na história do Brasil. Enquanto para muitos é visto como um instituto jurídico que coopera com as autoridades na prevenção e repressão ao crime, para outros não passa de um incentivo da lei para a prática abominável da traição, pela qual o delator obtém prêmio pela dupla vilania. Nesse contexto, convém uma análise aprofundada do instituto da delação premiada, levando em conta não somente seus aspectos legais, em paralelo às bases históricas que a fizeram insurgir no ordenamento jurídico brasileiro, mas também à luz das diferentes escolas filosóficas que poderiam servir para sua justificação e legitimidade.
Delatar é acusar ou imputar um fato a alguém. Em termos processuais, a delação premiada é um meio de prova regulamentado pela legislação vigente, utilizado pelos órgãos estatais que atuam na persecução penal, na busca da elucidação de determinados crimes e seus respectivos autores, em que o Estado oferece benefícios penais para aquele que os confessa e revela a identidade dos concorrentes.
A delação premiada não é originária do Direito Penal brasileiro, mas um instituto importado da legislação estrangeira. O fato que deu origem à delação premiada foi o empenho do governo norte-americano no combate ao crime organizado que se aperfeiçoava no final do século XIX. Nesse período, o constante ingresso de estrangeiros europeus foragidos da intensa guerra que assolava a Europa fez com que uma massa de desempregados ali existente aumentasse substancialmente. Os Estados Unidos, que apesar de não enfrentarem mais os infortúnios da guerra, não foram capazes de absorver o enorme contingente operário, pois passavam por uma crescente crise de superprodução, própria do sistema capitalista da época, e que anos mais tarde iria chegar ao apogeu com a quebra da Bolsa de Nova York.
Os imigrantes, principalmente os de origem italiana, que em sua maioria não foram aproveitados pela indústria, buscavam auxílio entre seus compatriotas para retornar ao país de origem. Entretanto, com o mercado de trabalho exaurido, esses recursos não podiam ser angariados senão pelo crime. Na ocasião, a mais lucrativa atividade ilícita era a venda de bebida alcoólica, pois o governo norte-americano havia proibido sua comercialização com a edição da Lei Seca. Nesse período surgiram as primeiras “famílias”, que mais tarde ficariam conhecidas como “Máfia” - grupos de transgressores da lei que se organizavam de forma muito bem estruturada, com divisão de tarefas, rígida hierarquia, entre outras características de ordem empresarial.
Com o passar dos anos, essas embrionárias organizações criminosas se desenvolveram de modo jamais visto na história contemporânea, conseguindo se infiltrar em setores estratégicos da administração pública, chegando até mesmo a eleger políticos locais e corromper os órgãos policiais. Por volta dos anos trinta do século subsequente, essa realidade tornou-se insustentável, e com o apoio da opinião pública houve uma mudança de rumo na política. O governo dos Estados Unidos procurou deter a expansão do crime organizado e assim proclamou um duro revés contra as famílias italianas ao revogar a Lei Seca e liberar o comércio de bebida alcoólica. Nessa mesma ocasião, líderes mafiosos mundialmente conhecidos acabaram sendo detidos, como Al Capone, “o rei de Chicago”, e Lucky Luciano, o “chefe de todos os chefes”. Como efeito, a sobrevivência da “Cosa Nostra” dependia do redirecionamento de suas atividades para delitos muito mais nocivos, vale dizer, a exploração da prostituição e o comércio de armas e substâncias entorpecentes, modelos de ilícitos que até hoje nenhum Estado encontrou uma fórmula eficaz de combate e prevenção.
Todavia, na busca de uma solução para essa chaga que se abriu em quase todos os cantos do planeta, desenvolveu-se uma grande revolução na legislação criminal. Na Itália, por exemplo, por volta dos anos 80, com a conhecida operação “Mãos Limpas”, foram criados procedimentos de combate às organizações criminosas como a infiltração de agentes de polícia em sua estrutura operacional, isolamento no sistema prisional e redução de pena aos integrantes delatores. Os Estados Unidos, por sua vez, aperfeiçoaram esses institutos do Direito Processual Penal, pondo em prática, além daquelas consagradas na legislação italiana, uma variedade de outras ações, como a interceptação das comunicações telefônicas, a captação ambiental, o sequestro de bens adquiridos com os proventos da infração, ação controlada (não intervenção policial para propiciar maior eficiência na colheita da prova), quebra do sigilo bancário, tudo com o fim de viabilizar o desmantelamento desses grupos de malfeitores, que Robert Kennedy se referia como “inimigos ocultos”.
No ano de 1988 foi dado o maior passo no enfrentamento às organizações criminosas com a Convenção de Viena, que contou com a participação dos principais Estados influentes no cenário internacional. Ficou estabelecido que medidas processuais já conhecidas não seriam suficientes para frear essas verdadeiras empresas do crime. Deveria haver um ataque direto às suas bases financeiras para que perdessem totalmente a capacidade funcional, levando-as a um verdadeiro estado de falência. E assim disseminou-se pelo mundo uma dura legislação no sentido de extirpar a lavagem de dinheiro (expressão originada nos Estados Unidos, “money laundering”, inspirada na prática da Máfia nos Estados Unidos, na década de 20, de criar lavanderias para justificar, perante o fisco, os lucros obtidos com os negócios ilícitos) e contemplou-se o acordo de cooperação mútua quanto às informações sobre as transações comerciais internacionais e aquisições e transferências de bens. Além disso, os institutos penais e processuais que haviam logrado êxito em algumas regiões tornaram-se uniformes pelos seus signatários, como, por exemplo, a delação premiada.
No Brasil, a legislação pertinente à delação premiada surgiu tardiamente com o advento da Lei 8.072/90. Porém, o referido diploma legal falhou em não regulamentar a matéria. Segundo seus críticos, tal fato se deu porque o legislador tinha como objetivo apenas elencar os crimes considerados hediondos e enrijecer a persecução penal para seus agentes, como forma de dar uma rápida e popularesca resposta à sociedade que clamava por uma solução aos frequentes sequestros que chocavam o país nos anos oitenta.
A lei específica de combate às organizações criminosas surgiu apenas cinco anos depois (Lei 9.034/95) e repetiu em seu texto a possibilidade de redução da pena para o delator, sem qualquer novidade em relação à Lei dos Crimes Hediondos, o que não era de se estranhar, pois, nela, sequer havia definição do que seria organização criminosa e associação criminosa de qualquer tipo. Sendo assim, pouca utilidade teve na tentativa de modificar as estatísticas em nosso país.
Com o passar dos anos, a delação virou moda no ordenamento jurídico pátrio. As leis 7.492/86 (Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional), 8.137/90 (Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária e Econômica e Relações de Consumo), 9.613/98 (Lei de Lavagem de Dinheiro), 9.807/99 (Lei de Proteção à Testemunha), 11.343/06 (Lei de Drogas) e 12.850/13 (Lei de Organização Criminosa) incorporaram em seu texto o benefício da delação. Ao contrário das outras, esta última veio regulamentar o mencionado instituto, estabelecendo o procedimento aplicável para a delação, os requisitos para que produza seus devidos efeitos, os critérios para o grau do benefício, as condições do agente, os destinatários do depoimento prestado, dentre outros aspectos. A atual Lei de Organização Criminosa diversificou e ampliou o benefício concedido ao delator, que pode ter como prêmio - dependendo dos efeitos do seu ato - a isenção de pena pelo perdão judicial ou até mesmo a exclusão do processo. Sua aplicação ganhou notoriedade graças aos escândalos que vieram à tona no atual governo, como os do “mensalão” e da “operação lava-jato”. Porém, observamos uma alteração em sua nomenclatura, pois de delação premiada passou a ser chamada de “colaboração premiada” (art. 3º, I, da Lei 12.850/13) e os motivos que motivaram essa inovação é o que passamos a discutir.
Para um leigo ou um jurista desprovido de uma formação filosófica, a substituição do termo “delação” por “colaboração” teria sido fruto de uma opção meramente estética por parte do legislador, algo sem qualquer repercussão semântica ou em outro campo científico que pudesse justificar um estudo aprofundado. Entretanto, essa visão míope sobre a questão deve ser superada pelo homem letrado para que possa perceber a total relação desse fenômeno com os valores éticos e morais de uma sociedade.
A palavra ética vem do termo “ethos”, cujo significado originário decorre da ideia de habitação, ou morada do homem e que, posteriormente, passou também a ser entendido como identidade cultural à qual o indivíduo pertence, sua etnia. Compreende uma parte da filosofia relacionada ao caráter e à conduta dos indivíduos, voltando-se para a análise de valores propostos por uma sociedade.
A influência da ética nos costumes de nossa sociedade pode ser bem compreendida com estudo de suas teorias clássicas. A ética finalista é defendida por Aristóteles, pois preconiza que as nossas ações singulares estão voltadas a um fim último, e esse fim é exatamente a felicidade. O homem, para Pegoraro, por ser ético, tende para um fim, que é o bom, que se realiza na busca e conquista por meio das virtudes morais e intelectuais. Outra classificação para ética é encontrada nos escritos de Kant, e é denominada de deontológica, porque o valor moral de uma ação reside em si mesmo, na sua intenção, e não nas suas consequências. Por sua vez, a ética utilitarista é citada pelos filósofos Stuart Mill e Jeremy Bentham. De acordo com os seus precursores, cada pessoa deve articular os seus interesses particulares com os interesses do coletivo, de maneira que proporcione o bem estar de todos os envolvidos nos resultados da ação.
Com base nas diferentes correntes filosóficas passamos a analisar se haveria alguma que pudesse se mostrar compatível com o instituto da delação premiada. Há quem procure justificá-la com base no finalismo aristotélico, pois se o fim é bom, ou seja, viabilizar o desmantelamento de uma organização criminosa e a cessação de suas atividades com a aplicação de pena aos seus integrantes, então o meio da delação também o será. Outros procuram associá-lo ao utilitarismo de Stuart Mill, pois com ela estaríamos atuando em proteção ao bem comum, com a restauração da ordem jurídica. E, por fim, com o mesmo afinco, muitos defendem a preservação dos valores éticos da delação premiada sob os fundamentos da Teoria Deontológica proposta por Kant. Entretanto, parece-nos fadado ao fracasso qualquer esforço no sentido de adequar a delação premiada à ética, independentemente da corrente filosófica adotada.
Não se pode valorar a delação como um meio mau para um fim bom, ainda que aceitemos o termo “colaboração”, usado pelo legislador na atual Lei de Organização Criminosa para camuflar o verdadeiro teor dessa nefasta prática. Jamais houve relato na historiografia criminal de algum episódio em que alguém tivesse denunciado os comparsas por estar imbuído de algum sentimento nobre, como o remorso pelos danos causados com o delito e de agir apenas para impedir a reiteração da atividade criminosa em nome da preservação do meio social. O delator é um criminoso integrante de uma organização criminosa com um plus que o destaca dos demais: é capaz de entregar todos os que com ele praticaram o crime para salvar a própria pele, e assim o faz. Logo, entre tantos delinquentes, eis o pior deles. O fim de se beneficiar em detrimento do semelhante, ainda que igualmente criminoso, não pode ser entendido como bom. Nesse mesmo prisma vale destacar as lições do renomado jurista Guilherme de Souza Nucci: “não se pode trabalhar com a ideia de que os fins justificam os meios, na medida em que estes podem ser imorais ou antiéticos.”.
Não obstante essas considerações há quem sustente a ponderação entre o que se faz e o que se obtém com a delação. Para esses, seguidores da corrente utilitarista, o sacrifício da organização, mesmo por intermédio de uma prática execrável, estaria a serviço do bem comum. Entretanto, cabe indagar que bem comum seria esse. A prova constituída em delação premiada seria valorada pelo juiz que não poderia olvidar o contexto na qual emergiu e as características de quem foi objeto da sua produção. É sabido que o juiz, mesmo sob a égide do Sistema da Persuasão Racional, raramente forma seu convencimento com base exclusivamente no depoimento do acusado. Aliás, não foram raras as vezes em que diversos acusados de integrarem organizações criminosas acabaram absolvidos, a despeito da utilização da delação premiada por parte do Ministério Público. Se realmente eram culpados, grande prejuízo ao Estado que usou de métodos inescrupulosos sem qualquer eficácia, criando uma sociedade policial e blindando de uma vez por todas os verdadeiros autores do crime que irão se valer da coisa julgada; se inocentes, o prejuízo será ainda maior, pois tiveram seus rostos e nomes expostos pelos meios de comunicação para um verdadeiro linchamento público. Todavia, alguém poderia levantar a tese de que no caso de esclarecimento do fato e a autoria, com a consequente punição dos criminosos, teria sido atingida a meta da preservação do bem comum. Ocorre que somente uma sociedade confusa quanto aos seus reais valores pode colocar o jus puniendi do Estado acima dos direitos individuais.
No contexto da delação premiada as lições de Kant são as mais intrigantes. Se o valor moral da ação reside em si mesmo, ou seja, na sua intenção e não nas suas consequências, a delação premiada é insustentável no âmbito da ética, pois independentemente de um resultado favorável, do ponto de vista do Estado, não se pode ver méritos na conduta de dedurar, mesmo quando realizada entre criminosos da pior espécie.
Oportuno também destacar que a imoralidade da delação se torna ainda mais latente quando se constata a ineficácia da Lei 9.807/99 (Lei de Proteção às Testemunhas), que entrega a órgãos não estatais, que funcionam precariamente, a incumbência de resguardar o delator de possíveis retaliações provenientes daqueles que tiverem seus nomes revelados. Logo, fica fácil concluir que, ao menos no Brasil, o delator receberá muito mais do que a redução da pena ou o perdão judicial, mas sim a extinção da punibilidade pela morte, na forma do art. 107 do Código Penal. Essa observação já foi diversas vezes destacada na jurisprudência: “A aplicação da delação premiada, muito controversa na doutrina e na jurisprudência, deve ser cuidadosa, tanto pelo perigo da denúncia irresponsável quanto pelas consequências dela advinda para o delator e sua família, no que concerne, especialmente, à segurança.”. (STJ - HC: 97509 MG 2007/0307265-6, Relator: Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, Data de Julgamento: 15/06/2010, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 02/08/2010).
Diante do exposto, ponderando todos os aspectos jurídicos e filosóficos acima destacados, não há como admitir a “traição benéfica”, assim chamada pelo consagrado criminalista Damásio de Jesus, entre os mecanismos processuais condizentes com o Estado de Direito. O Estado não pode barganhar com a criminalidade e ainda estimular as falsas denúncias daqueles que, de forma desesperada, esperam a sorte da impunidade. A lei deve possuir conteúdo didático e apresentar princípios cívicos decentes e não ensinar que o mau-caratismo pode ser vantajoso. Se o crime não compensa, a delação não recompensa.